Cultura | 30-05-2019 18:00

Da menina dos rouxinóis à denúncia do trabalho infantil e em defesa da liberdade

Da menina dos rouxinóis à denúncia do trabalho infantil e em defesa da liberdade

Do romantismo ao neo-realismo tendo o Ribatejo como fonte de inspiração literária. A propósito do Dia do Autor Português, que se assinalou a 22 de Maio, prestamos homenagem a alguns autores a quem o Ribatejo e os ribatejanos inspiraram.

A menina dos rouxinóis ou Joaninha dos olhos verdes do Vale de Santarém

A passagem de Almeida Garrett por Santarém ficou eternizada em “Viagens na Minha Terra”, um livro que alguns consideram percursor da moderna prosa literária portuguesa. A história do amor entre Joaninha e o seu primo Carlos atraiu durante anos muita gente ao Vale de Santarém.

Almeida Garrett nasceu no Porto em 1799 e faleceu em Lisboa em 1854. Escreveu várias obras como “O Retrato de Vénus”, “Camões” ou “Dona Branca” mas nenhuma tão emblemática como “Viagens na Minha Terra” de 1846 que relata uma viagem pelo Ribatejo entre Lisboa e Santarém.
É nessa obra que descreve a paixão entre Joaninha, uma moça do Vale de Santarém, e o seu primo Carlos, personagens que funcionam como uma visão simbólica do Portugal da altura, mergulhado numa guerra civil que dividiu o país de 1828 a 1834 e na qual o próprio Almeida Garrett foi protagonista.

A viagem a Santarém, que aconteceu entre 17 e 22 de Julho de 1843, teve como propósito a visita ao liberal Passos Manuel, residente na Alcáçova de Santarém, amigo do autor dos tempos da Universidade de Coimbra, que ambos frequentaram, e funcionou como uma espécie de exílio interior do autor, nesta altura arredado da ribalta política pelo golpe de Estado em que Costa Cabral restaurou a Carta Constitucional (1842).

Garrett refere que encontrou Santarém numa “espantosa e desgraciosa confusão de entulhos de pedras, de montes de terra e caliça” e relata que a cidade mostrava ainda as feridas provocadas pela passagem das tropas francesas de Napoleão entre 1810 e 1811, que fizeram dela o seu quartel-general provocando danos incalculáveis no património.
Ainda assim, o autor realça na sua obra as paisagem com que se depara por terras do Ribatejo, quer aquela que encontra diante dos olhos ao acordar pelo repicar dos sinos da Igreja da Alcáçova, onde deu com “o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro” em que pôs os seus olhos, referindo-se ao vale verdejante e ao leito do rio Tejo, com vista privilegiada a partir da casa de Passos Manuel (junto às Portas do Sol), quer pelas paisagens que encontrou no caminho das quais se destaca o Vale de Santarém, “um destes lugares privilegiados pela natureza”, onde “as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita”.

Pouco resta agora de um imóvel no Vale de Santarém, descrito por Garrett no livro e onde terá passado uma noite. Actualmente a casa que pertencia ao político e historiador Rebello da Silva, amigo de Garrett, está em ruínas e não há praticamente vestígios da famosa janela onde teria avistado a Joaninha de olhos verdes, a menina dos rouxinóis, doce amada de Carlos. A vegetação outrora elogiada cresceu desmesuradamente e invade o espaço.

O espaço, propriedade privada, foi muitas vezes apontado como alvo de projectos culturais que lembrassem a passagem do escritor, mas nada avançou a não ser a degradação e o abandono.

Alves Redol é o escritor imortalizado numa estátua nu com um livro

Natural de Vila Franca de Xira retratou nos seus livros a ruralidade e os trabalhadores

Figura incontornável do neo-realismo português, Alves Redol é autor de uma extensa obra ficcional, eternizada pelos romances que são espelho e denúncia das condições sociais dos trabalhadores dos campos ribatejanos.

O Ribatejo serviu-lhe de inspiração para a escrita. Observador atento das gentes desta região escreveu sobre o mundo dos Gaibéus, os camponeses da Beira que iam fazer a ceifa do arroz ao Ribatejo, dos avieiros, camponeses e pescadores.

Alves Redol, nascido em Vila Franca de Xira, no ano de 1911, experimentou ele próprio, desde cedo, o mundo do trabalho, ajudando o seu pai, António Redol da Cruz, na pequena loja de comércio. Frequentou o colégio Arriaga, em Lisboa, onde concluiu o curso comercial e esteve emigrado em Luanda, a trabalhar como operário e, mais tarde, agricultor.

Aos 15 anos vê publicado o seu primeiro artigo de opinião num jornal local e inicia a sua carreira literária em 1936 com o romance “Gaibéus”. Além deste Alves Redol deixou “Glória, uma aldeia do Ribatejo”, “Marés”, “Avieiros” e “Fanga”. O “Barranco de Cegos” de 1962, uma narrativa que traça a burguesia ribatejana continua a ser uma das mais grandiosas obras do neo-realismo português.

Redol foi um dos poucos escritores portugueses a ter de submeter os seus originais a visto prévio da censura antes da publicação. Enquanto activista político combateu fortemente o regime Salazarista, chegando a ser preso e submetido a tortura.

Vila Franca de Xira presta-lhe homenagem pelo tesouro deixado à cidade e região, perpetuando a sua memória no Museu do Neo-Realismo, num busto colocado na escola secundária que recebeu o seu nome e na estátua colocada na rua com o seu nome.

A estátua, obra de Lagoa Henriques fez escorrer muita tinta, por apresentar o escritor nu, apenas com uma boina na cabeça e um livro na perna. No centenário do seu nascimento, em 2011, o município prolongou as comemorações durante um ano inteiro, através de colóquios, palestras, feiras do livro e reedição de várias obras.

