O dia em que José Saramago regressou à Azinhaga para “acabar de nascer”

O dia em que José Saramago regressou à Azinhaga para “acabar de nascer”

José Saramago escolheu a aldeia natal de Azinhaga para lançar “As pequenas Memórias”. Voltou às origens no dia em que fazia 84 anos para “acabar de nascer”. O MIRANTE recorda esse dia num conjunto de textos que estamos a publicar para nos associarmos ao centenário do nascimento do escritor que se comemora no próximo 16 de novembro.

Os aldeões esperam impacientemente à porta da junta de freguesia ao final da tarde de quinta-feira, 16 de Novembro. Não é todos os dias que Azinhaga, Golegã, recebe a visita do filho da terra José Saramago, Nobel da Literatura 1998. Para mais no dia em que festeja 84 anos se prepara para lançar na aldeia o seu último livro “As Pequenas Memórias”. “Hoje faz ele anos. Amanhã faço eu”, comenta com naturalidade Olímpia Torres, 71 anos, nascida e criada na aldeia, que recorda o jovem Saramago de outros tempos. “Preparei três quilos de coscorões que são um encanto para o receber cá”, diz a medida que o sol vai ficando para trás.

Já é noite quando a população avista o autocarro onde chegam Saramago e os convidados. Populares e jornalistas rodeiam o Nobel para as tradicionais fotografias. O rancho da terra dedica-lhe uma moda e convida-o a ficar no centro da roda. Saramago surpreende-se com a recepção. Reencontra um primo antigo, tão antigo que Saramago não tem a certeza de o conhecer.

Entre os escassos metros que separam o centro da aldeia do velho pavilhão da extinta Sociedade Industrial de Concentrado (SIC), que a população preparou para receber o convidado ilustre, Saramago toca nos ombros de quem o acompanha. Cumprimenta amigos que vieram de Lançarote e Paris para o saudar. Dá a mão à companheira, Pilar del Rio.

Foi ela quem teve a ideia de preparar o lançamento do livro na aldeia de que fala a última obra do Nobel. “Quando Pilar me falou da ideia disse-lhe: ‘Já ninguém se lembra de mim… Muitas das pessoas já morreram…’ confessa José Saramago num tom pausado e emotivo para as largas centenas de pessoas que se concentraram no amplo pavilhão. “Não estava à espera do que me está a acontecer”.

O Nobel da Literatura lamenta não ter dado à aldeia a atenção merecida – que a sua vida profissional nunca o permitiu – e promete voltar mais vezes para retribuir o amável gesto da população. Quis falar às crianças da Azinhaga. Aquelas crianças que crescem com o Almonda poluído. Diferente do seu tempo em que a água era límpida. Quis recordar o seu tempo de criança. O tempo que é retratado no livro. A sua vida em Azinhaga até aos quatro ou cinco anos e depois o regresso nas férias.

A vida com o avô Jerónimo e a avó Josefa. “No meio de todos sinto-me ainda um neto”, confessa. Mas Saramago falou às crianças e aos pais para lembrar a liberdade em que se vivia no campo. “Costumava meter no alforge figos secos e uma fatia de pão de milho e dizia à minha avó que ia dar uma volta. Nunca me disse cuidado com o cão, não caias ao rio… Os adultos confiavam nas crianças e as crianças sabiam que eram responsáveis”, recorda Saramago que diz que o futuro não é tranquilizador. “Ajudem as crianças sobretudo a aprender, a ser educados e respeitosos com quem sabe mais e não com quem manda mais. Às vezes é preciso desobedecer a quem manda”.

O escritor não esconde as origens. O Nobel da Literatura forjou-se numa família de parcos rendimentos. Filho de mãe analfabeta e de pai que sabia ler, escrever e contar. “Qual seria o meu destino?”, interroga-se. “A enxada”, responde. A oportunidade de ir para Lisboa abriu-lhe a possibilidade de estudar na escola industrial. Em vez que ficar a trabalhar na banca do senhor João Vieira. “O mundo gira e se me perguntassem como cheguei até aqui não saberia dizer.

Fiz o meu trabalho e mais nada”, diz Saramago que acredita que outra pessoa poderia estar no seu lugar agora. Saramago acredita que é preciso confiar nos mais velhos. A obra “Memorial do Convento” foi publicada tinha o escritor 58 anos. Aos 84 anos Saramago recusa-se a dizer adeus. Voltou à terra “para acabar de nascer”.

Diz apenas até à vista e refugia-se na mesa de autógrafos para quase três horas de trabalho. Enquanto as filas se multiplicam Jerónimo Rufino, 74 anos, agricultor e acordeonista do rancho da terra, senta-se frente ao palco vazio, de livro na mão. Parece beber as palavras do homem que nasceu na mesma aldeia. José Saramago cedo deixou Azinhaga. Jerónimo Rufino ficou.

Texto publicado originalmente na edição de 23 de Novembro de 2006

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo