Entrevista | 17-03-2022 10:00

“O Tejo é filho enjeitado do desenvolvimento económico do país”

Miguel Relvas

Miguel Relvas numa entrevista política, já sem ser político, onde chama nomes ao actual líder do PSD, Rui Rio, e elogia Pedro Passos Coelho, com quem fala quase todos os dias. Uma entrevista onde o ex- ministro adjunto e ex-secretário de Estado que promoveu a fusão das freguesias abre o livro da sua vida e recorda o tempo em que era a referência política da região ribatejana. Uma conversa onde se fala do passado, mas o que mais fica no ouvido é o presente que passa pela guerra na Ucrânia, o futuro e o presente na Europa, a maioria absoluta do PS e os amigos e conhecidos.

Rui Rio simboliza no PSD a azinheira que já não sabe a sua idade?
Rui Rio foi líder do PSD quatro anos, teve quatro derrotas em eleições nacionais. Nunca provou o sabor da vitória. Rui Rio vai deixar o PSD muito pior do que quando o recebeu. Pior que isso: a sua liderança não só não foi capaz de somar eleitoralmente, como foi delapidando valores dentro do PSD fazendo exclusões. Os grandes partidos aglutinam, federam linhas de pensamento, posicionamentos políticos. A verdade é que o próximo líder do PSD vai ter um trabalho mais difícil pela frente porque Rui Rio vai deixar o partido mais coxo, a exemplo da sua liderança igualmente coxa.
Como é que se tira de lá o homem?
Naturalmente e com tempo. Não consigo encontrar uma razão para que isso ainda não tenha acontecido. Rui Rio reconheceu que não era mais útil ao PSD, então porque é que ainda lá está? Quer ser útil ao PS? Não há outra interpretação depois do que ele disse na noite das eleições. Prolongar o seu mandato só pode ser por razões estranhas aos interesses do partido. A verdade é que o PSD hoje é um partido mais pequeno.
Muitos defendem que a actual geração de políticos é a mais bem preparada de sempre. Se é assim porque é que Portugal continua na cauda da Europa?
A afirmação é verdadeira, mas está desfocada da realidade. Hoje os melhores não vão para a vida política, seguem a sua actividade profissional. A vida pública é muito escrutinada e não é propriamente uma área onde se pague bem, pelo contrário, paga-se muito mal e isso é razão para que os melhores optem por ficar de fora da política.
Já era assim há 20 anos.
Não, houve uma inversão. Hoje um salário de um ministro ou de um deputado é inferior àquele que era há 15 anos. Não é de bom tom dizer que os titulares de cargos públicos e cargos políticos ganham mal. Não é popular mas é a verdade; e vamos pagar caro por isso. Não podemos querer a ganhar tostões pessoas que gerem milhões. Esta é que é a questão. Gerem o nosso bem comum, o futuro do nosso país, da nossa terra, do nosso concelho. Acho que essa é uma avaliação que as democracias ocidentais têm de fazer.
É por isso que os Ministros mandam menos que os presidentes dos IEFP’s e de outros organismos públicos? A falta de lideranças políticas resolve-se com dinheiro?
A vida profissional no sector privado é muito mais aliciante nos dias de hoje, muito mais desafiante do que a vida pública. Tenho pena porque sou de uma geração de grandes políticos. Não sou nada saudosista, mas lembro-me bem do tempo em que fui eleito deputado pela primeira vez; só ao fim de 6 meses é que me aproximei da primeira fila do Parlamento. Quem vai para deputado nos dias de hoje no segundo dia vai falar sentado na primeira fila. Lembro-me com respeito dos deputados que se sentavam nesses lugares, do PS ao PCP, ao CDS e ao PSD, e só via grandes figuras da sociedade portuguesa. Cada um que tire as suas conclusões, mas na minha opinião o acesso ao Parlamento está mais facilitado a pessoas sem qualidades políticas à altura dos desafios que temos pela frente.
Estamos a falar de tempos em que o espírito da Revolução de Abril ainda movia moinhos.
Aprendi muito com esses dirigentes políticos, que tinham uma visão para o país, e era um tempo em que se dialogava, criavam entendimentos, os acordos não eram vistos como cedências. Hoje vivemos um tempo mais revanchista, um tempo de redes sociais, onde há pouco tempo para reflectir, menos tempo para dialogar, para defender o interesse público, procura-se uma disputa em vez de se procurar um entendimento.
Vivemos um tempo de vedetas das redes sociais?
