Entrevista | 24-04-2022 18:00

O ensino universitário não pode acomodar-se

Ana Costa Freitas no seu gabinete na Universidade de Évora em Maio de 2021 quando realizamos esta entrevista

Ana Costa Freitas foi reitora na Universidade de Évora até muito recentemente. Em entrevista a O MIRANTE a propósito de um projecto falhado para a Fonte Boa assumiu que o ensino universitário não se pode acomodar e que o ensino presencial é bom para os professores mas é ainda muito melhor para os alunos que assim podem aprender muito mais na partilha de conversas e ensinamentos.

A Universidade de Évora sente o impacto da pandemia? Sei que muitos alunos estrangeiros se inscrevem e depois passam metade do ano sem frequentarem as aulas.
Não é na Universidade de Évora, é de forma global. Os estudantes inscrevem-se, mas ainda não têm visto; depois surgem sempre outros problemas. E há muitos que querem o visto de estudante para entrarem no país e depois não põem cá os pés. É uma questão que acho que é transversal a todas as universidades.
Também nas outras universidades da Europa?
Temos mais dificuldade em captar alunos da Europa porque estamos mais longe. A Europa central é mais fácil para os alunos. Com o programa Erasmus conseguimos muitos alunos. Agora com a pandemia deixaram de vir.
E ao nível do corpo docente. Um dos problemas dos politécnicos é a falta de qualificação dos professores. Como é que se faz a renovação?
Temos feito uma renovação muito grande. Não estamos distraídos e sabemos que esse é um problema que tem que ser resolvido todos os dias.
Portanto, não está preocupada.
Estou sempre preocupada porque todos os anos tenho muita gente a aposentar-se também. Estou preocupada, mas penso que temos que manter a abertura de concursos para início de carreira. É um facto que a média de idades dos docentes do ensino superior é muito alta.
Que balanço faz desta guerra em que a Universidade de Évora esteve envolvida com a abertura de mais cursos na área da medicina? Segundo sei, foi uma guerra que fez mossas …
Não, connosco não houve guerra. Abrimos uma escola de saúde e desenvolvimento humano que, a médio prazo, poderá vir a propor um curso de medicina. Temos um curso de doutoramento em Ciências e Tecnologias da Saúde que já foi aprovado. Temos um curso de Biologia Humana, que já tínhamos, vamos propor um novo curso de licenciatura para o ano e temos outro doutoramento que estão a ser preparados. A medicina exige mais ponderação e corpo docente, que ainda não temos. Fomos realistas e ganhamos a nossa batalha.
Era importante ter a área de medicina na Universidade de Évora ?
É uma área que atrai muitos alunos. Há estudos que dizem que quando as pessoas fazem a sua formação numa determinada região a sua tendência é ficarem nessa região. Não há dúvida que precisávamos de médicos na região do Alentejo e, portanto, acho que fazia todo o sentido. Estamos a tentar preparar a formação mais para a parte da medicina geral e familiar, medicina para idosos, porque são as áreas que consideramos mais carentes no Alentejo.
Chocou-a a história de Odemira e dos trabalhadores a viveram em pocilgas e todos ao molho?
Chocou-me. Toda a gente sabe e está farta de saber da realidade. Choca-me mais o discurso oficial por parte dos políticos, de dizerem que a culpa é dos agricultores porque não há empresa nenhuma, nem sequer o Estado, que seja capaz de assegurar aos seus funcionários alojamento em condições. Se o Estado em Lisboa for ver onde moram todos os funcionários, alguns provavelmente também não tem muitas condições de vida.
O problema de Odemira é um problema que estava associado à Máfia que transporta aquela gente. O problema de Odemira não tem nada a ver com imigração ilegal porque eles entram e rapidamente têm uma autorização de residência, com contrato etc… e depois saem. O problema de Odemira é não sabermos como somos tão facilmente uma porta giratória para a entrada na Europa. O resto é folclore para os telejornais. Aquelas pessoas viviam em condições que são sub-humanas, é vergonhoso, mas já se sabia.
Como vê a evolução do ensino universitário tendo em conta que a realidade mudou e mudou ainda mais ao nível do mercado de trabalho?
Essa era uma coisa que já era evidente antes da pandemia. O ensino universitário não pode acomodar-se. É por isso que o professor universitário deve fazer investigação. A investigação faz com a pessoa transporte para o modelo de ensino o seu espírito de curiosidade e de investigação. O que faz com que, quando damos uma aula, tenhamos o cuidado de saber e perceber como é que os alunos reagem, se aquela turma deste ano é igual à do ano passado, etc, etc…
Um professor de jornalismo tem que ter a experiência de trabalhar numa redacção de um jornal, é isso?
Eventualmente, mas os professores universitários têm de fazer investigação ao mesmo tempo. A avaliação tem a ver com a avaliação das aulas e da investigação que é feita. O que se passou na pandemia é uma grande lição.
As aulas à distância não são suficientes para formar pessoas?
Agora que os alunos estão a voltar percebe-se melhor a realidade. É um problema muito mais profundo do que se pensava. É um problema para a cidade, que tem menos gente. É um problema para quem aluga quartos, para os adultos que deixam de ter a convivência da universidade. A convivência faz muita falta. Não é só entre adultos, é entre toda a comunidade académica. De conversa em conversa passam-se muitos conhecimentos e experiências. É fundamental que os alunos voltem todos.

