Miguel da Silva Noras: um testemunho de Fé
Miguel da Silva Noras (1927-2023) foi um homem crente, não apenas batizado na Igreja Una Santa Católica Apostólica Romana, mas profundamente crente. Não era de todo uma pessoa clerical. Não me recordo muito dele na missa dominical. Recordo que rumava a Fátima todos os anos, para mau grado do seu problema de saúde.
0 poeta fala do Anjo e da ternura,
a vida da morte e da aventura,
no meio das tentações e da loucura
os incréus vivem sem a sombra dos céus.
Miguel Raimundo
Miguel da Silva Noras (1927-2023) foi um homem crente, não apenas batizado na Igreja Una Santa Católica Apostólica Romana, mas profundamente crente. Não era de todo uma pessoa clerical. Não me recordo muito dele na missa dominical. Recordo que rumava a Fátima todos os anos, para mau grado do seu problema de saúde. Tentei demovê-lo na ousadia dos onze anos, afirmando: “se Deus quisesse peregrinações a pé a Fátima não teria deixado os homens inventar os automóveis”. O seu olhar foi de quem me tinha contado a história e eu não tinha entendido nada. Recordo as histórias bonitas da Bíblia Ilustrada que obteve junto das Testemunhas de Jeová. Depois de o avisaram que essa religião não era a nossa, desconfiado mas seguro, respondeu ao leigo: “A história é igual!”. Profundamente místico, em conversas várias, em plena posse de todas as faculdades, falou-nos de um anjo que lhe disse que ele ainda teria de sofrer muito nesta terra. Se o Anjo incolor do poema de António Gedeão não voltou, o anjo roxo de Miguel Noras não se enganou. Encarava esses problemas não com revolta ou com resignação mas com profunda Fé, Amor e Caridade, devoção por Deus, Jesus de Nazaré, Nossa Senhora de Fátima e o Santo Padre Cruz. Deste último, achava depender a salvação da sua alma com uma certeza divina. Recordo-me de ir visitar o sepulcro de Padre Cruz no Cemitério do Alto da Ajuda, nessa primeira infância.
Na verdadeira última conversa com meu avô Miguel, à qual assistiu emocionado o seu bisneto Bernardo, lembrou-se bem e contou uma estória profana, de bruxas, dois irmãos desavindos e da ganância humana. Ficará para outra oportunidade. A conversa derivou para os caminhos da Fé, sempre ensinando a respeitar todas a crenças, na reciprocidade da verdadeira liberdade. Mostrei uma imagem de Nossa Senhora, Salvé Rainha, que gostei e ele também e me pediu lhe levasse uma promessa que terei de cumprir noutra dimensão da existência.
No dia do funeral do meu avô publicitei na dita na rede social facebook, a seguinte mensagem:
«Pintada em 1859, esta coração da Virgem, associada pela "wikipédia" à oração Salvé Rainha, rasgou o último sorriso que eu vi a meu avô Miguel da Silva Noras (1927-2023), dizendo "é bem bonita". Sempre perseverante nos caminhos da Fé, saberá agora guiar-nos como exemplo, nós todos(as) "os degredados filhos de Eva". Um forte abraço para dimensão onde te encontras Avô.»
Em resposta, logo alguém se insurgiu contra as “fogueiras da Inquisição” e a “canga da fé”. Perante sucessivas insistências indiferentes ao meu apelo de não tecer ali aquelas considerações e gratuitidade da ofensa, humano demasiado humano, apaguei tais comentários e bloqueei o concidadão. Aí se vê a verdade do provérbio bíblico palavras duras sucistam a ira.
O meu avô não queimou ninguém. Aliás, bem entendido foi o poder coercivo do Estado, o “braço secular” que cometeu crimes que se assacam à Igreja Católica, moralmente sancionados pela Santa Inquisição que em boa hora mesma Igreja reformou. A mesma Igreja onde homens e mulheres do presente pedem desculpa sobre crimes e pecados dos quais verdadeiramente não têm quaisquer responsabilidades. Não tenho responsabilidade de ter antepassados homicidas, deputados do santo ofício, aristocratas, escravocratas e ou servos da gleba. O facto de me identificar com o catolicismo pelos valores que me transmitiu, não me faz carregar uma cruz pelos pecados da Santa Madre Igreja de agora e de sempre, faz-me rezar por toda essa gente, por todos. Mesmo por aqueles que num momento de luto desdenham da Fé de um morto sem voz para a defender. Não se trata apenas da crença. Trata-se do colapso dos princípios básicos da civilização que nos fazem querer ser ouvidos para além do sentido do mais elementar decoro. Mutantis mutandis, viu-se isso no dia das mortes de Marcolino da Mata (1940-2021) e de Otelo Saraiva de Carvalho (1936-2021). Sem pingo de bom senso partiu-se apenas para a humilhação gratuita da pessoa falecida, em prol do combate político que vive do ódio ao próximo como a ti mesmo, ainda nem os corpos esfriavam nas tumbas. Não apelo a nenhum tipo de censura, apenas bom senso e escolha dos momentos certos, para considerações sobre quem já morreu. É evidente que lhe podemos (e devemos) apontar defeitos, assacar crimes e responsabilidades. Não tem é de ser no dia do funeral.
A minha atitude não foi cristã. O perdão divino é infinito na base de um verdadeiro arrependimento. Perante o insulto gratuito, resta-nos aos crentes dar a outra face, respondendo como Beatriz Nunes (1899-1989, minha bisavó materna): Deus vos favoreça irmão.