O MIRANTE | 04-03-2021 20:00

“As pessoas acham que para terem saúde basta fazerem análises e tomarem uns comprimidos”

“As pessoas acham que para terem saúde basta fazerem análises e tomarem uns comprimidos”
ESPECIAL PERSONALIDADES DO ANO
Personalidade do Ano Excelência - Nuno Catorze

O médico intensivista Nuno Catorze, director da Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Médio Tejo, localizada no hospital Manoel Constância, em Abrantes, organizou o seu serviço e a sua equipa de médicos, enfermeiros e auxiliares, para dar resposta a solicitações de outros hospitais no decurso da pandemia, tendo conseguido triplicar a capacidade de resposta e colocá-la acima da média nacional.

Com a pandemia os políticos começaram a olhar mais para o Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

O SNS nunca foi esquecido. Mas foi envelhecendo e esqueceram-se de o reanimar. A sua criação foi uma vitória, com as suas capacidades de universalidade e gratuitidade. Foi uma conquista do espírito de Abril, permitindo que quem residisse em Portugal, independentemente do seu credo, raça ou rendimento, pudesse ser tratado com equidade e de forma igualitária. Agora, é óbvio que houve um desgaste progressivo, com envelhecimento das estruturas, dos meios técnicos e de recursos humanos.

Isso fez crescer os privados e os seguros de saúde?

Os serviços de saúde privados estão a mostrar, ao contrário do que acontece no público, que se obtêm lucros enormes a fazer as mesmas coisas. Não se percebe porque é que há políticas diferentes no público e no privado, por exemplo ao nível da contratação, ou da compra de material.

Está a ser reforçado o SNS?

O que aconteceu no Serviço Nacional de Saúde, com a pandemia, foi o esperado. Em Março de 2020 percebíamos que não íamos conseguir dar uma resposta. Chegámos a Janeiro de 2021 e foi o completo descalabro. O SNS ganhou recursos técnicos, mas esqueceram-se dos recursos humanos que eram insuficientes e continuam a ser. Para conseguirmos ter a medicina intensiva a funcionar tivemos de deixar de ter cirurgias programadas e vamos pagar um preço extremamente alto por isso.

O que é preciso fazer?

Ao longo dos anos, o Serviço Nacional de Saúde cresceu de acordo com as necessidades pontuais e identificadas. Paralelamente os privados foram complementando as necessidades, as faltas do SNS. Quando chegámos a um momento de ruptura percebemos que em nenhum lado havia os recursos humanos que eram necessários. Há que repensar e recriar o SNS.

É promíscuo um médico acumular funções públicas com privadas?

Não, desde que não haja interposição de horários e que se consiga manter os níveis de trabalho semanal que permitam o descanso e o bem-estar dos profissionais e dos doentes, ou seja, de modo a reduzir a possibilidade do erro. Não vejo porque não podem trabalhar nos dois sistemas, desde que isso fique bem claro e seja feito de forma transparente.

O papel do médico já não é visto como antigamente, como o profissional que não é contestado?

Isso tem a ver com os movimentos sociais e com a demagogia que se instalou na sociedade. Há 30 anos os meios de divulgação eram pequenos, não havia telemóveis e não havia uma globalização, também informativa, como actualmente. As profissões que eram muito respeitadas, as que ninguém criticava, eram as de médico, juiz e padre. Com a aposta na formação superior, com o desenvolvimento da informação, a sociedade cresceu e é natural que a visão sobre algumas actividades, que pareciam quase impenetráveis, passasse a ser perto da banalidade. É normal que a imagem fique desgastada, tal como o pouco interesse das pessoas para as áreas das ciências.

A evolução da medicina pode deixar a sociedade mais descansada?

As pessoas passaram a achar que a saúde pode ser comprada e há algum descuido. É mais fácil pagar um seguro e ir fazendo umas avaliações do estado de saúde, tomar uns comprimidos e continuar a comer “fast-food”, do que ter hábitos saudáveis. O desenvolvimento técnico permite oferecer mais serviços às pessoas, mas estas pensam que tudo é fácil. As pessoas também sentem que a saúde é grátis e que há um Estado que olha por elas, o que lhes permite pensar que podem ir para além do que o corpo aguenta.

Esteve a dirigir o hospital de campanha na visita do Papa Francisco a Fátima, em 2017. Foi um reconhecimento do seu trabalho?

O convite para montar o hospital de campanha surgiu também no âmbito de fazer missões humanitárias internacionais com a Cruz Vermelha. Na altura, tinha acabado de regressar de Mossul (Iraque), era necessário certificar equipamentos e recursos humanos para serem validados mais tarde pela Organização Mundial de Saúde e pela protecção civil europeia.

Foi um trabalho importante para o seu currículo.

Já não trabalho para o currículo. Começo a ficar com muitos cabelos brancos e já não tenho físico para algumas coisas. São os mais novos que têm de fazer currículo. Vi esta acção como uma oportunidade de ajudar outros a ficarem com uma estrutura reconhecida e o reconhecimento de um trabalho de equipa.

Um bom médico é o que sabe mais de medicina?

Se um médico tiver de ser só técnico podemos ensinar um computador a fazer esse trabalho, com um conjunto de algoritmos que desencadeiam uma resposta. Para se ser médico é preciso ter-se uma boa parte de emoção, que nos traz a capacidade de vivenciar a vida humana de forma emocional e inteligente e saber crescer com isso. O tecnicismo traz-nos um afastamento da realidade. E um médico também tem que ser um bom comunicador. O bom médico é o que se faz explicar, se faz entender, é aquele que se adapta na sua arte à população e ao que tem para poder ajudar as pessoas.