Diria que hoje é mais fácil ser-se notícia. Hoje um post no facebook vale como iniciativa política. Os políticos estão mais mal preparados, sabem pouco sobre o que é uma visão integrada do desenvolvimento do território. Onde se nota muito isso é nas autarquias. Quando eu era um jovem secretário de Estado, em 2003, e Portugal foi assolado por fogos, lembro-me do meu entendimento permanente na Chamusca com Sérgio Carrinho. Ao fim de 6 meses estávamos a inaugurar as habitações novas para as vítimas dos fogos, sem polémica, sem combate político.
A qualidade dos governantes diminuiu?
Sim, não sei, o resultado final das políticas não indicia nada de bom.
Chegou a sonhar ficar conhecido na política pela fusão das freguesias, pelo Pina Manique dos novos tempos. Está tudo a um passo de se desmoronar?
Acabei com 1.600. O país não ficou pior, pelo contrário, as freguesias passaram a ter maior dimensão. Acabou-se com 20 mil cargos políticos desnecessários. Já se passaram 8 anos, já se passaram duas eleições autárquicas.
Que balanço é que faz?
O Partido Socialista quando governa cede a todas as tentações; é da sua tradição. A única maioria absoluta que o PS teve até hoje terminou com Portugal na bancarrota. E porquê? Porque as pessoas são incompetentes? Não. Porque têm dificuldade em apontar um caminho e contrariar os interesses instalados na sociedade portuguesa.
Perdeu amigos com esse processo da fusão das freguesias?
Não, tinha a certeza que era o caminho certo. Só tenho pena de não ter conseguido mais fusões.
Se tem dado o passo para a fusão dos concelhos teria sido liquidado politicamente?
Esta reforma foi negociada pelo PS com a Troika, não é obra do PSD. Nós pagámos as consequências, tivemos de tomar as medidas impostas. Oito anos depois estas freguesias têm mais dimensão, têm mais musculatura, têm mais meios e têm mais condições para servir o cidadão. Essa é a questão central para mim. Sem querer ser saudosista gosto de lembrar que tinha um bom entendimento no distrito com Jorge Lacão. Norteava-nos o interesse de servir a nossa região e o nosso distrito e havia um limite para o combate político. A discussão à volta da navegabilidade do Tejo é um bom exemplo. Hoje há menos opinião e mais oportunidades para se dizer aquilo que se quer ouvir.
Essa história da navegabilidade do Tejo foi chão que já deu uvas. Agora o projecto é muito mais ambicioso.
São ciclos. Penso que Portugal tem duas grandes debilidades estruturais derivadas do facto de não termos sabido aproveitar os fundos comunitários. Uma delas é a rede ferroviária; todos os países ricos e desenvolvidos do mundo apostaram na linha férrea. O outro exemplo é a navegabilidade dos rios. A Holanda é um exemplo típico, a França também e nós não fomos capazes de o fazer. O rio Tejo é um filho enjeitado do desenvolvimento económico do país. O Tejo podia trazer muito mais a Portugal, na agricultura, na mobilidade, também na própria energia. A verdade é que esses projectos estruturantes foram sendo abandonados substituídos por projectos pontuais. Temos hoje uma boa rede de estradas, uma boa rede de centros de saúde, o edificado não é o problema de Portugal, pelo contrário, até temos a mais. Nem os países ricos têm três hospitais como nós temos numa pequena região como o Médio Tejo. Se me perguntar se o Miguel Relvas também contribuiu um pouco para isso digo que sim. Hoje teria outra atitude.
Foi o PSD e Cavaco Silva que perderam a oportunidade até hoje adiada de fazerem a reforma administrativa do país?
Todos temos culpas. Portugal era um país muito atrasado antes de entrarmos no Mercado Comum e mais tarde na União Europeia. A verdade é que fomos capazes de desenvolver o país; o problema é que foi sempre a carregar na despesa pública. Por isso é que chegamos a um tempo em que os remédios para todos os males é aumentar impostos. Estamos numa situação quase insuportável para a classe média.
Mesmo assim temos 60% dos portugueses que pagam seguro de saúde.
Sim, mas também temos muitos portugueses com sub-sistemas que são públicos. A pandemia veio mostrar a eficácia do nosso SNS. Isso não significa que não se tenha de reestruturar. Portugal é um país pequeno o que facilita a unidade territorial; por isso é que eu sou contra a regionalização.
Mas há 20 anos…
Nunca defendi a regionalização, sempre fui contra. Estou convencido que esse será um marco distintivo dentro de dois anos.
Se bem me lembro foi o ministro Miguel Relvas que acabou com os governadores civis?
Fui eu, sim.
Qual era a ideia?
