As memórias de Joaquim Veríssimo Serrão associadas a uma casa que foi sede de O MIRANTE

O MIRANTE teve a sua sede e redacção numa casa situada no Beco dos Agulheiros onde JVS nasceu e viveu até aos 17 anos. Oportunidade para o insigne escalabitano escrever em Novembro de 2008 as suas memórias e prestar tributo ao jornal e aos seus colaboradores
Quem diria, no grande livro do destino, que a casa onde se fez homem um apagado Historiador viria a abrigar a sede de um jornal a quem cumpre fazer a história do nosso tempo, tanto em Santarém como no Ribatejo?
Ao folhear o número 308 de O MIRANTE, fiquei comovido com a notícia de que o semanário vai abrir as suas novas instalações no Beco dos Agulheiros, nº 7, 9 e 11. A emoção vem do facto de que, nesse mesmo local, nasci e passei a juventude, numa ligação à velha Mouraria que jamais esqueço. Tantos anos volvidos, acumulei na alma uma série de lembranças que creio não serem inúteis para a história de O MIRANTE e para a insaciável curiosidade do seu prestante director. Eis, pois, as razões, sem qualquer intuito de vaidade ou autopromoção, porque peço um canto deste semanário para contar estes velhos pedaços da minha já longa vida.
No prédio onde vai instalar-se O MIRANTE, vivia no início do século a minha bisavó e madrinha Francisca Emília dos Santos, senhora que tinha reunido, como prestamista, alguns bens de fortuna. Com ela viviam o filho Adriano dos Santos Veríssimo, mestre de carpintaria muito conceituado em Santarém, a esposa Claudina de Jesus dos Santos e os cinco filhos do casal: Ricarda (1898), Adriana (1902), Laurentino (1905), Adriano (1911) e Senhorinha (1915), todos já falecidos. Era uma família modesta, mas profundamente honrada, que gozava do maior respeito entre os habitantes do bairro, não apenas pela boa vizinhança como pelos dotes de coração.
A família vivia no primeiro e segundo pisos da moradia (números 7 e 11), enquanto o nº 9 era a oficina de trabalho do meu avô materno, por todos conhecido como “o mestre Adriano”. Recordo-me de, sendo ainda menino, pelo ano de 1930, ver o avô passear aos domingos nas ruas da cidade, com o seu fato impecável, chapéu de coco e bengala com castão de prata, a cumprimentar as pessoas e a ver a sua delicadeza retribuída. Como me sentia feliz levado pela mão do avô Adriano, que me ensinava a ser cortês com toda a gente, fossem respeitáveis figuras da sociedade ou apenas gente humilde! E, na oficina do nº 9 do Beco dos Agulheiros, o meu tio Laurentino dos Santos Veríssimo aprendia o ofício com o pai, nas primícias do talento e da honestidade que o tornariam igualmente uma pessoa respeitada em Santarém.
No dia 1 de Outubro de 1924, ocorreu o casamento da filha Adriana com o então jovem armazenista de mercearia Joaquim Vicente Serrão, natural do lugar da Sinterra, freguesia de Tremês, e desde os 11 anos a trabalhar no ramo comercial. Como a casa familiar era pequena para abrigar o novo casal, a bisavó Francisca instalou os afilhados no rés-do-chão do nº 5 do Beco dos Agulheiros, que também era sua pertença. Foi aí que, no dia 8 de Julho de 1925, pelas 16h30, vim ao mundo: “um valente pimpolho de quatro quilos e meio”, como costumava dizer o médico assistente e meu saudoso amigo, Dr. Joaquim Mendes Pedroso da Costa.
Quatro anos depois, nasceu na mesma casa a minha irmã Maria Margarida, ainda hoje conhecida por Guida e a viver na sua casa do Algueirão Velho. Mas como o meu tio Laurentino casara, em 1928, com Maria Isabel Duarte dos Santos, a bisavó Francisca determinou que os meus pais transitassem para o primeiro andar do nº 5, a fim de cederem o rés-do-chão ao novo casal. Desse casamento nasceram os meus amados primos: Alexandre Duarte dos Santos Veríssimo (1929), hoje funcionário aposentado dos Serviços de Previdência, e a Dra. Maria Duarte dos Santos Veríssimo Dinis (1935), que foi uma distinta professora de Ciências Físico-
-Químicas no Liceu Sá da Bandeira.
A meninice passei-a, pois, no Beco dos Agulheiros, entre a casa paterna do nº 5 e a dos avós Adriano e Claudina nos nºs 7 a 11. Foram muitos anos de sintonia verdadeiramente popular com a vizinhança, a maior parte da qual partiu há muito para o Além. Mas tenho alegria em recordar que foram da minha criação, entre outros, o Manuel Custódio, que tinha um café no Mercado, o Joaquim e o João Clemente, o José Ramos, o Joaquim Machorro e as irmãs, a Maria Adélia e a Milú, filhas do João Menino, o futuro bandarilheiro César Marinho e o José Pereira, mais conhecido por Zé 14, que foi guarda-redes de futebol de Os Leões. Éramos todos uma família que se unia nas brincadeiras e traquinices, sobretudo na época do Carnaval.
