Entrevista | 08-11-2022 21:00

Isac Graça: “usar a cama como moeda de troca para um trabalho não é a minha praia” 

Isac Graça é um rosto conhecido da ficção nacional na RTP e no cinema nacional

Isac Graça participou em filmes como “Cartas da Guerra”, “Soldado Milhões” e várias séries da RTP e acredita que o seu melhor papel ainda está por chegar. Gostava de ver criado um cineclube em Alverca e até se oferece para fazer a curadoria se necessário. Elege Alhandra como uma das terras mais bonitas do país e nesta entrevista a O MIRANTE diz que falta ternura na sociedade, recorda o seu percurso e confessa não acreditar em vidas perfeitas.

Se vires uma casa com a cortina aberta espreitas para o interior? Quem não? (risos) Sou um eterno insatisfeito e ainda bem. Não acredito que a perfeição seja possível. Tira-me do sério a falta de inteligência emocional. Há limites. Irrita-me nos outros e em mim. 
O primeiro contacto com o teatro foi aos 15 anos na Casa da Juventude de Alverca. Foi aí que descobriste a tua vocação? Nunca me tinha divertido tanto na vida como naquele curso. Mal entrei em cena e a luz me bateu na cara tudo fez sentido. Foi a primeira vez que me senti na minha verdadeira pele. Ser actor é um modo de vida. O teatro é correr a maratona e o cinema são os 100 metros repetidos imensas vezes. 
Já te pediram para fazeres cenas obscenas para entrar num filme? Tive uma primeira conversa com um realizador e pareceu-me que dependia de ir para a cama com ele poder ter o papel. Não tenho nenhum tabu das pessoas poderem ter relações com pessoas com quem trabalham, antes, durante ou depois do trabalho, mas usar a cama como moeda de troca para um trabalho não é a minha praia. Isso é algo que ainda existe e sei de muitas histórias mas não as vou contar. Não é pelo puritanismo que se combate esse fenómeno. A denúncia num país muito prudente como Portugal, e com uma indústria pequena como a nossa, não me parece que seja o caminho. Há que saber separar as águas, ver as coisas caso a caso e as pessoas terem a sua integridade pessoal e fazerem a sua avaliação sobre que cedências estão dispostas a fazer. 
Fazes dieta para estares na linha? Se fosse para o ginásio estaria a protagonizar novelas. Não é que tenha algo contra ou preconceito sobre isso, mas ir parar a um trabalho só porque estou com bons bíceps é absurdo… 
Tens alguns personagens que gostes de interpretar e te estimulem? Sejam grandes ou pequenos só 5% dos papéis não me disseram nada até hoje. E já participei em mais de 20 filmes. Gosto de todas as personagens que faço. Toda a gente tem perturbações na sua vida. Não acredito em vidas perfeitas. Tento analisar as personagens nesse sentido. 
O streaming está a matar o cinema? Há muito menos espectadores nas salas, o que é um problema. Gosto da experiência de ir ao cinema, fica-me na memória. A produção em massa de conteúdos e os algoritmos estão a mudar tudo. Estão a criar a ideia do que é o certo ou errado e o que as pessoas querem ver. É uma pretensão do caraças. As plataformas estão sempre a recolher informação sobre as pesquisas e séries visualizadas. Aliás, tem-se falado muito do excesso de sexualização das séries da Netflix. E isso tem a ver com as pesquisas que são feitas na plataforma.  
Já tiveste um papel em que tivesses de fazer algo com que não te sentisses à vontade? O filme que estive a fazer no Brasil no final do ano passado e ainda não estreou, da Carolina Markowicz, em que faço um pastor evangélico que faz terapia de conversão de homossexuais. Eticamente está nos meus antípodas ser contra a liberdade individual. Esse é um valor fundamental. Não me senti confortável com esse papel mas diverti-me muito, porque no fundo sei qual é o ponto de vista da realizadora sobre aquela personagem e o destino que lhe vai dar… 
Porque vamos tão pouco ao cinema ver filmes portugueses? É uma guerra antiga entre o cinema comercial e de autor. O comercial faz mais números e acho-o muito mal feito em Portugal. No cinema de autor criou-se a ideia errada de que é pretensioso, para se deitar abaixo nomes nacionais que depois lá fora são muito amados. O Pedro Costa, por exemplo, é o maior realizador português mas para muita gente é um pretensioso que não percebe nada do que está a fazer. Mas depois, em Tóquio, há filas para se ver o filme dele.  
Já escreveste um argumento? Este ano escrevi um texto de teatro. Já tinha escrito dois em 2015 e 2017 por encomenda. Odeio escrever. Não gosto do processo. Com a violência do acting lido bem e gosto. A escrita não tem muito a ver comigo (risos). Mesmo assim escrevi um texto chamado As Mãos, a partir de uma tragédia de Heiner Muller chamada Mauser sobre o fracasso de uma revolução. É um texto sobre ternura. Falta ternura na nossa sociedade. E eu contra mim falo. Às vezes sou uma besta, contra mim próprio e as pessoas que me amam.
Consegues viver da profissão? Há anos muito bons financeiramente e outros muito maus. Em Dezembro do ano passado, em cinco dias ganhei mais do que este ano todo. É super desnivelado. Exige muito cuidado nas despesas. É preciso amar muito a arte para nos sujeitarmos a um vencimento que não é certo, a menos que se tenha uma vida privilegiada com uma família com muitas posses. Ou se formos um fenómeno da cultura popular. 
Gostavas de o ser? É o que tiver de acontecer. Há dez anos talvez me fizesse confusão. Hoje não me parece que seja um problema. Não vivo nada mal com a privacidade e ser um actor de nicho. Daqui a dez anos gostava de ter mais estabilidade na profissão, tenho essa crença e espero continuar a fazer trabalhos com que me identifique e me estimulem. 