Deixe-me explicar: os autarcas dizem que querem a descentralização mas na verdade não querem, querem é dinheiro. Muitas das competências que estão nas câmaras municipais deviam passar para as comunidades intermunicipais e para as áreas metropolitanas. O município de Santarém tem condições para exercer competências que os municípios de Alpiarça e Chamusca não têm. A delegação de competências faz-se a nível do Governo mas depois também ao nível autárquico; dou-lhe um exemplo: qual é a lógica de cada município da área metropolitana de Lisboa ter uma polícia municipal? Não tinha muito mais lógica uma polícia metropolitana? Os municípios não deviam transferir para as duas comunidades intermunicipais a programação cultural? Teriam mais iniciativas e menos custos. O que me custa mais é que as novas gerações tenham regredido, nalguns casos estejam outra vez ao nível das mentalidades das velhas gerações.
A desertificação é um bom pretexto para essas decisões políticas. Os municípios não querem perder as suas associações, o seu corpo de bombeiros, os seus centros de decisão porque isso faz perder ainda mais população…
Mas não perdem. A verdade é que o crescimento e a consolidação e o fortalecimento das regiões é feito pela actividade económica. Vocês, como jornal e como empresa, são um bom exemplo. O MIRANTE passou de um concelho, duma sub-região, para uma região, até aos dias de hoje em que já começou a tratar questões nacionais. Esse é o caminho que tem de ser feito. A verdade é que foi o único caso na nossa região na área da comunicação social. Todos os outros foram caindo. Até os jornais das paróquias que tinham muito peso há 30 anos foram desaparecendo.
Já voltamos à comunicação social. Na sua opinião os descontentes do PSD foram em maior número para a Iniciativa Liberal ou para o Chega?
O PSD é por tradição um partido muito tolerante e muito aberto. O grande problema foi ter, nestes últimos quatro anos, um líder que afunilou o partido; em vez de unir desuniu. O centro político, de que o PSD e o PS fazem parte, é habitado por um eleitor exigente, um eleitor que quer viver melhor. Esse eleitor vota PSD ou PS conforme o valor político das propostas dos partidos. Com a saída de Rui Rio o PSD tem de ser capaz de voltar àquilo que sempre foi, um partido que aceita, e até promove, várias correntes, umas mais conservadoras, outras mais progressistas. Quando é que o PS perdeu eleições? Quando se fechou. Exemplos: Ferro Rodrigues, Vítor Constâncio, José Sócrates. O CDS acabou no dia em que Assunção Cristas teve 20% em Lisboa numas eleições autárquicas e achou que também podia governar Portugal. O PSD de Rui Rio seguiu-lhe o exemplo rejeitando entendimentos à direita.
Quem é o melhor candidato ao lugar de Rui Rio?
Os líderes são como os melões. Rui Rio depois de aberto mostrou que não era grande coisa. Teve uma liderança coxa. Foi líder de um grande partido durante quatro anos e conseguiu deixar o PSD pior do que encontrou; em quatro anos Rui Rio só teve a experiência das derrotas.
O facto de ter sido secretário-geral do PSD ainda lhe garante alguma autoridade política nas hostes social-democratas?
Fui secretário-geral com três líderes: Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e Pedro Passos Coelho. Ganhei e perdi eleições, mas sempre atrelado às minhas convicções.
Acha que ainda está a tempo de voltar a um lugar de decisão dentro do partido ou prefere o lugar de senador que parece já uma marca do seu discurso?
Prefiro ser um senador sem mandato. Estou disponível para ajudar o meu partido, e o líder do partido, se assim for a sua vontade. Tenho uma actividade profissional exigente e uma família. Voltei a casar; tenho um filho com 3 anos e uma filha com 7. A minha vida nos próximos 20 anos terá que ser uma vida de trabalho intenso; não terei direito àquilo que seria normal aos 60 anos que era começar a pensar na reforma. Comecei uma vida nova embora não esqueça que tenho uma filha com 30 anos. Viajo muito e estou fora do meu país durante muito tempo. Acho que quem desempenha cargos públicos não pode viajar tanto como eu viajo.
Um senador influente com espaço na comunicação social faz mossa?
Dou um terço das entrevistas que me pedem. Abri uma excepção para O MIRANTE por uma razão de afecto e também de consideração. Não podemos passar a vida a dizer que devemos valorizar e realçar aquilo que está próximo de nós, que fazemos há muitos anos, e depois não darmos esse contributo. Tenho muitos convites da imprensa mas selecciono. Falo quando tenho algo para dizer, não falo por falar. Já passei essa fase da minha vida quando era obrigado a muitas intervenções políticas. Aprendi com muita gente do PSD. Tive um aliado político na região, uma pessoa que estimo e considero muito, o professor Mário Albuquerque, que foi sempre o meu apoiante número um, e ainda é meu amigo. Não esqueço o que aprendi com o doutor Pereira da Silva e a solidariedade e o companheirismo do José Eduardo Marçal. Nunca precisei de pregar rasteiras a ninguém para atingir os meus objetivos políticos.