A morte do avô Adriano (1934), seguida da bisavó e madrinha Francisca Emília (1935), obrigou a família a fazer partilhas. A tia Ricarda havia casado em Lisboa com José dos Santos Farelo, honrado comerciante de drogaria, nascendo do matrimónio os primos Maria Emília (1917), Júlio (1919) e Maria Carolina (1924). Os tios Adriano e Senhorinha haviam, por seu turno, constituído família e saíram também da casa familiar. A partir de 1937, o imóvel do nº 7 a 11 coube aos meus pais, enquanto o tio Laurentino ficou com o nº 5, onde já habitava, e com acesso à loja do nº 9, onde tinha a oficina de carpintaria. Recordo-me de meu pai proceder a arranjos na casa, embelezando o pátio em pedra e o jardim anexo, tornando a moradia com mais cómodos. Durante três anos vivi nessa casa muito feliz, envolto no carinho dos meus pais e irmã e no convívio com os tios Maria Isabel e Laurentino e os meus dois primos.
No dia 8 de Maio de 1940, tive o desgosto de perder a minha mãe, por quem tinha uma verdadeira adoração, após meio ano de sofrimento. Em Dezembro de 1942, quando meu pai contraiu um novo casamento, com o sangue na guelra dos meus 17 anos, recusei-me a viver na casa e fui instalar-me na pensão Rapideza. Estava a acabar o 7º ano do Liceu e com a esperança de, em breve, ir estudar para Coimbra. Com a verdade que brota da alma, devo hoje confessar que o meu pai respeitou a decisão e que nunca me faltou com nada para terminar o curso em 1948. São razões, a meio século de distância, para que tenha para com a sua memória um tributo de perene gratidão. Deixei assim, no fim de 1942, a casa do Beco dos Agulheiros, onde nunca mais quis entrar. Fora o local onde vira morrer a mãe amada, pelo que não me era possível suportar a sua ausência. Mas no fundo, bem no fundo do coração, nutria o secreto desejo de voltar ao Beco dos Agulheiros quando chegasse a hora da velhice. Pretendia ali fechar os olhos, na casa que fora da madrinha Francisca e do avô Adriano, onde crescera menino e me fizera homem no seio de uma família afectuosa e unida.
Mas as coisas vieram a tomar outro rumo em 1958, quando o meu pai transferiu a residência para o Beco do Feleijo e se tornou urgente fazer as partilhas inconclusas desde a perda de minha mãe. O prédio dos nºs 7, 9 e 11 do Beco dos Agulheiros ficou então devoluto. Eu vivia em Toulouse, em cuja Universidade era Leitor de Português e onde pretendia ficar para sempre. A minha irmã Guida estava em vésperas de casar-se com Vitorino Antunes dos Santos, empregado da Casa Jalco e a residir na Amadora. A venda do imóvel tornou-se uma necessidade, tanto mais que o adquirente era um grande amigo nosso, o Senhor Joaquim Constantino Lucas, proprietário da firma Carraóvel. Conhecendo-
-me desde menino, insistia em dizer que “seria para ele uma honra viver no prédio onde eu havia nascido”. Era a generosidade do seu coração a falar, tanto mais que eu nascera no rés-do-chão do nº 5 e apenas crescera no prédio ao lado. Recordo-me da lhaneza com que o assunto foi tratado e a que acedi por a minha irmã Guida ter urgência na transacção. Esta veio a efectuar-se no ano de 1960. Não recordo hoje o valor exacto, mas creio que foi no montante de 128.000 escudos, a dividir em partes iguais. O Senhor Joaquim Constantino Lucas procedeu a obras de adaptação no prédio, aumentou o alçado do segundo piso e fechou a varanda aberta que dava para o Beco dos Agulheiros. Juntamente com a esposa, D. Gracinda, diversas vezes me convidou a visitar a moradia, ao que nunca acedi, com delicadas evasivas. Ser-me-ia penoso recordar os tempos dourados da minha infância, nas razões que me haviam levado a deixar para sempre o prédio nos fins de 1942. O filho, Fernando Vieira Lucas, também meu velho amigo, nunca deixou de insistir com o mesmo propósito. Mas o tempo, como diz o provérbio, já não volta para trás!
Assim se explica que tantas recordações me tenham vindo à mente ao saber que O MIRANTE vai instalar-se no prédio onde vivi os primeiros 17 anos, mesmo junto da casa do nº 5 do Beco dos Agulheiros, onde nasci. Apenas falo do último século da habitação, pois recordo-me de uma longa abóbada na cave e de paredes com mosaicos de tijoleira que denotavam os vestígios de uma construção mais antiga. Seria apenas o rés-do-chão de uma outra casa existente no mesmo lugar, no pleno coração da Mouraria escalabitana? Quando era jovem pensava muito nisso e nutria a esperança de um dia fazer escavações no prédio dos meus avós e que, desde 1937, passou a ser dos meus pais. Mas, como muitos outros sonhos juvenis, também esse ficou por realizar na louca correria dos anos.
Ando há meses com a ideia fixa de escrever umas "Memórias", para dar testemunho do itinerário que me foi dado viver. Se ainda for possível concretizar esse projecto, talvez esta evocação venha a ser uma das primeiras páginas desse livro. Resta-me somente desejar ao Joaquim Emídio e a quantos o acompanham na sua tarefa, que O MIRANTE venha a obter uma vida de sucesso nas suas novas instalações. Um vínculo de recordações fica doravante a ligar-me ao semanário que se pretende defensor das aspirações e interesses do Ribatejo. Não é de crer que volte a entrar nessa casa onde fui feliz e tive desgostos, mas certo é que dela guardo para sempre muitas saudades. Quem diria, no grande livro do destino, que a casa onde se fez homem um apagado Historiador viria a abrigar a sede de um jornal a quem cumpre fazer a história do nosso tempo, tanto em Santarém como no Ribatejo? Assim se cruzaram, por vontade de Deus, os caminhos da vida, e sem que nós possamos adivinhar a força desse mistério. Que O MIRANTE venha a ser feliz na casa do Beco dos Agulheiros, são os meus ardentes votos.