Entrevista | 19-08-2020 12:30

“Os idosos não têm medo do vírus mas nós temos por eles”

“Os idosos não têm medo do vírus mas nós temos por eles”
IDENTIDADE PROFISSIONAL

Carla Lopes, directora técnica da Casa de São Pedro de Alverca, viveu com a chegada do vírus a fase mais marcante do seu percurso profissional.

O medo foi uma constante mas as regras impediram-na de passar a porta da casa que é o seu “porto de abrigo” há 23 anos. Licenciada em Serviço Social aprendeu, quando tinha 27 anos, a primeira lição da sua profissão: o idoso é um ser humano com bagagem que tem de ser respeitada.

No final de um dia de trabalho Carla Lopes recebe O MIRANTE nos jardins da Casa de São Pedro de Alverca para falar do seu percurso profissional. De bata branca, máscara no rosto e com um frasco de desinfectante nas mãos. Todo o cuidado continua a ser pouco quando se está numa instituição que acolhe mais de uma centena de idosos, que estão no grupo de risco da Covid-19.


Há mais de 15 anos que é directora técnica na instituição mas garante que foi com a pandemia que viveu os momentos mais marcantes da sua carreira. “Nunca me imaginei numa situação destas. Tivemos de alterar tanta coisa para nos protegermos a nós, aos utentes e às nossas famílias. Vimos a tragédia acontecer noutros lares a meia dúzia de metros, com um sentimento muito solidário e de tristeza. Aqui, felizmente o vírus ficou fora de portas”, refere.


Carla Lopes evita passar-nos a aflição que sentiu no início de tudo, mas não esconde: “Os idosos não têm medo do vírus, mas nós temos por eles”. Trabalhou em espelho, implementou regras e alterou-as. Viu a incompreensão nos rostos daqueles que têm diminuídas as suas faculdades cognitivas e a tristeza naqueles que compreenderam o drama de ficar privados do abraço da família.


Tinha 27 anos e um curso superior em Serviço Social quando foi chamada para fazer um estágio profissional na instituição que nunca mais largou. Vinha cheia de vontade de pôr em prática os valores que aprendeu na teoria, mas não foi assim tão simples. “Estar aqui, em contacto com as necessidades dos idosos, chocou-me. Nesse ano tinha perdido os meus avós maternos e quis acreditar que iria viver com os utentes o que não vivi com eles”, recorda.

“Tenho de ajudar os utentes a lutar pelos seus direitos”

A gerir uma equipa de 50 colaboradores nas tarefas do dia-a-dia divide-se entre a gestão e sustentabilidade da instituição e os processos sociais que envolvem a atribuição de pensões e subsídios: “Tenho de estar sempre atenta e ajudar os utentes a lutar pelos seus direitos”.


É por isso que em tom de brincadeira diz que é uma espécie de advogada de defesa de cada idoso que escolheu aquela instituição para passar o resto da sua vida. Até porque, conta, antes da entrada para o Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa se viu a “balançar para o Direito”. Hoje não duvida que escolheu o caminho certo.


“A minha vocação é trabalhar com idosos. Cuidar e acompanhar a sua vida que poderá estar a chegar ao fim e contribuir para que seja o menos penosa possível”, afirma. Depois, confessa que o medo de envelhecer não está na quantidade de rugas que vão teimar em lhe aparecer no rosto, mas na dor que o corpo pode vir a sentir.


Sabe que a profissão lhe deu “alguma capacidade física e mental para conseguir enfrentar o envelhecimento dos pais”, mas duvida que vá ser fácil. “Quando são os nossos é sempre diferente”, destaca a directora técnica que também é irmã mais velha.


Natural de Aveiras de Cima, para lá “foge” aos fins-de-semana para caminhar no campo e fazer jardinagem para descomprimir do trabalho. Mas nunca o nega. Diz-se de tal forma dedicada que até se esqueceu da sua vida amorosa. Nunca casou nem teve filhos. “Não me permiti ter tempo para isso. Com o trabalho esqueci-me dessa parte”, diz, acrescentando que não guarda mágoa do que não viveu.


Em tempos chorava por cada utente que via partir, hoje despede-se deles com “um nó na garganta”. Mas num lar há sempre lágrimas, inclusive “de revolta” dos que chegam depois de deixarem a sua casa. Cabe-lhe a ela e à equipa fazer com que sequem para que os olhos possam ver naquela a sua casa.


Para Carla Lopes trabalhar com idosos é uma aprendizagem constante. Não aceita, por isso, comentários como “um idoso é uma criança duas vezes”. “Não é. É um ser humano que cresceu e que tem um percurso de vida singular. Nunca nos podemos esquecer que a Maria de 20 anos ainda ali está e quer ser lembrada”. O que mais a assusta é saber que “há idosos a viver em condições precárias, cujos direitos estão a ser alienados”, quer em lares ilegais ou nos legais que não cumprem porque “também os há”. Revolta-a, por isso, “a falta de fiscalização apertada” que devia zelar pela dignidade dos idosos.

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