“O que sei da Fonte Boa é que tudo aquilo são ruínas”

Esta entrevista tem cerca de um ano e foi realizada no gabinete de trabalho de Ana Costa Freitas na Universidade de Évora quando O MIRANTE começou a procurar respostas para o investimento de que se falava na Fonte Boa. O que circulava em Santarém era que os parceiros do projecto para o Centro de Excelência para a Agricultura e Agroindústria nunca tinham reunido, nunca estiveram organizados, nunca tiveram um líder, o que fazia adivinhar a falência do mesmo, apesar de já haver cerca de 6 milhões de euros garantidos dos fundos comunitários. Esta conversa com Ana Costa Freitas não deixa dúvidas: há gente na política e nos organismos do Estado que brinca com o fogo e que faz gato-sapato de quem lhes confia os destinos do país. A entrevista só é publicada hoje depois dos desenvolvimentos conhecidos que O MIRANTE trouxe a público. Ana Costa Freitas acabou entretanto o seu mandato como reitora tendo sido substituída no cargo nas eleições realizadas no dia 31 de Março (ler notícia nesta edição).

O assunto principal que me traz ao seu gabinete é saber o que pensa e o que tem feito pelo projecto, de que a sua universidade faz parte, que está candidatado e com fundos comunitários aprovados para a Fonte Boa, em Santarém?
Primeiro que tudo não sei de que projecto é que está a falar.
O Centro de Excelência para a Agricultura e Agroindústria da Fonte Boa.
Acho que é um laboratório colaborativo que querem construir.
Segundo sei, do pouco que sei, é que é um projecto para apoiar a investigação. Aliás, a fazer fé no nome, Centro de Excelência para a Agricultura e Agroindústria, parece que não é preciso explicar muito mais….
Conheci a Fonte Boa noutros tempos. Está uma ruína. Os milhões que estão aprovados são praticamente para recuperar instalações. E o resto: alojamentos para os investigadores, fazer contratações num mercado onde não há investigadores, etc, etc… Essa conversa que a universidade queria liderar não é verdade. O que aconteceu foi que, no início do programa-quadro, o então presidente da CCDR disse que para haver esse projecto a Universidade de Évora tinha de entrar. É evidente por causa do contexto e da capacidade científica que a universidade tem nessa área. Nunca acreditei muito no projeto porque o projeto estava assente no facto de que a Fonte Boa era uma instituição de referência. Foi, já não é. Era preciso começar do zero. Basicamente é isto. A Fonte Boa é uma ruína, foi uma instituição de referência na área da investigação animal, mas houve um desinvestimento nos laboratórios do Estado. E nada se faz sem pessoas. Em Évora temos o MED – Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento da Universidade de Évora, com parceiros que incluem o Instituto Politécnico de Beja, a Universidade do Algarve, uma unidade de investigação da Universidade de Ciências da Faculdade de Lisboa e uma unidade de investigação da Universidade Nova de Lisboa.
Já sei, já passei pelo Campus da Mitra.
Aquilo é um laboratório social único em Portugal. Trabalham ali mais de 300 investigadores, todos contratados. Se pensarmos neste projecto e tivermos a noção do que ele vale vamos fazer o quê ali ao lado? Temos que criar redes; este país é muito pequeno para construirmos capelinhas. Acabamos de nos candidatar a um novo e importante projecto de investigação.
Não respondeu à pergunta inicial. Tem ajudado a boicotar o futuro Centro de Excelência para a Agricultura e Agroindústria da Fonte Boa?
Não; e até sou capaz de adivinhar quem lhe disse isso. Não tenho nada contra o projecto nem nada contra a localização. O que defendo é a necessidade de não duplicarmos coisas e de criarmos sinergias e uma rede de instituições. Mesmo este laboratório social, com 300 e tal investigadores, sediado na Universidade de Évora, se calhar é pequeno à escala europeia. Portanto, é necessário que ele tenha imensas ligações com o exterior. Fui uma das grandes impulsionadoras destes laboratórios associados. Na altura não tinham nenhum laboratório associado e agora a Universidade de Évora é líder em laboratórios associados. Acho que isso é fundamental. Como é que me vêm falar de recuperar as infra-estruturas da Fonte Boa em Santarém se falta tudo o resto, que é o mais importante. Faltam os equipamentos, faltam as pessoas. O equipamento para fazer a investigação é muito caro e muda constantemente. Não faz sentido também cada instituição ter o seu equipamento. Cada vez mais, enquanto infra-estruturas temos de criar uma plataforma para dar acesso dos nossos equipamentos ao exterior. Assim como nós fazemos isso, as outras universidades também, portanto não vamos duplicar trabalho e investimento. Para ser verdadeira não fazia ideia que o projecto estava parado.