É impossível falar de Alhandra sem falar de Soeiro Pereira Gomes

O Gineto, o Gaitinhas e outros homens que nunca foram crianças

Joaquim Soeiro Pereira Gomes é um dos mais destacados escritores neo-realistas portugueses e colocou para sempre a vila ribeirinha de Alhandra no mapa cultural português. Em Abril, numa cerimónia que se realizou precisamente em Alhandra, o município de Vila Franca de Xira atribuiu-lhe postumamente a medalha de honra pelo seu trabalho, valor literário e defesa dos valores da liberdade.

A sua história de vida – e a das suas obras – é fortemente influenciada pela vila de Alhandra, para onde se mudou em 1928 depois de conhecer Manuela Câncio Reis, com quem casou.

Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô, Baião, em 1909 e faleceu em 1949. Em Alhandra começou a trabalhar na fábrica de cimentos “Cimento Tejo”, dinamizando aí acções culturais entre o operariado, incluindo cursos de ginástica, biblioteca popular e colaborando no projecto de construção de uma piscina comunitária para as gentes de Alhandra.

Conheceu de perto a pobreza e a fome das gentes da borda de água. Aderiu ao Partido Comunista Português nos anos 30 e intensificou a sua actividade literária, colaborando nos jornais “Sol Nascente” e “O Diabo”. Na fase inicial da carreira assumiu-se como escritor de contos e crónicas, mas a sua obra mais influente até hoje continua a ser “Esteiros”, de 1941, o seu único romance publicado em vida, que narra a vida de crianças que trabalhavam nos telhais (fábricas de telha à beira rio), revelando a contraposição entre ricos e pobres.

O estudioso Gaitinhas, o revoltado Gineto e o menino de rua Sagui são alguns dos personagens imortalizados na obra, escrita, segundo Soeiro, para os filhos dos homens que nunca foram meninos. É considerada a sua obra prima.

Soeiro morreu prematuramente quando trabalhava no seu segundo romance, “Engrenagem”, publicado postumamente já em 1951. Em vida ficou conhecido também por promover passeios no rio Tejo no varino Liberdade onde participaram, entre outros, Alves Redol, Álvaro Cunhal e Dias Lourenço, debaixo dos narizes da ditadura fascista de quem foi sempre um acérrimo opositor.

Guerras com o clero por causa do milagre da batalha de Ourique e do casamento civil

O Alexandre Herculano dos livros e o da agricultura e da produção de azeite

Contemporâneo de Almeida Garrett, Alexandre Herculano pertenceu à primeira geração do romantismo em Portugal e tal como Garrett denunciava o perigo do retorno do centralismo da monarquia ao país. Alexandre Herculano nasceu em Lisboa em 1810 e faleceu na sua propriedade em Azóia de Baixo, Santarém, em 1877.

Descendente de famílias humildes, até aos 15 anos frequentou o Colégio dos Padres Oratorianos em Lisboa, onde recebeu uma formação clássica, mas aberta às novas ideias científicas. O pai cegou em 1827 e deixou de poder trabalhar e dar sustento à família.

Herculano viu-se assim impedido de prosseguir os estudos académicos, tendo aprendido por si os rudimentos da investigação histórica. Adquiriu uma sólida formação literária que passou pelo estudo de inglês, francês, italiano e alemão, línguas que foram decisivas para a sua obra literária. Foi o conhecimento destas línguas que lhe permitiram o acesso à literatura romântica da Europa.

Tal como Garrett esteve exilado em Inglaterra e em França pela sua oposição ao Miguelismo. É fora do país que contacta com obras de historiadores, romancistas e poetas que vão influenciar o seu trabalho.

Com o regime liberal assume a gestão de diversas bibliotecas, tendo sido nomeado por D. Pedro IV como segundo bibliotecário da Biblioteca do Porto, por exemplo. O contacto com as bibliotecas é o cenário ideal para trabalhar na área que mais gosta: a historiografia. Assim nascem os quatro volumes de A História de Portugal, considerada por muitos a sua obra mais notável (primeiro volume publicado em 1846).

Nela introduz a historiografia científica em Portugal o que levantou polémica na altura, sobretudo junto dos sectores mais conservadores da sociedade, nomeadamente o clero. Herculano foi atacado pelo clero por não ter admitido como verdadeiro o célebre Milagre de Ourique (que refere a aparição de Cristo a D. Afonso Henriques, na batalha com o mesmo nome). O autor defendeu-se pela verdade científica da sua obra.

Entre 1860 e 1865 Alexandre Herculano participa na redacção do primeiro Código Civil Português, onde propõem a introdução do casamento civil a par do religioso e mais uma vez entrou em quezília com o clero. Cansado de polémicas o autor confessa numa carta a Almeida Garrett ser seu desejo ver-se “entre quatro serras, dispondo de algumas leiras próprias, umas botas grosseiras e um chapéu de Braga”. Na última década da sua vida, após o casamento, em 1867, veio viver para o Ribatejo. Foi na propriedade de Santarém, a quinta de Vale de Lobos, que se dedicou a um novo desafio: a agricultura. A par da literatura, Herculano tornou-se agricultor e introduziu técnicas inovadoras de produção de azeite, tendo até sido premiado nacional e internacionalmente pelos seus azeites.

Procurou uma vida de recolhimento espiritual “ancorado no porto tranquilo e feliz do silêncio e da tranquilidade”, como descreveu no início da obra “Opúsculos”. Das suas obras literárias destacam-se os romances históricos “O Bobo”; “Eurico, o Presbítero”; ou “Lendas e Narrativas”. Na poesia destaque para “A Voz do Profeta”. Figura acarinhada na região, Alexandre Herculano dá hoje nome a um Agrupamento de Escolas em Santarém.

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