Opinião | 07-10-2022 09:03

A Filipa

Santana-Maia Leonardo

Francamente, nunca pensei que fosse tão doloroso despedir-me de uma gata. Logo eu que não gostava de gatos. Talvez a Filipa já estivesse farta da advocacia e do direito. O que é que eu lhe havia de dizer? Já não conseguia imaginar a minha vida sem ela, mas também não tive coragem, ao ver a sua cara de sofrimento, para lhe pedir para ficar mais um pouco.

Nunca gostei de gatos. Ou melhor, nunca gostei de gatos até ao dia 3 de Setembro de 2006 em que a minha filha encontrou à porta do escritório, na pequena valeta entre o passeio e a estrada, uma gatinha que cabia na palma da mão.

Como na altura, tinha dois cães no escritório e o terceiro vinha a caminho, demos-lhe água e comida dos cães a que chamou um figo. E, como era muito pequenina, resolvemos dar-lhe dormida, por uns dias, até que ganhasse força para a viagem.

Eu não sou supersticioso, nem acredito no destino. Mas nunca fiando, sobretudo quando se trata de coincidências. O meu amigo padre Fernando costumava dizer que só acreditava em coincidências quando atirassem um caixote cheio de letras do cimo da Torre Eiffel e, na queda das letras no solo, ficasse escrito o nome dele. Eu não sou tão exigente. Para acreditar em coincidências, bastava que saísse uma inicial do meu nome. Em todo o caso, nunca fui homem de acreditar em bruxas, ainda que tenha o hábito de nunca me deitar sem me certificar que não está nenhuma debaixo da minha cama. Cautelas e caldos de galinha…

Mas, afinal, onde estava a coincidência da chegada ao escritório da menina Filipa, assim baptizada por uma amiga nossa que gostava de gatos? É que a menina Filipa tinha entrado no meu escritório, que tinha sido a casa do meu pai até se licenciar em Direito pela Universidade de Coimbra, precisamente no dia do aniversário do meu pai, nascido no longínquo dia 3 de Setembro de 1930. Há cada coincidência! E depois ainda querem que uma pessoa não seja supersticiosa!…

Mas as coincidências não se ficaram por aqui. Quem criou o meu pai , nesta casa que é hoje o meu escritório, foi a minha tia Maria, uma daquelas mulheres que já não se fabricam hoje. Com efeito, perante a morte da mãe, após o nascimento do meu pai, a minha tia Maria, vinte anos mais velha do que o meu pai, sacrificou a sua vida para cuidar do seu pai (meu avô) e criar o seu irmão (o meu pai). Ora, para a minha tia Maria, a quem nunca foi dada a oportunidade de continuar os estudos, não havia nada mais importante na vida do que ser doutor de leis e pela Universidade de Coimbra. Porque, para a minha tia Maria, ser doutor tinha esta sina: saber cantar o fado e usar capa e batina.

Com a morte do meu pai, a minha tia fazia questão que eu lhe seguisse os passos. E atraído pelo grito académico do F.R.A. do meu pai, que ainda me ecoava nos ouvidos, e pelas histórias coimbrãs contadas pelo meu pai, pelo meu avô materno, pelo meu tio Armando e pela minha mãe, todos estudantes de Coimbra, acabei por lhe fazer a vontade e lá fui bater com os costados na velha universidade. Mas fiquei-me por aí, uma vez que nunca fui dado a praxes, nem para andar vestido de padre… Aliás, em Coimbra (eu nem devia dizer isto, não vão os meus filhos ler), fui uma daquelas más companhias contra quem os meus avós me preveniram. Mas isso só veio provar a tese de Laborinho Lúcio: “ todo o jovem que não transgride é um adulto mal formado.

Ora, a menina Filipa, apercebendo-se da monotonia dos meus dias e noites no escritório a trabalhar sozinho e sem ninguém com quem falar, resolveu ficar por ali a fazer-me companhia e a aconselhar-me sobre os processos mais complicados. Com efeito, tal como eu vim a constatar, a Filipa percebia muito mais de direito do que eu. Até parecia uma doutora de Coimbra de capa e batina dos tempos da minha tia Maria, ou seja, daquele tempo em que ainda se aprendia alguma coisa na universidade. Na verdade, enquanto eu tropeçava, me enleava e enredava na legislação e jurisprudência, sem saber como dali sair, a Filipa encontrava sempre uma saída. Era uma gata com faro para o direito.

Devo, aliás, confessar que foi a minha melhor professora de Direito e a minha verdadeira patrona de advocacia. Não houve um único caso, por mais rebuscado que fosse, que ela não conseguisse resolver. Na Universidade, aprendi teorias sem qualquer utilidade prática; com a Filipa aprendi o sentido prático das coisas e da vida.

E com o nascimento do Sebastião, no dia 19 de Setembro de 2006, a Filipa acabou por encontrar neste podengo o seu discípulo natural. E era com um enorme prazer que eu, nas minhas horas vagas, assistia embevecido à Filipa a dar aulas de Direito ao Sebastião que anotava, com uma fidelidade canina, tudo o que a sua professora lhe ensinava.

E para que me pudesse dar aulas de cátedra e fazer-me companhia, comprei-lhe uma pequena poltrona que ainda tenho em cima da minha secretária. E assim se passaram 7 anos. Mal me sentia chegar ao escritório, trepava para a sua poltrona e ali se ficava a ver-me trabalhar, a aconselhar-me e a corrigir-me, até eu me ir embora.

Em finais de Junho de 2014, reparei que a Filipa, que foi sempre muito asseada, estava a urinar fora da caixa. Levei-a à veterinária, fez-lhe análises… E lá voltaram as coincidências.  Não bastava a Filipa ter chegado ao escritório no dia de nascimento do meu pai, como agora decidia partir, inesperadamente, como o meu pai, na força da idade e com o número 7 nas costas, o número das sete vidas dos gatos. O meu pai partiu com 37 anos e a Filipa decidia partir com 7 anos de idade.

Além disso, ambos escolheram o primeiro dia do mês: a Filipa o dia 1 de Julho de 2014 e o meu pai o dia 1 de Dezembro de 1967. Cinco meses de diferença. E qual é o meu número preferido? Precisamente o número 5. Meu querido amigo padre Fernando, desta vez a caixa das letras da torre Eiffel não se limitou a escrever o meu nome: foi nome, morada e número de telefone.

Francamente, nunca pensei que fosse tão doloroso despedir-me de uma gata. Logo eu que não gostava de gatos. Talvez a Filipa já estivesse farta da advocacia e do direito. O que é que eu lhe havia de dizer? Já não conseguia imaginar a minha vida sem ela, mas também não tive coragem, ao ver a sua cara de sofrimento, para lhe pedir para ficar mais um pouco. Agarrei-a carinhosamente e coloquei-a em cima da mesa, no cais de embarque. Eram 7 horas da tarde do mês 7. Outra vez, o número 7. Numa tarde quente de Verão.

E, ao vê-la partir para a sua última morada, li no seu olhar de despedida que a morada de destino, afinal, era uma rua frondosa dentro do meu coração. 

Santana-Maia Leonardo

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