Como o Banco de Portugal apanhou Ricardo Salgado e a importância dos “aferidores”

A audição de Pedro Duarte Neves (à direita) foi “pedagógica” para explicar “tim tim por tim tim” como tudo se processou e foi a partir das suas declarações que se ficou a saber o que realmente acontecia na gestão do BES.

A primeira conclusão a que chegámos, é que afinal o “BES” mentia ao regulador e manipulava os relatórios( : ). O Banco de Portugal nunca pensou que um banco desta dimensão tivesse práticas tão incorretas ou que mentisse na prestação de resultados que lhe apresentava.

A estratégia da Comissão de Inquérito, e um pouco a tradição do Parlamento, foi ouvir primeiro os “Reguladores” (Banco de Portugal, CMVM e Instituto de Seguros de Portugal), depois os Ministros das Finanças que lidaram com a situação, no caso Teixeira dos Santos, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque (em funções) e só depois os responsáveis pelo Grupo BES/GES.

As audições do Governador (que durou 8 horas) e do Vice-Governador, Pedro Duarte Neves que era o responsável no Banco de Portugal pela supervisão foram fundamentais para perceber como o regulador “descobriu” os problemas, como foi enganado durante anos e como a falta de articulação entre reguladores, com competências diferentes sobre produtos diferentes, pode colocar tudo em causa. Importa, a este propósito, sublinhar que a responsabilidade do Banco de Portugal se circunscreve, nos termos da lei, aos produtos bancários de retalho, ou seja, as contas de depósito à ordem e a prazo, o crédito hipotecário, o crédito ao consumo e o crédito às empresas. A lei não confere ao Banco de Portugal competência para a supervisão de outros instrumentos financeiros, mesmo que sejam comercializados aos balcões de instituições de crédito. 

Se a audição do Governador foi fundamental para “desmontar” as desculpas que quer Ricardo Salgado quer a oposição tinham colocado a circular, a audição de Pedro Duarte Neves foi “pedagógica” para explicar “tim tim por tim tim” como tudo se processou. Recomendo vivamente a leitura da acta dessa audição (que se seguiu à do próprio Governador) e que pode ser consultada em doc.pdf (parlamento.pt).

É importante lembrar que recentemente tinha sido reforçado o esforço da supervisão financeira através do aumento dos níveis mínimos regulamentares de fundos próprios e reforço das regras prudenciais em vários domínios; adoção de um modelo intrusivo de supervisão; realização de revisões regulares das carteiras de ativos; reforço da vertente prospetiva da supervisão; desenvolvimento e consolidação da supervisão comportamental. Fruto da crise financeira e dos problemas criados pelos bancos, quer o Banco Central Europeu quer os Bancos Centrais por sua iniciativa viram-se forçados a tomar medidas mais drásticas.

No que diz respeito ao BES há três momentos chave no processo de intervenção do Banco de Portugal: 1) os testes de stress da Autoridade Bancária Europeia – a Espírito Santo Financial Group foi sujeita a testes de esforço em 2010 e 2011, tendo apresentado valores superiores aos patamares mínimos definidos por aquela autoridade. Recorde-se que em dezembro de 2011 esta autoridade recomendou um reforço de capital que acabou por penalizar o sistema bancário português ao obrigar à constituição de um buffer — isto é, uma margem de folga — para o risco soberano. Esta recomendação impôs um reforço adicional dos fundos próprios dos bancos portugueses. É na sequência desta decisão que resultaram necessidades adicionais de capital para os nossos quatro maiores bancos, e se em três desses casos foram asseguradas com acesso ao “dinheiro da troika”, o Banco Espírito Santo recusou e assegurou esse reforço exclusivamente através de fundos privados. Estranho. Recordo que no caso do apoio ser público isso levaria a uma maioria intrusão dos reguladores na gestão dessas instituições.

Segundo Pedro Duarte Neves, a partir de então, e na sequência de diferentes ações de supervisão regulares desenvolvidas pelo Banco de Portugal “chegou -se à conclusão que a situação do grupo era mesmo preocupante” e por essa razão o regulador fez saber à administração da Espírito Santo Financial Group, em julho de 2013, a principais preocupações do regulador  — “complexidade do Grupo, associada a uma ampla atividade internacional em várias jurisdições; risco de concentração elevado, tanto por via da exposição perante a atividade não financeira do Grupo Espírito Santo, como ao nível do setor imobiliário; situação de liquidez caracterizada por um rácio crédito/depósitos elevado; e, finalmente, risco reputacional associado à comercialização de títulos de dívida do ramo não financeiro.” 

É o segundo momento decisivo pois fez rebentar a bomba inédita que jamais tinha sido utilizada num grupo com a reputação do BES. “Tendo em conta o elevado nível de risco material” o Banco de Portugal decidiu, em julho de 2013, “impor ao BES a constituição até ao final de 2013 de um buffer mínimo de capital de 50 pontos base através do reforço do rácio Core Tier 1 face ao rácio mínimo em vigor”. Ou seja, graças ao acompanhamento intrusivo do regulador, e apesar de uma “perceção exterior favorável” foi possível identificar elementos de risco situados fora do perímetro da supervisão bancária.

E aqui chegamos ao terceiro ato decisivo para descobrir a verdadeira situação do BES, o famoso “ring-fencing” e o ETRICC.

Como explicou Pedro Duarte Neves, na sequência das conclusões das três ações de supervisão transversais levadas a cabo desde 2011, o Banco de Portugal decidiu aprofundar a evolução de um conjunto de 12 grupos económicos. Para o efeito, foi desenvolvida, no início de setembro de 2013, uma nova ação transversal, designada ETRICC 2 (Exercício Transversal de Revisão da Imparidade da Carteira de Crédito, 2.ª fase). Entre estes 12 grupos económicos selecionados, foi incluído o ramo não financeiro do Grupo Espírito Santo. “É importante sublinhar que a qualidade de crédito concedido a várias entidades do ramo não financeiro do GES (Grupo Espírito Santo), seja pelo BES (Banco Espírito Santo), seja por outros grupos bancários, tinha sido avaliada nas anteriores ações de supervisão transversais sem que tenham sido detetadas necessidades de reforço de imparidades nestas posições, pelo que foram validadas as imparidades, quase nulas ou basicamente nulas, anteriormente existentes.” No fundo isto significa que as “big four”, as quatro principais auditoras, na qualidade de auditoras independentes responsáveis pelo desenvolvimento dos exercícios transversais desencadeados pelo Banco de Portugal não identificaram, até meados de 2013, “qualquer risco material de crédito nestes exercícios para as entidades do ramo não financeiro do GES”. Foi precisamente o resultado deste exercício de supervisão, o ETRICC 2 que, no final de novembro, permitiu ao Banco de Portugal concluir que as contas até então divulgadas publicamente pela Espírito Santo International não refletiam a sua verdadeira realidade financeira. Mais à frente iremos perceber com mais detalhe os truques utilizados por Ricardo Salgado para enganar a supervisão e os seus próprios investidores.

A primeira conclusão a que chegámos, é que afinal o “BES” mentia ao regulador e manipulava os relatórios que o Banco de Portugal analisava. Este momento fez-me de imediato lembrar a importância dos “aferidores”, os homens que em nome dos municípios certificavam e verificavam se as balanças dos mercados e das lojas estavam corretas e não se enganavam os cidadãos. Ora, o Banco de Portugal nunca pensou que um banco desta dimensão tivesse práticas tão incorretas ou que mentisse na prestação de resultados que lhe apresentava.

Duarte Marques

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