Há-de ter por aí alguns inimigos…
Tenho os meus inimigos, claro, alguns de estimação. Tenho orgulho da actividade política que desempenhei no distrito, até 2010. Foi com as minhas equipas que pela primeira vez ganhámos o Entroncamento. Foi comigo e com as minhas equipas que, pela primeira, vez ganhámos Santarém. A capital do distrito nunca tinha sido presidida pelo PSD. Deu muito trabalho. Quando cheguei a presidente da distrital do PSD dizia-se que o PSD estava condenado a ganhar apenas algumas câmaras a norte do Tejo. Por isso a minha primeira atitude foi fazer tudo para que o PSD ganhasse o Entroncamento. E conseguimos. Depois pensei: não vou abandonar a vida política local e distrital sem ganhar a Câmara de Santarém. Podem tirar-me todos os tributos, todos os méritos, mas este ninguém me tira. Passado estes anos finalmente ganhamos o Cartaxo, coisa impensável. O PSD teve excelentes candidatos, como foi o caso de Vasco Cunha, e não ganhava, parecia impossível. Afinal um dia foi possível.
Voltamos às questões nacionais que marcaram a sua passagem pelo Governo. Ainda é a favor da privatização da Caixa Geral de Depósitos?
Nunca defendi a privatização da Caixa Geral de Depósitos. O Governo onde eu estava defendia a abertura do capital que depois foi apelidado de privatização. Mas devo-lhe dizer, com o funcionamento tradicional e habitual da Caixa Geral de Depósitos, o cidadão paga as mesmas taxas que paga nos outros bancos. A CGD não existe para trabalhar de forma diferente da banca privada e isso deve ser lembrado em tempos de governos socialistas. Quando o país atravessou a crise económica a CGD emprestou mais à Isabel dos Santos e à Pescanova do que às grandes empresas portuguesas. Vale a pena ter um banco público para emprestar dinheiro à engenheira Isabel dos Santos e aos espanhóis da Pescanova que depois não pagam o que devem?
Posso deduzir que isso se aplica à TAP e à RTP?
Naturalmente. A RTP é completamente desnecessária. Sempre o disse. Um serviço público que não faz serviço público. Uma televisão para uma minoria que na maior parte das vezes está a ver os canais privados. Eu até evoluí na altura para o processo de concessão do serviço público. Importante era ter uma boa RTP Internacional e uma boa RTP África. Desafiei na altura accionistas e presidentes da SIC e da TVI para que, em conjunto com a RTP, construíssemos um canal internacional de língua portuguesa, e de África em especial, em canal aberto. Não teve efeito. A TAP nem tem discussão. A verdade é que vamos gastar mais de quatro biliões por uma companhia aérea que não vai resistir aos tempos que estamos a viver. O mundo não pode ser visto com os olhos e os óculos e as lentes de há 20 anos. Hoje qualquer Ryanair da vida chega aqui e destrói uma companhia aérea com a maior das facilidades. E quem é que a destrói? Os próprios consumidores que vão viajar com preços imbatíveis para aeroportos secundários com uma mobilidade e facilidade que não havia dantes.
Não o choca que o Governo abandone o futuro aeroporto em Alcochete e que alguém defenda que o futuro aeroporto seja em Beja?
Hoje onde houver passageiros haverá companhias. Há 30 anos podia haver passageiros e não havia companhia aérea. Hoje voamos para cidades importantes da Europa e não voamos na TAP ou na Ibéria. As companhias aéreas de bandeira têm importância numa visão global, mas também são alianças globais. Eu viajo muito pelo mundo inteiro e o meu binómio da decisão é preço aliado à qualidade, não vou pela nacionalidade da companhia aérea, vou na que me oferecer melhor preço com a melhor qualidade. A Emirates e a Qatar são um bom exemplo. Há 30 anos a Emirates era uma pequena companhia, a Qatar quase não existia; hoje são as duas companhias de referência no mundo. Porquê? porque o mundo mudou.
