Opinião | 25-03-2022 08:59

<strong>Uma escola segregacionista</strong>

Santana-Maia Leonardo

A escola portuguesa é uma verdadeira pista de atletismo onde os filhos das classes privilegiadas partem não só com grande vantagem, em relação aos filhos das classes desfavorecidas, como correm numa pista sem quaisquer obstáculos, enquanto a pista onde correm os mais desfavorecidos está atulhada de obstáculos.

A minha neta tem dez anos e frequenta o 5.º de escolaridade. Relativamente a uma parte significativa dos seus colegas, a minha neta é uma privilegiada, porque, sendo filha e neta de pais e avós licenciados em diferentes áreas, tem à sua disposição quem a possa ajudar a estudar, a fazer os trabalhos de casa e a tirar-lhe as suas dúvidas. Ou seja, a minha neta, à semelhança do que acontece com os filhos da classe média com formação universitária, parte com uma grande vantagem sobre os filhos dos pais das classes mais desfavorecidas. Além disso, é frequente os pais dos filhos que já gozam de uma situação privilegiada em relação aos demais, pagarem a explicadores para os ajudar a fazer os trabalhos de casa e a explicar-lhe as matérias que vão sendo leccionadas.

Ora, alguma coisa está errada numa escola que se apregoa de inclusiva, quando permite que os professores promovam a realização de trabalhos de casa para serem realizados fora do espaço escolar. Como é óbvio, os trabalhos de casa, efectuados nestas circunstâncias, criam uma situação de profunda desigualdade entre os alunos privilegiados, por natureza, e os alunos oriundos das classes mais desfavorecidas. Com efeito, quem ajuda, na mesma medida, os filhos dos pais analfabetos ou com a escolaridade básica que trabalham nas feiras, na pesca, nas obras e no campo e/ou que vivem nos bairros sociais, nas zonas marginalizadas ou isolados em lugares no fim do mundo?

Recordo que, nos anos 60/70, a escola era selectiva e os alunos passavam, apenas, 19 a 26 horas por semana na escola, repartidas por seis disciplinas no secundário e nove no básico. Hoje, pelo contrário, a escola é a tempo inteiro e tem o dever de ser inclusiva. Os alunos passam 35 a 40 horas (pelo menos) na escola, de manhã até noite, repartidas por uma chusma de disciplinas e de actividades a que se perde o conto. Ora, uma escola a tempo inteiro e com esta carga horária pressupõe, obrigatoriamente, a proibição absoluta de qualquer aluno dali sair com algum trabalho de casa para fazer ou alguma dúvida por esclarecer.

Acontece que a escola portuguesa é uma verdadeira pista de atletismo onde os filhos das classes privilegiadas partem não só com grande vantagem, em relação aos filhos das classes desfavorecidas, como correm numa pista sem quaisquer obstáculos, enquanto a pista onde correm os mais desfavorecidos está atulhada de obstáculos. Uma escolaridade obrigatória que promove os trabalhos de casa e promove a necessidade de explicações para tirar as dúvidas sobre as matérias leccionadas subverte, de forma hedionda, o espírito da escola democrática, inclusiva, integradora e a tempo inteiro. Uma escola com este perfil é uma escola segregacionista que, em vez de funcionar como elevador social, contribui para cavar cada vez mais o fosso entre as classes privilegiadas e as classes mais desfavorecidas.

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