Uma das pessoas a quem ouvi falar do assunto foi ao presidente da Câmara de Santarém, Ricardo Gonçalves, que se lamenta da falta de liderança das associações empresariais e universitárias dizendo que os políticos não podem fazer aquilo que compete às outras instituições e à sociedade civil.
Não tenho respostas para si. Não sei o que se passa em Santarém. O que lhe sei dizer é que este país tem um código de contratação pública que é perfeitamente horroroso. Fazemos o caminho das pedras e depois de tanto trabalho com projectos, os licenciamentos chegam ao fim e vai tudo por água abaixo.
Está a querer dizer-me com todas as letras que é parceira de um projecto de muitos milhões de euros e tudo o que tem acontecido lhe tem passado ao lado?
Não faço ideia, sinceramente. Sei que houve de princípio a ideia de concertarmos estratégias, fazermos coisas em colaboração e parceria, e foi por isso que resolvemos aderir. Mas não boicotamos nada. Temos trabalho que nos chega; quer dizer, precisamos de coisas, mas não precisamos de estar a implicar com pessoas. Não faz sentido nem faz o meu género, nada disso. Acho é que, neste grande território que é o Alentejo e o Ribatejo, as coisas deviam ser todas articuladas.
Mas tendo em conta o facto de a Universidade de Évora ser líder nesta área da investigação faz sentido a aliança convosco?
Faz sentido, sim.
Não há aqui uma guerra de lideranças?
Não, não, nesse projecto não temos liderança nenhuma.
Nem querem ter?
Nada. Não queremos nada que não querem que tenhamos. Por exemplo, somos sócios do laboratório colaborativo situado em Elvas, liderado pela Universidade Nova de Lisboa. Fomos nós que quisemos ser parceiros e eles aceitaram. Esse também está em obras, tem alguns contratos, mas está a avançar, mas o líder é a Universidade Nova, não sei o que estará a fazer enquanto líder de projecto nem me interessa.
O CAM é um projecto que não incluiu a área agro-industrial?
Não, é tudo à volta da sustentabilidade, alterações climáticas, agricultura, etc.
E é mais fácil financiar projectos por causa das parcerias e dos laboratórios colaborativos?
Temos os laboratórios colaborativos são associações de universidades com empresas, o que facilita o modelo de financiamento. Depois há o financiamento dos organismo do Estado. O que acho é que esta dispersão, sem ser uma coisa concertada no terreno, não faz muito sentido, mas as pessoas lá sabem.
Toda a gente anda à procura dos apoios e sustentabilidade….
Eu sei. A minha questão é se faria sentido investir 5 milhões na recuperação de edifícios. O laboratório colaborativo em Elvas teve financiamento inicial para a área dos recursos humanos. Para a construção tiveram que ir à CCDR. Eles fizeram a construção, mas já tinham o outro financiamento do laboratório colaborativo.
Sobre o projecto para a Fonte Boa não sei se têm os recursos humanos altamente qualificados, mas se os contratam vão trabalhar para onde se ainda não começaram as obras e estamos a chegar ao fim de todos os prazos para aproveitarmos os fundos comunitários?
Sinceramente, não sei o que lhe dizer. O que sei dizer é que essa conversa de que a Universidade de Évora devia ser líder não é verdadeira. Mas que tem que ser envolvida por tudo o que já é o seu trabalho, isso eu acho que fazia sentido, mas se as pessoas acham que não faz sentido…quem sou eu para as contrariar.
Como é que vê e julga a unidade do território alentejano e ribatejano ? Acha que há mesmo unidade? Não era melhor o Alentejo e o Ribatejo ligarem-se a Lisboa, ao Poder Central?
Não. Não podem. Estamos a falar de coisas diferentes.
A maior parte das instituições do Alentejo não falam com as do Ribatejo e, no entanto, empobrecem a cada dia que passa.
Esta inclusão do Ribatejo na NUT2 só tem a ver com os fundos. É só isso e eu percebo.