Relativamente ao aeroporto…
Sempre fui um adepto do aeroporto de Lisboa, pela simples razão que já somos, no contexto europeu, um país periférico. Portanto, como somos um país periférico, quanto mais nos afastarmos do centro da Europa mais longe ficamos do mundo. Acho que deve haver um aeroporto regional e a opção Montijo não me choca como aeroporto regional, para os voos das lowcost, os voos de curta e média duração. Assim poupamos o aeroporto de Lisboa para aquilo que ele deve ser. Num Governo de que fiz parte, a Emirates queria fazer um voo entre Dubai, Lisboa e São Paulo e nós vetamos. Sabíamos que tínhamos de dar alguma protecção à TAP porque essas companhias são muito mais competitivas. A TAP precisa de um aeroporto em Lisboa, não precisa ao lado.
Voltando à questão da comunicação social. É visível que os jornais perderam importância, os despedimentos nos grandes grupos de comunicação social acabaram com mais de metade dos empregos…
Um país pequeno paga mais estas realidades porque não tem mercado. E em Portugal os jornais não se modernizaram. Hoje leio muito, sou obrigado a ler muita imprensa fora do país pela minha actividade profissional, sou assinante de vários jornais e gosto de ler no papel, mas a grande questão é que a imprensa não se modernizou porque os custos são altos. Dou o exemplo da CNN em Portugal; uma marca forte que já passou à frente da CMTV e da SIC Notícias. A imprensa regional quase morreu, são poucos os jornais que têm dimensão, foram muito vítimas das políticas autárquicas e dos conflitos locais. Hoje as autarquias apoiam menos a imprensa regional e estão a cometer um erro. A Europa tem que encontrar uma solução para atacar o poder dos motores de busca que vivem do trabalho dos outros. A Europa não pode ficar de gatas perante os interesses dos grupos americanos.
A América também já não é o que era dantes…
A pandemia veio mostrar isso. As farmacêuticas são americanas, mas a inteligência é europeia. Esta guerra que estamos a viver já fez mais pela Europa, infelizmente pelas piores razões, do que aquilo que foi feito ao longo dos últimos 30 anos. Nada mais será igual na Europa. Como diziam os romanos: “queres paz? tem força”. Se queremos ter paz na Europa temos que ter força.

A corrupção combate-se com uma justiça eficiente e rápida

A Operação Marquês, o caso BES, BPN, o Negócio dos Submarinos, etc, etc, são processos que não ficam a dever nada à acção de uma Máfia instalada em Portugal. Miguel Relvas, às vezes, é associado a algumas destas pessoas envolvidas nos negócios que deram origem a estes mega-processos.
Desempenhei os cargos de elevada dimensão no país. Quando fui presidente da Comissão de Obras Públicas no Parlamento tinha que falar com ministros do PS; quando fui secretário de Estado tive que falar com presidentes de bancos, tinha toda a gestão das autarquias, quando fui ministro tinha a maior parte das pastas do Governo, tinha que estar no meio. Para mim a corrupção combate-se com uma justiça eficiente e rápida. Gabo-me de em 30 anos de vida política nunca ter tido processo nenhum. Nunca fui arguido. O combate à corrupção é um combate fundamental. Ninguém é obrigado a vir para a vida política e, portanto, quem está na vida política e na vida pública tem que estar de consciência tranquila e tem que partir no dia seguinte ao início de uma outra vida. Hoje diria que estive demasiados anos na vida pública. Quando saí iniciei uma vida nova fora do país porque me sentia com muitas limitações. Enquanto governante mexi com quase todas as áreas da vida pública portuguesa. Comecei a trabalhar fora de Portugal e ainda hoje trabalho fora de Portugal e não tenho qualquer preconceito com isso.
Como é que se motivam mais e melhores quadros para a vida pública portuguesa para fazer face aos políticos dos negócios e aos que só fazem figura de corpo presente?
Com tabelas de vencimentos que favoreçam aqueles que ganham mais na vida privada e que abdicam dessa vida para servirem o país. Hoje a Constituição não deixa diferenciar mas no futuro devia deixar para que aqueles que têm uma vida profissional mais recheada e com mais sucesso também possam vir para a vida pública. Deveria ser estabelecido um máximo e um mínimo para podermos premiar os melhores. Como as coisas estão hoje vamos continuar a mobilizar para a vida política apenas os que ganham menos.
Houve uma altura da sua vida, quando saiu da política, que se assumiu como lobista. Acha mesmo que isso é uma profissão?
Nunca me assumi como lobista. Enquanto estive na política dei sempre conta das minhas declarações de rendimentos. Aliás fiz declarações até durante o tempo em que fui afastado por Manuela Ferreira Leite, eu e Pedro Passos Coelho, entre 2009 e 2011. Fui afastado e lembro-me bem que a minha declaração de rendimentos não era diferente de anos anteriores.
