Opinião | 30-05-2023 09:05

Fátima e Santiago

Chega-se a Santiago cansado, mas não esfalfado, porque não se caminha o dia todo. Cumprem-se etapas já consolidadas desde o séc. IX, cujas distâncias raramente ultrapassam os 25 km, o que permite descanso, a fruição da paisagem, das pessoas, do património cultural e da história das regiões ( : ) Destarte, a Fátima, cuja peregrinação existe há 100 anos, faltará então a sabedoria dos mais de 1000 anos de Santiago, a consolidação de etapas mais curtas, de percursos bem planeados e sinalizados pelo interior do campo - que evitem as mortes de peregrinos nas bermas de estradas nacionais.

Segundo o dicionário, peregrinar será “Ir em romaria a um lugar santo ou de devoção”, ou “Viajar por terras distantes”. Já caminhar é “andar em determinada direcção”, “percorrer”. Donde, peregrinar é diferente de caminhar, sendo mais do que apenas andar em determinada direcção. Peregrinar, além da dimensão religiosa, é também viajar.

E viajar tem muito que se lhe diga, podendo, desde logo, visar meramente um objectivo lúdico, ou, outrossim, exprimir uma conotação, uma dimensão interior, espiritual - seja religiosa ou de outra natureza -, que muito acrescenta à simples deslocação entre dois pontos. Na realidade, os verbos “ir” e “viajar” podem ser concretizados quer exteriormente - a pé, de automóvel, de avião, etc -, quer interiormente, em jornadas muitas vezes muito mais dolorosas, ou gozosas, do que escalar íngremes montanhas pedregosas.

Uma caminhada pode fazer parte de uma peregrinação ou viagem, mas uma viagem ou peregrinação pode não implicar uma caminhada. Ou seja, mesmo que nunca tenha dado um passo numa caminhada ou numa peregrinação, todo o ser humano é, desde a sua origem, um sonhador, viajante e peregrino.

Daí que denominemos de peregrinos todos aqueles que vemos, ciclicamente, a caminhar nas bermas das nossas estradas e caminhos, em direcção a Fátima ou a Santiago de Compostela.

Enquanto que os de Fátima fazem parte da nossa idiossincrasia, os de Santiago só recentemente se tornaram visíveis em Santarém: percorrem o “Camiño” Português, o segundo mais frequentado dos vários existentes.

Distinguem-se facilmente uns de outros. Os de Fátima, de uma Fé inabalável, vão em sofrimento e, de um modo geral, caminham enquanto há luz, optimizando os dias disponíveis para chegar ao Santuário, em grupos mais ou menos organizados, mais ou menos numerosos, envergando coletes reflectores e são, de um modo geral, portugueses.

Já os de Santiago carregam mochilas, muitas delas com a vieira dependurada nas suas traseiras, a maioria com bastões de caminhada, viajando solitários ou em pequenos grupos, sem coletes reflectores e são - quanto aos que pernoitam em Santarém - na sua maioria estrangeiros.

Existem depois diferenças no espírito e na forma. Chega-se a Fátima esfalfado, após etapas excessivas, repleto de dores e banhado em lágrimas, quer devido ao tão desejado encontro com a Mãe de Deus, quer devido aos imensos sofrimentos corporais de tamanho esforço físico. No limite, muitos peregrinos arrastam-se até ao fim, vencendo padecimentos, bolhas e chagas nos pés.

Sim, chega-se a Santiago também cansado, mas não esfalfado, porque não se caminha o dia todo. Cumprem-se etapas já consolidadas desde o séc. IX, cujas distâncias raramente ultrapassam os 25 km, o que permite descanso, a fruição da paisagem, das pessoas, do património cultural e da história das regiões. Permite, acima de tudo, uma viagem serena pelo interior de cada um, com tempo para a solidão, para a introspecção, para a oração, para o diálogo e para a contemplação. Ah, e claro, e para alguns desafios gastronómicos regionais e locais que vão surgindo...

Destarte, a Fátima, cuja peregrinação existe há 100 anos, faltará então a sabedoria dos mais de 1000 anos de Santiago, a consolidação de etapas mais curtas, de percursos bem planeados e sinalizados pelo interior do campo - que evitem as mortes de peregrinos nas bermas de estradas nacionais -, de mapas e folhetos com informação das etapas propostas, de modo a tornar a peregrinação à Mãe de Deus numa serena e profunda viagem interior.

Não que já não o seja, mas falta dotar os caminhos de Fátima com a dignidade que as autoridades espanholas souberam conceder à mundividência das peregrinações a Santiago de Compostela.


P.N.Pimenta Braz

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