Entrevista | 09-11-2022 10:00

José da Graça: o padre de Abrantes que foi afastado das paróquias mas que continua a celebrar missas

José da Graça diz que o processo foi mal conduzido e que não tinha dívidas a instituições

Há pouco mais de três anos foi condenado a cinco anos de prisão, com pena suspensa, por burla e falsificação de documentos. Afastado das paróquias de Abrantes pela Diocese de Portalegre-Castelo Branco, o cónego continua a celebrar missas no concelho de Abrantes e é um dos responsáveis pela construção do lar residencial de Vale das Mós.

Como se sente após três anos da sua condenação e afastamento das paróquias de São Vicente e São João de Abrantes? Foi um momento de muito sofrimento, não tanto por ser dispensado do serviço pastoral em Abrantes, mas pelo modo como fui. Penso que comigo próprio resolvi o problema. Perdoei, mas não esqueci.
Porque não concorda com o modo como foi afastado? Penso que em pleno século XXI os assuntos têm de ser tratados cara a cara, não através de carta. Fui afastado com uma carta com aviso de recepção. Foi violento, abrupto, sem respeito. Pugno e ajudo as pessoas a pugnarem pela sua liberdade, pela sua condição de filhos de Deus mas sempre com um direito: de usarem a sua consciência crítica. Foi desumano e anti-cristão. Não pode ser praticado por si, muito menos por um bispo.
Foi condenado a cinco anos de prisão, com pena suspensa, por burla e falsificação de documentos. O que tem a dizer sobre o veredicto? Pensei sempre que ia ser absolvido. No julgamento as coisas não me correram bem. O meu advogado tinha documentos comprovativos que não devia nada ao Estado. A fiscalização disse que devia dinheiro a instituições, mas por e-mail foi comunicado que não havia dívida nenhuma e o advogado não meteu esses documentos no processo.
Porquê? Não estudou o processo como devia. Nem sequer abriu a instrução do processo, porque se isso tivesse acontecido teria possibilidade de argumentar. Não menti ao tribunal, mas respondi sempre ao que me perguntaram. Não disse mais por ter medo das consequências.
O que quer dizer com isso? Contive-me porque o sistema que utilizava, moralmente, na minha consciência de padre, com o dever de ajudar pessoas, estava a fazer o que devia. Eu explico: se havia um drogado ou alcoólico que me aparecia, não o podia admitir. Tinha de organizar o processo para mandar para os serviços oficiais e isso poderia demorar cerca de um ano a ser resolvido. Entretanto as pessoas andavam como queriam. Até lhes tinha de dar dinheiro para o tabaco, para os medicamentos.
O que faz actualmente? Só deixei de ser pároco. O senhor bispo não me tirou qualquer faculdade do exercício sacerdotal, desde a celebração de Eucaristia, baptizados, casamentos, funerais, tudo! Não tenho é responsabilidades na paróquia.
Como é o seu dia-a-dia? De manhã vou tomar café à cidade, por volta das 08h30. Depois venho para casa e dedico-me à leitura e à escrita de alguns artigos até à hora de almoço. Volto para casa e saio para celebrar a Eucaristia no Rossio ao Sul do Tejo. Sinto a necessidade de celebrar a minha fé. Quando era pároco este estilo de vida era impensável. Não tinha tempo nem era capaz. Deus vai-nos dando as forças e as graças necessárias para cada momento da nossa vida.
Sentiu sempre apoio da comunidade? Sempre disse que sim ao senhor bispo, que a comunidade estava comigo, mas ele disse-me: “a comunidade está toda contra si. O senhor tem meia dúzia de amigos que andam à sua volta e mais nada”. Foi aí que me senti ofendido. A comunidade sentia a minha entrega, não apenas às causas sociais, mas à actividade pastoral. Procurei estar sempre atento e criar iniciativas nesta comunidade por iniciativa pessoal. Procurei ter sempre esta comunidade numa atitude de inquietação porque fui sempre um homem inquieto.
É visível a sua mágoa com a Diocese de Portalegre-Castelo Branco. O senhor bispo tinha acabado de fazer uma visita pastoral a Abrantes, andou aqui oito dias comigo. Visitámos todas as instituições. Então ele não via a maneira como eu era acolhido, como as pessoas mostravam estar comigo? A seguir afasta-me sem dizer nada… O processo foi mal conduzido.
Ainda sente o apoio das pessoas na rua? As pessoas quando me vêem rejubilam. “Não o vemos, onde é que está?”, dizem-me. Há muita gente que nem sabe que ainda estou a viver em Abrantes. A ideia que têm é que fui proibido de qualquer actividade sacerdotal mas continuo a exercer o meu ministério quando me pedem, estou sempre disponível para colaborar. A única coisa que deixei de ter foi a paróquia. Ainda recentemente fiz dois baptizados aqui em Abrantes.

