Entrevista | 29-01-2020 12:30

O futebol é um livro que nunca acabamos de ler

O futebol é um livro que nunca acabamos de ler

Vasco Matos, treinador recentemente despedido do Alverca, dias depois de uma vitória histórica frente ao Sporting, aceitou conversar com O MIRANTE sobre o seu percurso como jogador e treinador. Uma conversa onde concluiu que as sociedades desportivas estão a acabar com o futebol do amor à camisola.

Vasco Matos ficou na história do Futebol Clube de Alverca depois de ter conquistado em Outubro uma mediática vitória frente ao Sporting na Taça de Portugal. No Campeonato de Portugal perdeu quatro dos 19 jogos que disputou no comando da equipa mas mesmo assim acabou dispensado, no final do ano, pela sociedade desportiva que gere o futebol sénior do Alverca, numa decisão que ainda custa a compreender aos adeptos e comunidade.

Vasco é uma pessoa reservada que não gosta de mediatismo mas a O MIRANTE partilha com os leitores as suas memórias de jogador, os sentimentos sobre o desporto que ama e o que disse no balneário aos jogadores para conseguirem vencer o leão. Critica as redes sociais, avisa que as SAD que tomaram conta dos clubes estão a criar ilusões de riqueza e não foge ao tema das claques e do sentimento bairrista que divide Vila Franca de Xira e Alverca. Tem 39 anos, é casado, pai de dois filhos e está à procura de um novo desafio profissional. “Mas sem pressas”, garante.

Fez a formação no Sporting Clube de Portugal. Porque é que alguns jogadores ficam na memória e outros apagam-se completamente?

Tem muito a ver com o percurso. Sabemos que nem todos conseguem chegar a um patamar alto e ficar lá muitos anos. O futebol é um mundo difícil. Quem anda mais tempo nas ligas profissionais ainda consegue atingir outros patamares porque o nível de exigência é mais alto. Quando queremos fazer carreira temos de começar por baixo.

Ter um emblema do Sporting ou do Benfica na camisola não é suficiente para fazer um bom jogador?

Não. Como o mercado está, muito competitivo, o jogador tem de ser bom constantemente durante muitos anos. Tem de ter um elevado nível de trabalho. Na formação há muitos que jogam 10 ou 15 anos no Benfica, Sporting ou Porto mas quando há a transição para os seniores é mais difícil e aí não dá para todos. No fundo andam 20 jogadores a treinar para um subir e seguir carreira. É preciso ter qualidade, ninguém vai dar oportunidade a um jogador só porque sim ou porque um empresário pede. Nunca fiz isso.

O problema é o que fazer quando não se consegue continuar no topo...

Todos os jogadores têm o sonho de atingir a equipa principal. E nós que lá passámos muitos anos acabamos por viver num mundo à parte, numa redoma, onde há tudo. E depois quando não atingimos as expectativas parece que o mundo desaba e muitos desses jogadores acabam por terminar as carreiras porque têm dificuldades em entrar num novo mundo de trabalho. Há muitos que passam mal.

No tempo em que era jogador as palestras de treinadores como Vítor Damas iam nesse sentido ou escondiam essa realidade?

Na minha altura não se falava muito e faltou sensibilizar para a necessidade de continuar os estudos. Mas não tínhamos consciência do que era o verdadeiro futebol. Houve uma evolução tremenda nestes últimos anos. Acabei por conseguir seguir uma carreira e fazer coisas de que me orgulho. Mas faltou essa pedagogia.

Disputou mais de 400 jogos como avançado, primeiro no Lourinhanense enquanto clube satélite do Sporting, e depois em clubes como o Vitória de Setúbal, Olhanense, Beira Mar e Portimonense. A dada altura vestiu as cores do Rapid de Bucareste (Roménia). Como foi essa experiência?