Percebe?
Segundo as regras que conheço percebo. Mas já não percebo porque é que, por exemplo, Trás-os-Montes e Alto Douro estão na região do Porto e, no entanto, têm os fundos como nós. A Área Metropolitana do Porto está suficientemente desenvolvida portanto há aqui alguma incongruência.
Mas o Ribatejo e o Alentejo complementam-se?
O Alentejo tem uma região de sequeiro imensa e o Ribatejo tem aquela zona da Lezíria que é completamente diferente. Não há dúvida que as realidades complementam-se.
E ao nível do ensino e das instituições de ensino?
O Instituto Politécnico de Santarém, Beja e o de Portalegre fazem parte do Parque do Alentejo de Ciência e Tecnologia.
Então nalgumas situações a ligação entre territórios vai-se fazendo.
Acho que o Ribatejo nunca se sentiu muito incluído no Alentejo. Pessoalmente tenho mais afinidade com o Ribatejo do que com o Alentejo. Sou de Lisboa mas tenho uma casa perto de Santarém, em Alcanede, conheço melhor o Ribatejo. Também estou no Alentejo há muitos anos, mas dá para perceber as diferenças de pessoas e de modos de vida. Mas todos nós temos de co-existir.
A deriva demográfica é tanto alentejana como ribatejana.
Sim, é verdade, e isso tem que ser uma das nossas grandes batalhas para o futuro.
A zona mais desertificada do país é a zona centro logo a seguir a Abrantes.
Sim, exactamente, sei do que fala.
Voltando à Fonte Boa. Tendo em conta que os prazos para a concretização do projecto se vão esgotando, mesmo assim ainda acredita? O MIRANTE tem procurado saber o estado das coisas por uma senhora muito simpática que nos atende o telefone e fala em nome do INIAV, mas não há respostas para as nossas perguntas há quase um ano?
É uma senhora? Não é um senhor?
Não, em Santarém é uma senhora. O senhor de que está a falar é o presidente do INIAV que, pelos vistos, deve andar a viajar desde que começamos a querer saber sobre o assunto.
Sim, o tempo é muito escasso. E mesmo se não fosse devemos ter em conta que, agora, depois do lançamento do concurso público, as empresas que concorrem, e não ganham, reclamam. É atrasos em cima de atrasos. Dos 5 milhões que serão financiados não sei quanto é a parte do projecto. Não adivinho nada de bom. Volto à Fonte Boa: acho que recuperar aquele espaço histórico faz sentido mas não devemos misturar nem fazer as coisas em cima do joelho.
Voltamos a bater no ceguinho?
Portugal é um país cheio de desigualdades. A política para resolver isto tem de ser uma política concertada e uma política nacional. Não vamos a parte nenhuma com esta forma de governar o território.
Portugal é cada vez mais Lisboa e o resto é paisagem.
Exactamente. Temos agora a possibilidade do teletrabalho, dos jovens quererem ir para sítios em que estão mais à vontade, onde vivem melhor, têm menos trânsito, têm menos poluição. É a grande oportunidade de fixarmos pessoas fora dos grandes centros. O emprego do turismo é uma coisa muito bonita, mas não chega e não queremos ter 40% da população com mais de 20 anos e formação superior para depois terem empregos que são para pessoas praticamente sem formação ou sem formação superior.

A primeira mulher a dirigir uma universidade fundada em 1559

Ana Costa Freitas foi durante os últimos oito anos reitora da Universidade de Évora tendo sido a primeira mulher a ocupar o cargo da instituição fundada a 1 de Novembro de 1559 pelo Cardeal D. Henrique, Arcebispo de Évora, mais tarde Rei de Portugal. Ana Costa Freitas é professora catedrática do Departamento de Fitotecnia, Escola de Ciências e Tecnologia e tem uma carreira profissional que passou pelo gabinete de conselheiros políticos do presidente da Comissão Europeia, em Bruxelas, entre 2011 e 2013, entre muitos outros cargos de relevo. Escreve com regularidade na comunicação social. Nasceu em Lisboa mas conhece bem Santarém e o seu meio, onde também morou quando frequentava a sua casa em Alcanede.
“Valorizar, ouvir, aprender e entender os outros, e nunca esquecer que são os nossos valores, o nosso julgamento, a nossa empatia, a nossa escuta e o nosso entendimento que nos tornam humanos”, é uma das suas máximas que pode ser encontrada junto com informações importantes do seu currículo numa página da internet.

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