Como conseguiu que a medicina intensiva de Abrantes se tivesse destacado, com vários elogios, na forma como ajudou os hospitais de Lisboa no combate à Covid-19?

Isso resulta de um trabalho de equipa. Há um ano estávamos a funcionar com nove camas e conseguimos em semanas laborar com quatro vezes mais. Isso conseguiu-se à custa de uma dedicação extrema da equipa, de uma valorização pessoal dos profissionais no âmbito do que acharam que tinham de dar à população. Abrantes, sendo uma zona central do país, seria provavelmente, quando Lisboa ficasse sem capacidade de resposta, um hospital que iria receber doentes da capital. A resposta foi assente nessa perspectiva. Internámos 154 doentes com Covid-19 na medicina intensiva em 10 meses, dos quais 45 por cento eram de fora.

O que é um médico intensivista?

É um médico que é capaz de fazer o diagnóstico diferencial de tratamento e suporte à falência de órgãos quer aguda, quer crónica. Ultrapassando a fase de majoração da doença permitindo que a pessoa possa recuperar, seja num pós-operatório, num quadro de infecção grave, num quadro de insuficiência respiratória... é uma especialidade que abarca todo o saber médico, o saber da doença crítica, da doença aguda e da doença agudizada, permitindo suplementar órgãos e sistemas através de tecnologias existentes.

Consegue evitar ser afectado pelos dramas que passam por um serviço onde estão doentes muito graves?

Em medicina intensiva tem de se decidir e a decisão tem de ser rápida e a mais correcta para a situação do doente, passando pelo estabelecimento de planos terapêuticos. É uma grande pressão em termos profissionais, pessoais e familiares. Temos de ter formas de escapar a esta pressão. Para isso ouço música, leio muito…

E os doentes? Se ouvirem música recuperam mais rapidamente?

Aqui os doentes têm música nas enfermarias. O objectivo é estabelecer uma ligação entre um sentido, a audição, e a capacidade de fazermos entender aos doentes que há alguém a cuidar deles. E isso tem influência na sua evolução clínica. Se identificarmos uma música com uma situação boa ou má por que passámos na vida, isso faz-nos crescer.

Um médico tem que ter fé?

Um médico tem que ter fé, seja no que for. Independentemente do meu tipo de educação, se não acreditarmos que as coisas funcionam de determinada forma e passarmos apenas a dar um pragmatismo simples à nossa vida, a nossa existência e o nosso saber fica com pouco conteúdo.

Mas acredita em divindades?

Acredito numa energia. Apesar da minha religião católica, já vi muita coisa para perceber que nem tudo é linear. Tem de haver algo diferente. A nossa passagem pelo mundo, o nosso crescimento e a nossa capacidade de análise vai mudando ao longo do tempo, precisamente para deixarmos cá alguma coisa. Se a nossa existência na vida é apenas esta pequena passagem, parece-me pouco. É importante deixarmos a nossa história social, familiar, profissional. Se não acreditarmos na nossa continuidade não somos nada.

O médico que se apaixona todos os dias pela medicina

Estudou música durante anos e hoje podia estar a tocar numa orquestra, mas passa os dias a tentar salvar doentes críticos e a lidar com perdas, com decisões que marcam a vida como a de ter de optar se é melhor para o doente reduzir o tratamento ou mesmo deixar de o administrar, como teve de fazer com o próprio pai, internado no serviço de medicina intensiva do Hospital de Abrantes, que dirige desde 2009.

Nuno Catorze, médico há quase trinta anos, intensivista há 20, optou por deixar de estudar música seis horas diárias e descobriu que afinal estudar medicina era mais complicado do que pensava. Mas a paixão pela música está presente diariamente na sua vida. Coloca música para os doentes no serviço porque diz que isso os ajuda a recuperar. No gabinete, onde faz 10 quilómetros de caminhada diária, está sempre a ouvir música. Quando era intensivista no INEM e o mandavam para um acidente grave punha a tocar jazz ou música clássica até chegar ao local.

Nascido em 1967 em Caldas da Rainha, quando os pais ali estiveram a trabalhar transitoriamente, Nuno Catorze entende a vida como um conjunto de opções em que cada uma delas tem um preço. Diz que na medicina se perdem momentos felizes com amigos e família mas que há compensações. “Apaixono-me todos os dias pela medicina, porque estou sempre a aprender e vou chegar à idade da reforma ainda com muita coisa para aprender”.

Em 2008 foi convidado para abrir a medicina intensiva em Abrantes com uma equipa pequena. Vivia então na terra dos seus sonhos, Sintra, e passou a fazer 340 quilómetros de carro todos os dias. As viagens acabavam por servir de descompressão antes de chegar à família, um recentrar. Agora também tem uma casa em Abrantes.

Os pais são ribatejanos. O pai de Marinhais e a mãe de Salvaterra de Magos. Foi durante muito tempo o único licenciado da família, até que a mãe, já reformada, tirou o curso de História.

Considera-se um solitário, realçando que um médico que tenha bem presente as responsabilidades sociais só pode ser solitário. Diz que na profissão não há super-homens e ninguém consegue agradar a todos. Admite que todas as situações nos cuidados intensivos são marcantes de alguma forma e que algumas lhe deram tanta tristeza ao ponto de se sentir quase um falhado. Tem um filho e duas filhas. A mais velha está a tirar medicina.

Mais Notícias

    A carregar...
    Logo: Mirante TV
    mais vídeos
    mais fotogalerias

    Edição Semanal

    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Vale Tejo
    Edição nº 1660
    17-04-2024
    Capa Lezíria/Médio Tejo