Opinião | 13-05-2022 06:59

Ser português aqui 

Santana-Maia Leonardo

Portugal tem demasiada gente que se ocupa e muito pouca gente que se preocupa. E os países para saírem da cepa torta não precisam de gente que se ocupa, mas de gente que se preocupa..

Vou relatar um episódio que aconteceu comigo e que ilustra na perfeição essa estranha forma de ser português aqui. E digo AQUI, porque lá fora os portugueses não são assim.

No início dos anos 90, eu e a minha irmã pertencíamos ao conselho pedagógico da Escola Secundária de Ponte de Sor e éramos orientadores de estágio.

Na altura de decidir qual o prazo que devia ser fixado para a entrega dos relatórios finais, só eu e a minha irmã discordámos do prazo de 15 dias que foi proposto, por considerarmos que era demasiado apertado. No entanto, na altura da votação, o prazo de 15 dias foi aprovado com apenas dois votos contra: o meu e o da minha irmã.

Acontece que, findo o prazo de 15 dias concedido para a entrega dos relatórios finais, apenas dois membros do conselho pedagógico tinham entregado os respectivos relatórios. Adivinhem agora quais foram os dois únicos membros do conselho pedagógico que entregaram os respectivos relatórios dentro do prazo? Exactamente. Precisamente eu e a minha irmã.

E o que é que ganhámos em ter sido os únicos a cumprir o prazo? Recebemos algum louvor? Não. Recebemos alguma palavra de agradecimento e estímulo? Não. Fomos dados como exemplo a seguir? Não. Passámos a ser mais respeitados pelos nossos colegas? Obviamente que não. Passámos a ser mais considerados pela Direcção da Escola? Obviamente que não.

Para além de termos perdido dois fins-de-semana a trabalhar, o que ganhámos foi ser objecto da chacota e da troça dos nossos colegas que aprovaram o prazo de 15 dias, com o nosso voto contra, e estiveram-se a borrifar para cumprir o prazo que aprovaram.

No entanto, sempre aprendemos uma grande lição que é muito útil para quem vive neste país: só os tontinhos e os idiotas, como eu e a minha irmã, é que se preocupam em cumprir os prazos, as leis e as regras.

E não deixa de ser absolutamente surpreendente que, num país em que ninguém se preocupa em cumprir um simples prazo ou chegar a horas de um compromisso, não haja um único português que não clame por mais leis, por mais normas e por mais regras. E se se apanhar num cargo que lhe permita fazer leis e normas, puxa logo da caneta e é um ver se te avias. Fica ali tudo regulado e regulamentado ao mais ínfimo pormenor. Não escapa nada!

Agora cumprir as normas, as leis e os prazos que se fixaram com tanta determinação e afinco?!… ‘Tá quieto! E se alguém se armar em parvo e se tornar mais exigente, há sempre alguém disponível para atestar a doença súbita do incumpridor, inventar uma desculpa do mesmo género ou, em último caso, revogar a norma ou dar-lhe uma interpretação que não lembra o diabo. Imaginação para justificar os incumprimentos e salvar os incumpridores é precisamente o que por aqui abunda…. E, na verdade, quem é que não adoece num país com leis tão exigentes e miudinhas que só mesmo os tontinhos é que se esforçam por cumpri-las?

Portugal tem demasiada gente que se ocupa e muito pouca gente que se preocupa. E os países para saírem da cepa torta não precisam de gente que se ocupa, mas de gente que se preocupa.

Eu e a minha irmã fomos os únicos a votar contra o prazo porque, pelos vistos, éramos os únicos que estávamos preocupados em cumpri-lo. Com efeito, quem não faz conta de cumprir um prazo qualquer prazo serve.

Santana-Maia Leonardo

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