Médicos
A responsabilidade da destruição do SNS está toda nos ombros do Dr. Costa e Dra Themido, paladinos do dogmatismo cego que já nos colocou, também na saúde, no rabo da Europa.
Eram duas da madrugada. A mão, trémula, entrelaçava-se numa outra quase mortiça. Não obstante a pega era firme e inabalável. Nada no mundo a faria despegar daquela outra mão, frouxa, mas viva. Sentada, tinha a tez enrugada, mas denunciava pose distinta e serena. Envergava um vestido negro e simples, que contrastava com níveo cabelo, apanhado, que se engalanava com carrapito bem encoifado.
Aquela mão lânguida conduzia a um corpo de homem que se estendia numa maca. Ela olhava-o fixamente com ternura e alento. Não largava aquela mão. Nunca o largaria.
Já ele, envelhecido, estirado naquele corredor de hospital, resfolegava, tentando articular palavras. Os vocábulos tropeçavam e distorciam-se numa boca que insistia em não colaborar. Ela sorria, afagava-lhe a cabeça e descansava-o: “A Sra Dra já te vem ver.”
Parecia um milagre que alguém lhes tivesse prestado atenção naquela azáfama hospitalar que os envolvia, cogitou ela. Os exames nunca mais chegavam. Eis senão quando, uma jovem sorridente de bata verde se aproximou com envelopes debaixo do braço: “Olá, Senhor José, cá estou eu novamente. Já tenho aqui os seus resultados. Temos aqui uma infecçãozita, mas não é nada de especial.”
Ele balbuciou sons inteligíveis que não desfizeram o sorriso da jovem médica. Esta, encarando a mulher vestido negro, indagou-a para solicitar auxílio: “É a mulher do Sr. José?”
“Não, não”, retorquiu a mulher sempre a sorrir, “sou a sua mãe”. A jovem médica, confundida, respondeu com espanto: “Mãe?! Ah, peço desculpa, é que julguei…” A mulher interrompeu-a, docemente, como só os detentores do tempo sabem fazer: “Ora essa Sr. Dra. Sim sou a mãe do José. Ele só tem 70 anos, embora pareça mais velho. Sabe, teve uma paralisia infantil que o deixou assim. Mas percebe tudo. Sempre viveu comigo e sempre cuidei dele.”
Enternecida, a médica perguntou: “Mas, se me permite, que idade tem a Senhora?”. Carinhosamente a mulher respondeu, “94, mas não se aflija comigo, estou bem. Trate do meu José, porque já perdi um filho há uns anos e não gostaria de perder mais um”. A esculápia nunca mais o largou.
Nessa mesma noite, noutro local deste lusitano chão, um prédio descansa tranquilo. Subitamente, uma venerável condómina sente-se mal e desaba inanimada no tapete do quarto. Em desespero, alguém se lembra que no andar de baixo pernoita um jovem médico. Em desespero, rapidamente lhe batem à porta.
Estremunhado, o médico tem tempo apenas de enfiar pantufas e correr escadas acima, tentando processar na sua mente ainda adormecida, toda a enxurrada de dados que em contínuo lhe vão transmitindo.
Examina rapidamente a sinistrada anciã a qual, entretanto, retoma lentamente a consciência. “Então D. Esmeralda, como se sente?”, questiona o jovem clínico com um sorriso, “Vamos chamar uma ambulanciazita porque parece que temos aqui um pequeno ferimento na cabeça. Não deve ser nada de especial, mas é para ficarmos todos tranquilos. Está bem?”. Ela esboça um sorriso e de olhos lacrimejante responde agradecida “Obrigado Sr Dr. pelo seu cuidado…Desculpe lá isto.” “Ora, ora”, replica o médico “estamos aqui para isso.”
Estes são os médicos que velam pela nossa saúde. Simples e anónimos. Fortes e corajosos.
Não merecem, pois, que o ónus do caos que grassa no nosso SNS lhes seja sibilinamente imputado, como se a recusa do excesso de prestação de horas extraordinárias fosse um gesto de egoísmo.
Não. A responsabilidade da destruição do SNS está toda nos ombros do Dr. Costa e Dra Themido, paladinos do dogmatismo cego que já nos colocou, também na saúde, no rabo da Europa.
P.N.Pimenta Braz