Opinião | 19-05-2022 06:59

A vida a cortar mato, Stefan Sweig, Manuel Emídio e Jean Jacques Annaud

JAE

Numa altura em que parece já ter começado a terceira guerra mundial, e os dirigentes políticos continuam a comportar-se como artistas de circo, ler Stefan Sweig é obrigatório para nos confortarmos e aceitarmos a dura realidade.

A revista do jornal “Expresso” publicou recentemente uma entrevista de mão cheia com Jean Jacques Annaud, realizador de filmes como “Sete Anos no Tibete”,” O Amante” “O Nome da Rosa e “O Urso”, entre outros. Levei a revista em viagem até Atenas. Numa manhã de preguiça fiquei a pôr a leitura em dia. Quando saí do hotel ia cheio de ideias e a rir-me sózinho como os tontos. Tresli duas frases fortes da entrevista, ou seja, li aquilo que me interessava em duas respostas do cineasta entrevistado à distância pela jornalista Cristina Margato.
Quando saí à rua ia literalmente com vontade de trabalhar. Como não podia trabalhar na minha actual profissão, fui para uma outra bem mais antiga: andei a ver preços e condições de exportação de jóias com design bisantino. Saí de uma entrevista sobre a vida de um artista e intelectual refinado para um mundo de artistas do negócio. O meu inglês é fraquinho mas no mundo dos negócios falam-se todas as línguas. Acho que só quis passar tempo. Já tenho idade para dormir mais vezes à beira da praia. Mas esta energia que recebo de uma peça editorial é para mim o segredo da vida.
Lembro-me de ter cinco anos e o meu avô Manuel Emídio me levar em cima do burro para o meio da charneca onde passava o dia a cortar mato recebendo à paveia ( ia com ele ao escritório da casa Amaral Netto receber o dinheiro da semana e admirava-me como confiavam nele, e no número de paveias que ele apresentava escritos num papel pardo, já que tinha como conferir). O que me marcava mais era eu ir montado no burro e ele a coxear ao lado do animal. Se não fosse eu, o burro só servia para levar o seirão com a comida, a gadanha, o machado e o serrote (quase sempre também o ferro de apanhar raposas que o meu avô armava bem longe do local de trabalho e que, ao final do dia, no regresso a casa, podia ser a cereja em cima do bolo). A verdade é que do alto dos meus cinco ou seis anos sentia-me culpado por ir montado e o meu avô a pé. Lembro-me de pensar, ou então inventei ao longo dos anos de tanto reconstruir algumas memórias, que o burro tinha uma pelagem clara o que lhe dava, para mim, o estatuto de cavalo.

Em Atenas viajei perto da praia num Porche 911. Há 20 anos queria comprar um carro destes. Nunca comprei nem vou comprar. Mas guardei dessa ilusão um conhecimento que me serve para a vida. Conheci e soube de dezenas de pessoas que têm um Porche na garagem e não saem para a estrada com ele. Não conheço melhor exemplo das heranças do regime em que a maioria dos homens da minha idade nasceram: morrem de vergonha e desgosto de terem chegado a uma idade em que já perderam a vontade e a energia para gozar o prazer de viajar e vadiar. As razões são mais que muitas e, na maioria dos casos, é o trabalho que continua a mil à hora, sem tempo sequer para gozarem os favores do dinheiro que ganharam.

O Bernardo enviou-me mensagem a avisar que há novo documentário sobre Henry Miller na Netflix. Já vi, respondi-lhe, embora últimamente tenha trocado o lixo da Netflix pelos filmes e documentários da Filmin. Para quem cresceu a ler “Sexus” “Plexus” e “Nexus”, entre muitos outros títulos, como o Colosso de Marroussi”, que é a viagem pela Grécia que eu nunca vou conseguir fazer, qualquer documentário sobre Henry Miller só pode ser bom, embora para a juventude de hoje alguns livros já estejam datados.
Nunca soube quantos títulos é que o Bernardo leu do escritor americano que, na altura, teve os seus livros proibidos nos EUA. Que consegui meter-lhe o vício no corpo, disso não tenho dúvidas.
O recado é pretexto para deixar aqui a alegria que é ler e reler Stefan Zweig, o homem e o intectual que melhor nos conta o que foi a Europa e o mundo antes e depois das duas guerras mundiais. A terceira já começou e ninguém parece interessado em saber o que é viver em guerra, e o que é que vai acontecer às nossas vidas e ás dos nossos filhos. Depois de reler a sua autobiografia, estou a acabar a biografia da autoria de Dominique Bonna que se lê como um romance. JAE.

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