Opinião | 13-01-2022 10:00

Em tempo de debates políticos para as eleições continuam as mudanças de turno nas urgências dos hospitais

JAE

Estamos em tempo de campanha eleitoral e nunca como nestes tempos os políticos se puseram a jeito para serem os palhaços de serviço das televisões. Esta crónica é tudo menos política e começou numa urgência de um hospital. JAE

Quando temos 20 ou 30 anos mal sabemos o que nos vai acontecer aos 60 ou aos 70 se tivermos a sorte de chegar a essas idades. Estou a escrever sobre o assunto porque ando por aqui a questionar-me espantado com as surpresas de todos os dias e a tentar adivinhar quantas horas, dias, meses ou anos ainda tenho para me rir de mim próprio já que o riso é o melhor remédio para a boa vida.
O facto de ser casado com uma ex-cabeleireira fez com que fosse ao longo de um grande período da vida a pessoa mais bem informada da minha terra. Como toda a gente sabe as cabeleireiras e os barbeiros são confidentes privilegiados, que sabem tudo sobre dramas familiares que incluem sexo e dinheiro, dois dos dramas maiores das famílias de todo o mundo. Cedo me habituei, por isso, a ouvir e a guardar segredo;
Neste capítulo nada mudou ao cimo da terra; graças a um amigo da política sei o que é que o primeiro-ministro António Costa mais gosta de comer às refeições; o mesmo com Rui Rio. Os dois candidatos a primeiro-ministro nas eleições do próximo dia 30 de Janeiro são tão diferentes um do outro como o Inverno do Verão; só há uma coisa em que são iguais: não trazem para o debate público o eterno problema do adiamento da reforma administrativa do país; as soluções para o Serviço Nacional de Saúde; a falta de um acordo em nome do interesse nacional para as empresas como a TAP; a reforma da Justiça que não permita que os juízes e procuradores sejam palhaços uns para os outros, com vantagem para quem é criminoso e goza com o nosso sistema democrático.
No início desta semana fugi das urgências de um hospital público e fui queixar-me de uma dor abdominal às urgências de um hospital privado. Estive por lá quatro horas a fazer exames. Saí de lá com a certeza que ainda há médicos e enfermeiros em que se pode confiar, que não fazem intervalos para fumar um cigarro enquanto os doentes se contorcem com dores.
Apesar de ter deitado o olho aos debates eleitorais, que têm feito a delícia dos comentadores, resolvi ignorar o triste espectáculo dos políticos e escrever sobre a experiência de ter assistido à mudança de um turno num serviço de urgências depois de ter sido picado na veia por uma enfermeira que fazia o seu primeiro dia de trabalho e tremia que nem varas verdes a picar-me o braço para tirar sangue para análise. O resto conta-se em poucas palavras porque o estado de saúde da dona Maria (nome fictício), de 94 anos, é uma lista maior que o número de vezes que José Sócrates recebeu dinheiro em envelopes do João Perna, seu antigo chofer de serviço. A jovem enfermeira dava um filme a ler directamente no computador as dezenas de doenças da dona Maria que os colegas precisavam de saber para não a matarem enquanto ela avisava de cinco em cinco minutos que ia fazer xixi na fralda. E a forma como os dois enfermeiros chefes iam aproveitando a partilha para lhe fazer perguntas, e obrigar a saber do que estava a falar, foi exemplar e uma lição que um dia destes vou levar para uma reunião de trabalho da minha equipa.
Três dias antes de ter conhecido a dona Maria, e de uma dor abdominal me obrigar a trabalhar fora de horas por ter perdido meio dia no hospital, li uma entrevista com o médico e professor Manuel Sobrinho Simões que, em resposta a uma pergunta sobre imortalidade, avisa que “estamos a esticar demais a longevidade e o envelhecimento criando a ilusão que resolvemos o problema da morte”. Aconselho a leitura da entrevista no sítio do JN, publicada no dia 2 de Janeiro, em homenagem à dona Maria que, de tão magrinha e pequenina, parecia um bebé enfiada debaixo de uns lençóis a ouvir, sem ouvir, a enfermeira a dizer-lhe “faça xixi mulher, faça xixi as vezes que quiser”.


Nota: o título desta crónica é uma brincadeira para vincar o quanto a classe política, pelo que tenho ouvido, está longe dos grandes problemas da nossa sociedade, como é o caso das políticas de educação, de saúde, da justiça e da valorização do mérito e do profissionalismo. De verdade os nossos políticos são os melhores do mundo é a debater ideias em 20 minutos de televisão em directo. Que saudades dos debates entre Mário Soares e Álvaro Cunhal que jamais aceitaram ser os palhaços de serviços às televisões. JAE

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