Alverca já merece um cineclube 
Ficas triste por não haver um cinema na tua cidade? Há uma sala no centro comercial Scala que está fechada e bem poderia ser usada para funcionamento de um cineclube. Gostava que houvesse. A cidade merece. Que se mostrassem sessões intimistas, encontros de actores e se fizesse trabalho com as escolas. Aceito fazer curadoria de borla nesse cineclube caso ele avance. 
Vila Franca de Xira merecia ser cenário de mais ficção nacional? Sem dúvida. Somos um concelho lindíssimo. Alhandra é das terras mais bonitas do país. Adoro a vista da igreja, as casas, a fábrica, adoro Alhandra. Os cenários suburbanos são muito mal representados nas novelas. Há poucas ficções a ser contadas no subúrbio e há muita coisa que acontece dentro das casas. Temos muitos talentos que partiram daqui. O Albano Jerónimo, a Maria João Luís, entre outros… 
Depois de uma crise, uma pandemia e agora uma guerra. Estás apreensivo quanto ao futuro? A cultura preocupa-me sempre, estejamos em vacas gordas ou magras. Há uma questão educacional qualquer contra a cultura em Portugal que não consigo entender. Um por cento do Orçamento de Estado para a cultura é ofensivo para o país. Acredito que as pessoas têm direito a ver mais coisas e a ter mais possibilidades de escolha do que os quatro canais, reality shows e redes sociais. Há espaço para tudo mas não devia haver uma hegemonia da baixa cultura, academicamente falando.

Um “santo na terra” que virou actor 

Isac Graça tem 31 anos, é natural de Alverca do Ribatejo e ainda vive na cidade. Estudou na Secundária Gago Coutinho e elogia o papel dos professores no percurso que teve. Diz ter vindo de uma família “de novos ricos”: os avós fugiram de Salazar para Inglaterra e foi lá que a sua mãe estudou, numa escola de artes. Ainda assim, Isac Graça é o primeiro da família a ter ingressado nas artes. “Não era um miúdo rebelde. Era um santo na terra. Muito calado, bom ouvinte, a roçar o tímido. Ainda continuo a precisar da minha solidão e do meu tempo”, confessa.  
Num Verão, quando tinha 15 anos, viu um anúncio da Casa da Juventude de Alverca a dizer que estavam a oferecer cursos de Word, Excel e teatro. “Tirei os três”, brinca. O cinema chegou depois da relação com os Artistas Unidos (AU). Álvaro Correia da Escola Superior de Teatro e Cinema colocou Isac Graça a estagiar nos AU com Jorge Silva Melo e os seus dois primeiros filmes vêm dessa participação. O primeiro chama-se “Melancólica Nostalgia” e ainda não estreou. “Estive a rodar três anos e está há cinco em montagem”, lembra Isac Graça. Desde então já soma 20 filmes no currículo. Já filmou no Brasil, Angola e Portugal. Entra, entre outros, em filmes como “Snu”, “Soldado Milhões”, “Cartas da Guerra”, “A Viagem de Pedro”, “Aparição”, “Verão Danado” e séries de televisão como “3 Mulheres”, “O Atentado”, “Sul” ou “Plano de Fuga”. 
Gostava de trabalhar com Tilda Swinton e como realizador destaca o grego Yorgos Lanthimos. “Tem pontos de vista super-perversos e realistas sobre a realidade. Os filmes dele são grandes desafios para os actores. Prefiro realizadores que confiem em mim mas lido bem com todas as exigências. Fazer um filme é sempre uma descoberta”, conta. O seu filme favorito é “Pierrot le Fou” de Jean-Luc Godard e quando pode gosta de ir aos teatros do concelho ver as peças que ali são apresentadas.
Isac Graça vai agora estar seis meses a rodar o novo filme de Ivo Ferreira, “Projecto Global”, filme que o cineasta já disse ser megalómano à escala portuguesa e focado nas antigas forças FP-25 e que deverá estrear em 2023.

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