Cultura | 06-07-2022 08:00

“A minha vida é o teatro de Almada e o legado de Joaquim Benite”

Carlos Galvão é director financeiro do Teatro de Almada onde está há 30 anos e chegou a convite de Joaquim Benite com quem começou a trabalhar e diz que aprendeu quase tudo

Entrevista com Carlos Galvão, o director financeiro do Teatro de Almada, que herdou o legado de Joaquim Benite de quem foi amigo e colaborador.

Carlos Galvão tem 60 anos e há mais de trinta que trabalha na Companhia de Teatro de Almada. Joaquim Benite, o encenador que fez de Almada a capital do teatro, conheceu Carlos numa encenação que foi realizar à Chamusca, em que ele era o homem dos bastidores, da luz e do mais que era preciso fazer, e convidou-o para trabalhar com ele. Passaram 31 anos e Carlos Galvão passou de homem de mão de Joaquim Benite para um dos principais dinamizadores da Companhia de Teatro de Almada que é uma das mais importantes do país. Na semana em que começa a 39ª edição do Festival de Teatro fomos à conversa com o director financeiro da Companhia que reconhece que o trabalho no teatro se confunde com a sua vida pessoal e familiar.

Como é que vieste parar a Almada?

Conheci o Joaquim Benite na Chamusca quando ele foi lá encenar um espectáculo. Passado algum tempo ligou-me e convidou-me para trabalhar com ele. Aceitei logo e vim viver para Almada. Foi um desafio. Eu gostava mesmo do mundo das luzes e do som e da vida em cima do palco. Quando cheguei vim fazer a iluminação e o resto, que era quase tudo, menos a encenação que para isso nunca tive jeito. Também fazíamos os cenários e as montagens. Na altura éramos duas pessoas, eu e o mestre carpinteiro. Eu era o ajudante do Joaquim.

Lembras-te quantas peças montaste nesses primeiros anos?

A trabalhar na iluminação fiz 10 ou 12 peças no antigo teatro e fazia a colaboração em quase todas porque em algumas o Joaquim tinha uma grande influência, gostava muito de trabalhar a luz. Depois dos ensaios ficávamos os dois no teatro até ao nascer do dia a fazer experiências com os 40 projectores que tínhamos. A dificuldade era essa, agora temos mais de 400 projectores mas naquela altura só tínhamos 40 e fazíamos milagres.

A tua relação com o Joaquim Benite foi crescendo até ele te convidar para outras funções.

Quando viemos para este teatro, em 2005, ele perguntou-me se eu aceitava ser director técnico. Era uma coisa completamente diferente, um espaço novo. Aceitei o desafio e fiquei como director técnico do teatro desde 2005 até 2010 quando ele me convidou para a parte financeira.

Tirou-te da parte mais interessante do teu trabalho?

É verdade: na direcção técnica temos que estar em todo o lado e ser pau para toda a obra. E isso dava-me gozo.

Não havia director financeiro nessa altura?

O problema é que o director financeiro reformou-se e ele precisou de mim e eu não podia dizer que não. Já cá estava há 20 anos. Tive que aceitar. Sempre fomos um grupo pequeno mas unido. Eu sabia de tudo o que se passava aqui dentro, não podia dizer que não.

Na altura a Companhia vivia dos subsídios da Câmara de Almada?

Sim. Na altura vivíamos dos subsídios da câmara e do Estado. Calhou-me entrar para esse lugar numa altura em que o Estado nos cortou quase 300 mil euros de apoio, que se mantém e se tem agravado de então para cá. Veremos se este ano as coisas se compõem. Pelos menos há essa promessa. Mesmo assim, mantemos uma equipa de quase 40 profissionais todos com contrato de trabalho. Nesta altura é o financiamento da autarquia que nos ajuda a sobreviver e a termos esta dinâmica e intervenção cultural.

Foi fácil a adaptação ao meio citadino?

Muito fácil. Eu gostava do que fazia. O problema era a sobrevivência. Muitas vezes chegava ao fim do mês e perguntavam-me quanto é que eu pagava de quarto para depois me dizerem quanto me pagavam. Metade do vencimento era para o quarto. Mandava roupa para a Chamusca para lavar, ia despachá-la no autocarro, e a minha mãe mandava as malas com a roupa lavada. Foram uns anos muito difíceis. Havia dias em que só se podia comer uma sopa porque não tínhamos dinheiro para mais nada.

E o resto da equipa?