Não acredita que há negociatas dos deputados enquanto representantes do povo… mas a realidade prova o contrário.
Enquanto estive na vida política sempre defendi os interesses da minha região. Quando estou a defender os interesses do distrito de Santarém estou a defender os interesses das empresas do distrito. Penso até que nesse tempo isso era visto com alguma naturalidade. Ai do deputado que não defendesse os interesses do seu distrito. Ai do deputado que não defendesse as empresas da sua região. O que nós notamos hoje é que ninguém defende nada. Hoje é tudo muito híbrido. Continuo a ler a imprensa da região e a verdade é que não vejo debate político. Não vejo conflitualidade, no bom sentido, é tudo muito paroquial.
Com a queda do BES quase que chegou a banqueiro.
Quando saí da política tive que iniciar a minha actividade profissional. Nem tudo deu certo. Hoje só trabalho no mercado internacional. Sempre achei que só podemos fazer a diferença se gerarmos desequilíbrios. O senhor Nabeiro construiu uma empresa de referência mundial numa aldeia no interior do Alentejo. Temos de saber gerar desequilíbrios. Numa fase inicial pensei que faria mais trabalho em Portugal; depois percebi que não valeria a pena, que haveria sempre quem me atirasse pedras, portanto não trabalho em Portugal, escolhi outras opções e não estou arrependido.
Isso custa-lhe quantas horas de avião por mês?
Muitas. Faço uma média de duas viagens intercontinentais por mês. Custa-me muitas horas; como tenho filhos pequenos venho sempre passar o fim-de-semana a casa e depois regresso. Passo uma semana na Índia, depois um fim-de-semana em Lisboa e sigo para o Brasil. Na próxima semana vou para Doha, no Qatar, e depois vou para Maputo e volto a Lisboa. Cá estarei no sábado, Dia do Pai, a abraçar os meus filhos.
Não são viagens intermináveis?
Não tenho problemas com as viagens. Durmo em qualquer lado, não sou uma pessoa muito exigente; basta-me um livro ou um filme e passo o tempo com muita facilidade; não tenho complexos de aeroporto.
Não inveja o seu amigo Passos Coelho que agora é só professor universitário?
Não. Hoje fomos almoçar. Almoçamos muita vez, falamos todos os dias. Ele saiu depois, tem outra atitude, tem uma vida mais tranquila que a minha. A minha vida é com muito mais velocidade, mas também sempre fomos diferentes. Costumo dizer que hei-de morrer como vivi: a correr.
No almoço de hoje falaram da futura liderança no PSD?
Falámos mais da guerra e que solução é que pode haver para este conflito.
Que não passa pela diplomacia portuguesa.
Não, todos sabemos isso. Sou um dos que acha que a China pode ter aqui um papel muito importante. A China precisa que o mundo goste dela porque vende para todo o planeta. A Rússia só vende gás e petróleo. Sem a China, a Rússia terá o dobro das dificuldades do que aquelas que tem hoje.
Acha que o problema da Ucrânia se resolve com uma mediação chinesa?
A mediação chinesa pode ser muito importante. A diplomacia só vencerá se encontrar uma forma airosa para que a Rússia não saia de rastos desta invasão. A China pode ter aqui um papel muito importante porque tem uma lição a dar ao mundo; esquecendo o Tibete, que era um caso interno, a China nunca invadiu, foi sempre invadida. Cada dia que passa esta guerra traz pobreza, desequilíbrios e é certo que vamos ter uma corrida às armas. A Europa andou muito preocupada com o seu umbigo e não se preparou para estes confrontos e mesmo assim ainda temos a Europa a falar a várias vozes com regimes populistas e nacionalistas na Polónia, na Hungria e na Roménia. A Europa cresceu muito; a Europa a 27 foi construída demasiado depressa e de forma errática.
Aquela fase difícil que passou por causa da licenciatura que, hoje, com 60 anos, certamente não lhe serve para nada, não podia ter sido evitada?
Foi uma coisa organizada. A verdade é que hoje teria feito tudo diferente. A vida é o que é. Não sou de olhar para trás e ficar a chorar sobre leite derramado. É claro que ninguém gosta, mas também me deu força. Foi isso que me deu força para ir à luta. Acha que é fácil, depois de vários anos na vida pública, sair e começar uma vida nova e fora do país, em mercados grandes e adversos? Óbvio que a vida política também me ajudou porque me deu a possibilidade de conhecer muita gente.

Fui massacrado na comunicação social por gente que hoje é uma simpatia comigo

Foi massacrado na comunicação social.
Fui massacrado na comunicação social por gente que hoje é uma simpatia comigo. A vida é o que é.