“Manuel Valamatos era uma criança quando o conheci”

Nasceu no concelho de Nisa, mas tem uma costela ribatejana. Claro. Estou no concelho de Abrantes desde 1970. Quando fui afastado das paróquias pensei que podia prestar serviços que fazem falta à comunidade. Assim como os bispos são obrigados a pedir a resignação aos 75 anos, penso que os padres também deveriam ser obrigados. Mas há tanta assistência religiosa que se pode fazer depois dos 75: na orientação espiritual, no acolhimento de doentes no hospital…
Está também ligado à Associação Social A Mó e a Água. O lar residencial, um investimento de mais de três milhões de euros, já é quase uma realidade… Espero, se as coisas não se complicarem, que o interior esteja concluído no final do ano. Este era um projecto que eu tinha nos anos 80 para Vale das Mós. Estive lá desde 1974 até 1980, quando fui para a Universidade Católica. Enquanto lá estive construí uma creche, um jardim-de-infância, um centro de dia, uma casa e um salão paroquial. Tinha o sonho de fazer um lar. E tinha terreno para o fazer. Quando saí, acabou. Agora, diante desta situação do meu afastamento, pensei que não poderia estar aqui a dar cabo da minha cabeça e a morrer aos poucos. Era um sonho que tinha e nunca esperei poder concretizá-lo. Criei com mais duas pessoas a Associação a Mó e a Água e lançámo-nos na construção do lar. É já uma IPSS e foi apoiada pelo PRR (Plano de Recuperação e Resiliência).
Como é a sua relação com o presidente da Câmara de Abrantes? O Manuel Valamatos era uma criança quando o conheci. De vez em quando ia lá almoçar a casa deles. Depois quando vim para Abrantes e ele era já vereador dei-me sempre com ele, é uma pessoa que estimo. Ele vive os problemas das pessoas. Há situações que poderia até passar para outros, mas faz questão de os resolver por si próprio.