Só os que viviam em Almada e tinham aqui família tinham a vida mais facilitada. Toda a gente tinha a mesma dificuldade. Muitas vezes as pessoas da direcção não recebiam para haver dinheiro para pagar aos profissionais.

Quando conversámos ao telefone para marcarmos esta conversa disseste “Estou sempre aqui, aparece”. Vives mesmo no teatro?

É mesmo verdade, é um hábito que vai ser difícil de ultrapassar. Quando vim para aqui o Joaquim disse-me “tens aqui a chave, tens que abrir e fechar o teatro”. Pensei que aquilo era uma atribuição da técnica e aceitei a chave. Tinha de esperar que toda a gente saísse, mesmo que fosse às quatro da manhã, e eu não estivesse a ser preciso. Depois tinha que voltar às dez da manhã para abrir as portas. Habituei-me a ficar, a minha vida era no teatro. Mas fazia com gosto e isso foi um hábito que ficou. Venho para cá por volta das 10 horas e vou-me embora quando as luzes se apagam.

Acabas por ser o guardião do espaço e do projecto?

Sim, a minha vida é aqui. Felizmente a parte técnica foi assumida por um jovem cheio de qualidades. Assumiu a direcção técnica do teatro com sucesso e as coisas têm corrido bem. O meu trabalho agora é quase insignificante, é garantir que tudo funciona. Uma coisa que o Joaquim me ensinou, e que tento cultivar, é a forma de nos organizarmos: ele dizia que a organização é boa quando não se vê nem se dá por ela.

Com a morte de Joaquim Benite ficaste tu mas também ficou o actual director artístico da Companhia. Não houve assaltos aos lugares depois da morte do vosso mestre?

O Joaquim Benite tinha uma visão da organização das companhias de teatro que acho notável. Ele preocupava-se mais com a companhia do que com as pessoas individualmente e até com ele próprio. Para ele, o grupo estava primeiro que qualquer individualidade. E não admitia concessões. O Rodrigo veio para aqui jovem, com 15 anos, para colaborar nas montagens do festival e depois começou a escrever uns textos e a fazer uma coisas porque ele era estudante ainda. O Joaquim gostou do Rodrigo e o sonho dele era deixar alguém de confiança à frente da Companhia e foi o que aconteceu.

O Festival de Teatro de Almada é mesmo o maior festival de teatro do país?

O sucesso de público no nosso teatro é uma coisa de sempre. Uma carreira com um espectáculo na sala principal que tem 20 sessões pode ter 6 mil espectadores. Portanto o público acarinha e acompanha os seus criadores. Por isso, do ponto de vista daquilo que nos interessa, que é o trabalho para o público, acho que o objectivo tem sido bem conseguido. Quanto ao Festival assumo que é mesmo o maior do país e aquele que tem mais e maior projecção e isso deve-se ao trabalho do Joaquim Benite.

O teatro perdeu um pouco as figuras cimeiras. As novas gerações já não são o que eram…

Há pessoas muito boas, há muito bons nas novas gerações. O problema é que se deixaram de encenar textos importantes. Parece haver um divórcio com os autores portugueses de referência.
Aparecem muitos currículos de jovens atrizes e actores a oferecerem-se? Aparecem poucos e até nos últimos anos temos tido dificuldades porque precisamos de mais jovens e algumas vezes vamos buscar os que ainda estão no Conservatório. É curioso porque há maior formação de artistas mas há menos disponibilidade.

Não tem nada a ver com a falta de amor à camisola como no teu tempo?

É capaz de ter. E podia contar uma ou duas histórias que provam isso.

Um teatro desta dimensão não tem só histórias felizes. Nunca sentiste que estavas aqui a mais, que isto não é vida para um homem?

Não. Esta vida é um prazer. Quem tem esta vida por opção é claro que tem dificuldades, porque isto é mesmo só para quem gosta e opta por esta profissão. Se formos ver a rotação de pessoas desde que abriu o teatro isso só acontece na portaria, na recepção, na limpeza e na equipa técnica porque são áreas em que as pessoas procuram melhores oportunidades e horários de trabalho. As pessoas que estão ligadas ao espectáculo ficam e não saem da Companhia.

Tens mantido contacto com a terra natal?

A família mudou-se toda para o Entroncamento. O meu contacto resumia-se a duas vezes por ano, no Natal e em Agosto. Agora a maior parte das vezes vou ao Entroncamento para ver a minha mãe, de 15 e 15 dias, mas é raro passar pela Chamusca.

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