Perdeu mais amigos ou ganhou?
Os que perdi e os que ganhei são conhecidos. Tenho um filtro muito grande para os amigos. De verdade não tenho muitos amigos, tenho muitos conhecidos. Nunca fui uma pessoa de vinganças, não sou pessoa de ficar a remoer. Os amigos no distrito de Santarém, já os tinha antes desse caso, os conhecidos também. É como lhe disse, só lhe dou esta entrevista porque é para o vosso jornal, de outra forma não a teria dado porque acho que parte da minha vida política também foi feita com O MIRANTE e, portanto, não tenho estados de alma nessa matéria.
Perdeu o gosto e o prazer de visitar Tomar, comer e dormir na sua antiga cidade?
Não. A vida é que me obriga a outras opções. Pelas minhas contas visitei todos os municípios de Portugal ao longo dos anos na política. Dei certamente 20 voltas a Portugal em funções governamentais e partidárias. Hoje fico muito por Lisboa, já que viajo tanto, para tão longe e tenho filhos pequenos, o que conta muito.
Diga-me três coisas que está proibido de se proibir a si próprio…
Beber um bom vinho, ler um bom livro e aceitar uma derrota do Sporting.
O meu avô ficou conhecido na terra onde nasceu por usar a frase “desconfiança certa”. Tem muitas desconfianças dessas em relação aos seus amigos?
Sou muito intuitivo e, portanto, já fui enganado algumas vezes por pessoas de quem gostava e também já fui enganado por pessoas de quem não gostava. Tenho uma certeza: a amizade não tem tempo. Fiz boas amizades em cinco anos e descobri más amizades de 30 anos. Aquela ideia de que uma boa amizade é uma amizade de infância para mim não tem sentido.
Por que é que não escreve para os jornais e prefere o comentário televisivo?
Gosto do comentário televisivo e mesmo assim evito. Viajo muito, não quero ter a obrigação de ter que dar opinião todas as semanas. De vez em quando escrevo artigos de opinião sobre temas de actualidade. O que não quero mesmo é ter a obrigação de escrever ou comentar com a regularidade que a actualidade impõe.
Obrigava-o a ler coisas que não lhe interessam mais…
Continuo a ler, o que interessa e o que não interessa; em Portugal, mas também no Brasil, porque trabalho muito no Brasil. Nesta altura estou a ler a biografia de Lula da Silva, que me foi oferecida pelo próprio com dedicatória. E estou a lê-lo porque tenho de me manter actualizado. Leio três jornais brasileiros por dia. Leio mais informação económica do que informação política. Estou menos treinado nessa área apesar de já ter algum treino destes anos. Sinto-me bem no fato em que estou, não tenho ambições para além daquilo que é o meu trabalho no dia-a-dia.
Ainda tem amizade e relacionamento com Lula da Silva apesar de já não ser presidente do Brasil e de tudo o que se passou com ele?
Tenho a maior consideração pelo presidente Lula da Silva. Apesar de ser de uma família política que não é a minha, Lula da Silva tem algo que respeito muito e que aprecio: gosta muito de Portugal. Quando estávamos no Governo ele ofereceu-se para ajudar Portugal. Já não era presidente do Brasil, mas ofereceu-se para encontrar investidores para virem a Portugal. É muito difícil alguém encontrar uma palavra minha contra Lula da Silva; é um amigo genuíno de Portugal.
Acha que ele vai ganhar as próximas eleições no Brasil?
Se a terceira via não for capaz de encontrar um candidato, capaz de se unir à volta de uma figura, penso que Lula da Silva pode ganhar e logo na primeira volta. Diria até que é mais fácil poder ganhar na primeira volta do que depois numa segunda.
Faz sentido o nome de Marques Mendes para líder do PSD?
Não. Marques Mendes hoje gosta daquilo que faz e acho que já deu para este peditório.
Passos Coelho pode ser candidato à Presidência da República nas próximas eleições?
Pedro Passos Coelho tem o seu património político intacto. Aqueles que o atacaram pelas medidas que foram tomadas, sem que ele tivesse a responsabilidade de termos chegado à quase banca rota, foram injustos. A verdade é que Portugal se recuperou num tempo recorde. A crise desta guerra vai demonstrar que em Portugal não há muita gente preparada para o desempenho de funções políticas em situações difíceis. Quem já resolveu uma crise pode resolver outras.
Esta maioria absoluta do PS vai permitir que António Costa tenha uma vida mais fácil no próximo Governo?