A pedofilia na Igreja

Como vê a Igreja dos dias de hoje, com toda a polémica à volta da pedofilia? A Igreja tem de aprender a ser lógica. Não pode pregar a verdade e a justiça para os outros e viver numa ilusão. As pessoas pensam diferente, não é como há 50 anos. Quando se começou a falar de pedofilia dentro da Igreja, para mim era totalmente impensável que esse problema fosse uma realidade. Fiquei totalmente surpreendido com o que nunca imaginei ser possível. A Igreja é de Jesus Cristo e se não fosse o Espírito Santo a conduzi-la já teria acabado, esta barca já tinha ido ao fundo.
Alguma vez sentiu algum tipo de divórcio entre a população e a Igreja? Enquanto estive nas duas paróquias as igrejas estavam sempre cheias. Os tempos agora são outros, mas enquanto fui pároco não senti esse divórcio. Agora já não estou no meio e não me devo pronunciar.
Porque é que a Igreja da Encosta da Barata nunca foi construída? Foi um sonho que teve início nos finais dos anos 80; havia um grande aglomerado de pessoas que necessitava de uma referência religiosa. A primeira acção que fizemos foi um arraial para angariar fundos. Entretanto, a câmara cede-nos terreno, mas dinheiro para a construção não havia. Surgiu depois a necessidade de construir um Lar, que existe agora no terreno que seria para a igreja. Aceitei que o lar fosse ali construído se me dessem a garantia que me davam outro terreno para a igreja.
O que aconteceu depois?
Só a boa vontade e a persistência da então presidente da câmara, Maria do Céu Antunes, que foi contra o parecer dos arquitectos paisagísticos, permitiu que me fosse cedido um terreno situado num lugar belíssimo. Ficaria a igreja, o lar que lá está, a unidade de cuidados continuados, o jardim-de-infância e a creche. Mas não foi fácil, houve uma guerra muito forte, porque a assembleia municipal tinha de se pronunciar sobre a venda simbólica desse terreno. Cederam, mas com uma condição: seria para construir uma igreja e salas de formação. Ora, para fazer a escritura com a câmara tive de pedir licença ao senhor bispo, que despachou, ele próprio, esse pedido favoravelmente. O que é que acontece depois? Encomendo o projecto, porque tinha cinco anos, se não o terreno revertia para o município, foram umas dezenas de milhares de euros, e envio novamente para a Cúria, para autorização da construção. Aí, a Diocese e o senhor bispo entenderam que não, que não era preciso uma igreja.
Porque mudaram de opinião? É uma decisão tão aberrante que não consigo entender. O senho bispo foi-me dando desculpas esfarrapadas, dizendo que aquilo deveria ser um centro pastoral e não uma igreja. Hoje em dia ainda não percebo o que é que ele quis dizer.
Como está a sua fé? A minha fé não diminuiu. Foi a fé que me levou a ter esta atitude, de passar por um tempo de deserto. Os frades costumam passar pelo tempo de deserto para encontrarem o tempo de silêncio, de recolhimento, de leitura, de meditação, da solidão orante. Fui buscar aí essa atitude para me encontrar comigo mesmo para me esvaziar de mim próprio e ao mesmo tempo para uma purificação interior. Gosto muito da frase do profeta Oseias: “Conduzir-te-ei ao deserto e aí falar-te-ei ao coração”.

“Sou mais ribatejano que alentejano”

José da Graça nasceu numa aldeia chamada Arneiro, no concelho de Nisa. Casualmente foi para o seminário, porque nunca teve catequese. “Na minha terra não havia catequese, não havia missa. Só me lembro de ver um padre na festa de Verão, na procissão, ou nos funerais, que eram cantados”, recorda. Arneiro era uma aldeia pobre, esquecida, que na altura nem água tinha, só depois de a barragem do Fratel ser construída é que começou a haver.
O antigo pároco frequentou o seminário no Gavião, Alcains e em Portalegre. “Quando chegou a altura de entrarmos em Teologia, fazia-se sempre o retiro dos exercícios de Santo Inácio. “Eu e mais dois colegas decidimos abandonar, numa loucura de juventude, que era ir para a tropa”, recorda com nostalgia.
“Seríamos alferes e iríamos para o Ultramar, era esse o plano. O padre Vital, jesuíta, disse-me apenas a mim que deveria ficar. Os outros dois deixou-os ir embora”. Começou a celebrar missas em Ponte de Sor e na Sertã como co-adjutor; depois ingressou na Paróquia de São Facundo. “Desde os anos 70 que por aqui estou. Sou mais ribatejano que alentejano.”
José da Graça é da opinião que a Igreja tem tido papas “extraordinários”, com facetas diferentes, desde Paulo VI, até ao Papa Francisco, passando por João Paulo II e Bento XVI. “O Papa Francisco põe o dedo na ferida, seja em que aspecto for. É um homem inquieto que luta para que esta seja a Igreja de Jesus Cristo”.

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