O irmão imortal de José Saramago e a bisonha Azinhaga

José Saramago na Azinhaga com Pílar del Rio – FOTO ARQUIVO

José Saramago tentou de tudo para se informar sobre o seu irmão Francisco de Sousa que não chegou a conhecer. Neste registo do diário volta ao assunto que é pretexto acima de tudo para muitas interrogações.

27 de Agosto

Prossegue o mistério da morte de meu irmão Francisco. Julgava eu, recordando o que tantas vezes ouvi dizer a minha mãe, que ele tinha sido internado, sofrendo de difteria, no Instituto Bacteriológico Câmara Pestana, onde viria a falecer, mas o Instituto, depois de buscar nos arquivos, informa-me de que nenhum Francisco Sousa filho dos nossos pais deu ali entrada. Teria, afinal, morri do em casa? Se assim foi, como é possível não ter eu conservado qualquer recordação do lutuoso acontecimento, por muito criança que fosse então? Teria ido morrer a outro hospital? É mais do que duvidoso, uma vez que o tratamento de casos clínicos daquela natureza tinha como lugar próprio (e talvez mesmo obrigatório) o Instituto Câmara Pestana. E certo que o desconhecimento destes e outros privilégios da civilização lisboeta, compreensível em quem só há poucos anos viera da bisonha Azinhaga para a cidade, poderia ter levado os meus pais a descuidar da gravidade do mal, acabando-se-Ihes, por assim dizer, o filho nos braços. De todo o modo, não creio: meu pai estava na Polícia de Segurança Pública, com certeza falou da doença do filho aos colegas, e algum destes, ou um superior, não deixariam de encaminhá-lo caridosamente aonde convinha. Seja como for, porém, morresse onde morresse o mano Francisco, como é que o registo do seu falecimento não consta na Conservatória da Golegã? Que passo deverei dar agora? Pedir a alguém que percorra por mim os labirintos arquivísticos dos cemitérios de Lisboa, à procura de um Francisco Sousa que parece não querer aparecer? E que não é a mesma coisa requerer a um funcionário o favor de pesquisar uns poucos de livros antigos numa conservatória de província ou os registos de um estabelecimento hospitalar especializado, e esquadrinhar as infinitas, as vertiginosas listas mortuárias desses lugares aonde toda a vida vai parar…

Em Cadernos de Lazarote Vol. IV Página 206

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