Conheço bem António Costa, não acredito em conspirações por causa da maioria absoluta do PS, negociei com ele quando era presidente da Câmara de Lisboa. Mas gostava de deixar claro que o problema não é António Costa, mas o partido: o PS com maioria ou sem maioria tem muitas dificuldades em tomar medidas difíceis. Vamos ver ser haverá estabilidade na Europa e em Portugal ao longo dos próximos quatro anos. Estou convencido que o efeito desta guerra vai ser devastador. Acho que vamos ter situações mais delicadas. Estamos perante uma guerra real, uma guerra que desconstrói as pessoas, que desconstrói a dimensão da sociedade, a dimensão humana. E hoje não é como há 70 anos em que só viemos a saber do Holocausto muito tempo depois. Agora a guerra é em directo.
Voltando a Passos Coelho: vai ou não ser o candidato do PSD em situações difíceis?
Não tem nenhuma obrigação de regressar. Digo-o mais como amigo do que como político. Mas é claro como a água que poderá regressar se ele entender que tem algo para oferecer ao país. Aí sim, terá todo o meu o apoio.
Voltando à guerra para acabarmos a entrevista sem darmos a conversa por terminada…
Gostaria muito que a Europa aproveitasse este momento para se fortalecer. O que a Europa precisa de ter são forças de segurança como as que nunca teve. A fiscalidade é um mau exemplo desta Europa dos 27. Cada Estado penaliza os seus cidadãos à sua maneira para beneficiar os estrangeiros. Os franceses vêm para Portugal para pagar menos impostos. Os portugueses vão para Inglaterra. Os ingleses vão para Malta. Os espanhóis vêm para Portugal. Eu se for para Espanha deixo de pagar 56% de impostos e passo a pagar menos de um terço. Isto é normal? Não é normal. A política fiscal na Europa é para nos andarmos a enganar uns aos outros. Isso resulta numa Europa dos egoísmos. E essa Europa dos egoísmos está a viver uma guerra inesperada, a nossa geração nunca viveu de perto nada parecido. Sabemos dos traumas de uma guerra como esta em África, na Ásia, no Médio Oriente, nunca tivemos nada disto tão perto das nossas fronteiras. Tenho muitos amigos que se recusam a ver telejornais, recusam-se a ser confrontados com a realidade. Há muita gente que não está a querer ser confrontada com a realidade. A Polónia e a Ucrânia são as grandes vítimas. A História demonstra que se a guerra for de um lado, a população foge para o outro. O que se passa na Ucrânia é muito violento; e a forma como se apresenta o conflito diariamente nas televisões dá a ideia de que passou a haver um lobo mau e um lobo bom. Sabemos que nas guerras todos passam os limites. A verdade é que a Ucrânia foi invadida sem qualquer justificação.

À Margem

O senador

Miguel Relvas está mais calmo e sereno quando conversa e explana as suas ideias. Não admira; a sua vida nos últimos anos deu uma volta; esta conversa durou cerca de uma hora e foi transcrita quase sem cortes o que prova a maturidade do seu discurso político e o à vontade para falar de todos os assuntos. Tal como em outras entrevistas que lhe fizemos ao longo dos anos não houve assuntos proibidos nem fugas a perguntas.
Muita coisa mudou na vida deste homem que durante muitos anos foi a maior referência política no distrito de Santarém. Miguel Relvas não é uma figura que gere unanimidade mas a sua postura nunca é agressiva e chega até a ser brincalhona quando se sente à vontade com os seus interlocutores. Depois de uma vida política intensa dedicou-se aos negócios; faz questão de dizer que só trabalha no estrangeiro porque assim sente-se confortado por não lhe poderem atirar pedras. O seu trabalho obriga-o a fazer, no mínimo, duas viagens intercontinentais por mês. Fora os restos. Mas não se queixa; pelo contrário. Depois de voltar a casar refez a sua vida; aos 60 anos tem dois filhos, de 3 e 7 anos, que são o seu maior orgulho. Nem por isso deixou de manifestar satisfação por já ter uma filha de 31 anos a trabalhar num dos melhores escritórios de advogados de Lisboa por mérito próprio e reconhecido.
Miguel Relvas é uma figura incontornável da vida política dos últimos 30 anos. Foi secretário-geral do PSD no tempo de três líderes (Durão Barroso, Pedro Santana Lopes e Pedro Passos Coelho), deputado durante várias legislaturas, secretário de Estado e ministro por duas vezes. Os problemas na liderança do seu partido serviram de mote para início de conversa, mas Miguel Relvas assume que se sente cada vez melhor no papel de senador e que agora só quer ajudar o PSD a renovar-se para continuar a ser uma referência na vida política portuguesa. JAE.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1657
    27-03-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1657
    27-03-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo