Identidade Profissional | 21-03-2022 21:00

O menino dos pés descalços que se fez empresário em Samora Correia

Carlos Boto é o proprietário da Multiregas em Samora Correia

Carlos Boto ia descalço para a escola em Samora Correia e aos 14 anos o pai fez dele ajudante de ferreiro. Foi à tropa e foi mecânico de automóveis. Há 20 anos que não tem férias. Hoje vai a caminho dos 81 anos e não há quem saiba tanto de sistemas de bombagem de água na região como ele.

Carlos Boto é um homem que nunca teve medo do trabalho. Aos 80 anos continua a agarrar-se a ele como se a vida não fizesse sentido de outra forma. Passou pela idade da reforma sem dar por ela, orgulhoso da empresa que fundou há 43 anos em Samora Correia: a Multiregas – sistemas de bombagem e equipamentos, que continua a ser uma referência para os agricultores da região.
Vontade de ficar com o corpo estendido num sofá não a tem. Se não está a tratar de um orçamento e fazer contas de cabeça está a cuidar da horta e das árvores de fruto que ocupam o terreno junto à empresa. A memória, confessa, já vai enfraquecida mas ainda não o trai, pois não falha uma tarefa agendada para aquele dia. “Os médicos já me disseram para abrandar, mas a verdade é que há 20 anos que não tiro férias”, diz.
Carlos Boto fala sentado à secretária coberta de papéis e cadernos onde desenha tudo o que vê numa prospecção a um terreno de um cliente, para que no momento de seleccionar o tipo de bomba submersível não erre. E nunca erra, pelo menos não tem memória do dia em que tal aconteceu. “É um trabalho que requer muita tarimba e precisão. Além disso, o material que se fornece tem que ser de qualidade para que cumpra a sua função e tenha durabilidade”, explica enquanto vai virando as páginas do caderno.
O filho tem sido o seu braço-direito na empresa. Não fosse ele e com “tanta falta de mão-de-obra” já tinha fechado portas. Neste momento precisa de “duas ou três pessoas para trabalhar”, mas ninguém aparece com essa intenção. “Vêm para pedir estágios e depois vão-se embora ou vêm através do centro de emprego pedir que lhes carimbe a folha. Sinceramente não sei onde é que isto vai parar, tanto nesta área como noutras como a carpintaria não há quem queira aprender”, diz desiludido. Vale-lhe ainda o neto que entre as férias e o tempo que sobra da faculdade vai “deitando a mão”.
Alegra-se a contar como deixou de ser mecânico de automóveis, negócio que montou com um irmão mais velho, para fundar a Multiregas. A história é curta: “Um dia vi o meu sogro tirar água com um balde de um poço com mais de 20 metros de profundidade. Levava tanto tempo que lhe disse que ia fazer uma bomba para puxar a água e fiz”. A partir daí viu a enorme potencialidade de negócio que tinha à sua frente e agarrou-a. “Foi uma novidade, as pessoas vinham de todo o lado para comprar as minhas bombas submersíveis. A palavra espalhava-se e nem telemóveis havia”.
O empresário era tão entendido na matéria que chegou a viajar até à fábrica da Grundfos, na Dinamarca, para sugerir como melhorar o rendimento de uma bomba submersível. Há muito que já deixou o fabrico e apostou em cinco marcas entre as milhares presentes no mercado internacional. Mas o nicho de mercado mais forte continua a ser a montagem de sistemas de rega para a agricultura, embora também seja requisitado para instalar esses sistemas em jardins, aplicação de bombas em furos de água e assistência a habitações com canalização de água sob pressão.

Em casa de ferreiro
aprende-se o ofício
Na infância os pés andavam descalços, sem medo de pisar o gelo e as poças de água a caminho da escola. Estudou até à quarta classe. Entre a matéria que tentava absorver e os minutos que o pai lhe dava para a brincadeira tinha que “cumprir as obrigações”: dar de comer aos animais, regar a horta e “tocar o fole que dava ar à forja para puxar lume para aquecer o ferro”, material que o seu pai moldava para dar forma a ferramentas agrícolas.
Ainda hoje tem o lábio marcado por um pedaço de ferro que saltou no seu tempo de aprendiz, que não durou muito, pois aos 15 anos ficou a tomar conta do negócio após a morte do seu pai. “Ainda hoje não sei como fazia com aquela idade, e sozinho, entre 10 a 15 machadas de tirar a cortiça por semana”, atira.
Carlos Boto vem de uma época em que não havia água canalizada e o banho era tomado uma vez por semana dentro de um alguidar. Hoje, partilha, sofre com o desperdício de água. “A seca é preocupante e há cada vez mais quem faça furos de captação de água exagerados, a 200 metros de profundidade e com uma pressão de 200 metros cúbicos por hora. É um perigo para a Humanidade”, alerta, explicando que no terreno constata que em detrimento disso os furos menos profundos estão a ficar sem água.

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