Foi curta mas muito boa, financeira e desportivamente. Joguei numa equipa que estava em terceiro lugar da liga romena com jogadores internacionais. É um campeonato difícil, muito disputado, com boas equipas e bons jogadores. Fui por intermédio de um agente. O futebol é feito de contactos e relações. Quando voltei a Portugal joguei com alguns dos meus treinadores favoritos, como o Lito Vidigal ou o Paulo Fonseca.

O que faz de alguém um bom treinador?

Há treinadores muito bons no campo mas que depois a gerir o grupo e as relações não conseguem. É uma questão de liderança. Fui para treinador porque já gostava de futebol. A determinada altura comecei a pensar e a olhar para o treino de uma forma diferente. O futebol é um vício que não dá para largar. A paixão por este desporto entranha-se desde miúdo, o cheiro da relva, o ambiente do balneário... é um mundo diferente.

Acabou a carreira de jogador no União Desportiva Vilafranquense (UDV) e aí começou a sua aventura de treinador. Que memórias guarda desse período?

O primeiro ano foi muito bom. Fizemos uma excelente época, implementámos uma ideia de jogo muito boa e cimentámos o UDV naquela divisão. O clube tinha passado por dificuldades enormes e desportivamente conseguimos erguê-lo. As pessoas não imaginam as dificuldades que o clube tinha. Este ano as coisas estão um bocadinho melhor. Tenho um grande carinho pelo UDV mas acho que deu um passo maior que a perna ao subir de divisão. As sociedades anónimas desportivas (SAD) vieram criar ilusões de riqueza e de facilidades onde elas não existem.

“Um negócio com pouco amor”

Há um exagero na constituição das SAD?

Claro que sim, vieram permitir que se viva acima das possibilidades e se criem expectativas nos adeptos e nos jogadores que depois podem não ser possíveis de concretizar. Este novo profissionalismo e este exagero que está a ser criado à volta do futebol e deste campeonato nacional de seniores é uma ilusão tremenda. Há bons clubes mas muita dificuldade também. Devia haver um maior controlo, por exemplo, na obrigação de uma determinada percentagem do orçamento ter de garantir parte do funcionamento da época, pelo menos, nos vencimentos dos jogadores. O futebol dá uma bagagem e uma capacidade de resistência e resiliência grandes. Mas muita gente passa por dificuldades. Para muitos futebolistas o mês não tem 30 dias, tem 90 ou 120. E com contas para pagar, rendas para pagar e frigorífico para encher, não é fácil. É preciso ter uma grande capacidade de resistência e sofrimento, saber não desistir. Muitas vezes as pessoas não sabem de nada disso. As SAD hoje querem tudo para ontem e nem sempre isso é possível.

Sente um distanciamento entre os clubes e as novas organizações do futebol?

Ainda sou do tempo do futebol clubista, do amor à camisola, e fico um pouco triste porque o futebol de paixão está a chegar ao fim. Haver um patrão e não um dirigente associativo faz toda a diferença. Isto é um negócio grande com pouco amor ao trabalho. Não se cria a empatia e as verdadeiras amizades que havia no balneário de antigamente. Hoje a maioria dos clubes das ligas inferiores são tudo SAD, com donos americanos, japoneses, brasileiros, chineses, africanos...

É preciso mudar a lei e impor restrições?

Não há dinheiro. E eles é que trazem o dinheiro. Senão os clubes não se aguentam. Veja-se o UDV ou o Alverca: se não fosse um investimento destes estariam na distrital. O Vilafranquense teria acabado sem a existência das SAD. E os grandes clubes nacionais é que ainda dominam o futebol. Mas os clubes pequenos também precisam disso e das ajudas financeiras. Quantas vezes já vimos clubes a sobreviver através da venda de um determinado jogador por valores elevados? Permite-lhes respirar.

A vitória contra o Sporting foi o maior momento da sua carreira enquanto treinador. Já sabia que estava a prazo?

Não sabia, mas saí bem resolvido e sem criar anti-corpos. O trabalho estava a ser bem feito. No início da época identificámos as lacunas que o plantel tinha e que foram colmatadas. Sabíamos para o que íamos, que era um projecto altamente arrojado e muito exigente. Mas avisámos a estrutura do Alverca do que estava em cima da mesa. A vitória contra o Sporting fica para a história e isso já ninguém nos tira. Deixámos identidade e uma ideia forte de jogo. Sabíamos que tínhamos condições para ter sucesso, mas quem lá está na SAD não entendeu dessa forma.

Não é normal despedir um treinador que está a ter bons resultados...

Não sei porque quiseram que saísse nem perguntei. O meu trabalho é no campo. Quando saí estávamos em terceiro, mas as pessoas achavam que já devíamos ter 20 pontos de avanço na tabela, e isso no futebol não existe. As pessoas têm pressa para tudo. Se empatássemos um jogo abanávamos logo. A estrutura fez uma aposta grande, quer subir, mas isto é uma maratona que não nos deixaram acabar. Estamos aí para a luta.

O que disse aos jogadores no balneário frente ao Sporting?

Disse-lhes que era possível vencer. Sabíamos do mau momento do Sporting e tentámos deixá-los desconfortáveis logo de início. Mas nunca pensei que ia marcar aos dez minutos. O futebol é como um livro que nunca lemos: tem uma história que nunca sabemos como acaba. Mas sabíamos que se conseguíssemos ter bola iríamos poder criar perigo. Estivemos muito bem organizados defensivamente e mantivemos a estratégia depois de marcarmos. A minha ideia não muda em função do adversário.

Feridas do FC Alverca ainda estão a cicatrizar

O ex-treinador do Futebol Clube de Alverca diz que o clube ainda está a crescer, a revitalizar-se e a fazer os adeptos voltarem a acreditar. Afinal de contas, trata-se de voltar a trazer ao estádio os adeptos que vibraram com o clube na primeira divisão e que depois quase o viram desaparecer com a falência da SAD, à época liderada pelo agora presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira. “Em Vila Franca de Xira o clube era mais pequeno mas notava-se mais a presença dos adeptos. Também porque o estádio do Alverca é maior e por isso possa parecer mais vazio. São clubes diferentes. Mas enquanto jogador e treinador de ambos senti as rivalidades quando lá passei”, recorda.

Vasco Matos reside na Amadora com a família e naquela cidade ainda há quem o conheça pela vitória frente ao Sporting. “Essas coisas ainda me fazem confusão. A vitória deu-me o mediatismo mas isso passa rápido e não paga as compras no supermercado”, ironiza. Os pais ainda torcem pelo filho. “O meu pai já não vê os jogos porque sei que ele sofre um pouco mas dá-me sempre apoio”, conta.

O técnico está serenamente à espera da próxima oportunidade. “Tenho pessoas a trabalhar nisso mas não estou desesperado. Acredito no equilíbrio e na ponderação e esse é o caminho. Se quisesse trabalhar já estava a trabalhar mas acho que é importante dar passos seguros e cimentar algumas coisas que foram bem feitas. Isto são etapas que nos fazem crescer. Todos estes momentos foram uma aprendizagem que vou levar para o futuro. Este é um período de reflexão e amadurecimento”, conclui.

Redes sociais dão voz aos imbecis

Vasco Matos é uma pessoa recatada e nas redes sociais mantém o seu perfil muito discreto. O treinador diz ligar muito pouco ao que é publicado nessas plataformas e nota que muitas vezes são um palco para dar visibilidade a quem não a merece. “Muitas vezes quem escreve coisas a falar dos clubes nem é da zona ou adepto. As redes sociais servem regra geral para dar voz aos imbecis. As pessoas não sabem nem acompanham o dia-a-dia dos clubes nem vão aos estádios mas mesmo assim comentam. Esse é um dos males de quem dirige. Ir atrás de comentários sem nexo. Sou completamente contra a importância que se dá às redes sociais”, confessa.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1657
    27-03-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1657
    27-03-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo