Opinião | 16-06-2022 06:59

Uma homenagem ao fotojornalista Henrique de Carvalho Dias

JAE

Texto de homenagem à arte do fotojornalista Henrique de Carvalho Dias no dia em que inaugurou em Santarém uma exposição de fotos do seu livro sobre os 35 anos de alternativa do cavaleiro Luís Rouxinol.

Identifico-me muito com a pessoa que é o Henrique de Carvalho Dias assim como com o fotojornalista que conheci há muitas décadas quando ele era fotojornalista e eu era apenas um jovem forcado. A memória dele sobre mim é bem mais recente mas, mesmo assim, há aqui muita gente que não era nascida quando nos voltamos a cruzar, ele ainda como fotojornalista e eu já como jornalista. Estamos a falar, num primeiro caso, de há meio século, e no segundo de há 35 anos, mais um menos um.

Houve uma altura em que O MIRANTE ainda crescia a olhos vistos, coisa que agora ainda acontece mas mais devagarinho e discretamente, em que publicávamos regularmente fotos da festa da autoria do Henrique, daquelas que só se conseguem quando se dispara muito e se está no sítio certo à hora certa. Essa colaboração acabou, nem me lembro porquê, mas a amizade manteve-se até hoje e a colaboração entretanto também voltou e a política editorial de O MIRANTE relativamente às corridas de toiros deve-se inteiramente à colaboração do Henrique de Carvalho Dias.

Ao longo deste meio século mudei mais do que o Henrique no amor pela festa brava. Embora ainda tenha o bichinho dos toiros, já não estou apaixonado, aliás, nem sequer vivo um amor quanto mais uma paixão. Mesmo assim sinto-me muito mais emocionado quando me sento numa praça de toiros do que nas bancadas do estádio de Alvalade a ver jogar o meu Sporting. O meu problema com o futebol é civilizacional e cultural. Com a festa brava é cultural e civilizacional. Para mim a festa ainda é uma manifestação cultural, e lúdica também, que as fotos do Henrique de Carvalho Dias dão, aliás, um bom testemunho. Mas o Henrique representa hoje como fotojornalista um pouco daquilo que é o meu desencanto com a festa e com os seus protagonistas. Nos últimos anos o Henrique sofreu na pele situações de discriminação e de falta de respeito; inclusive, se bem me lembro, aqui mesmo nesta praça em Santarém. Felizmente que está aqui e que outras pessoas mais dignas e respeitadas também o reconhecem e respeitam como ele merece.

Nada que me surpreenda quanto ao passado recente. A vida de um fotojornalista não é diferente da vida de um toureiro ou de um escritor, de um cientista ou de um artista plástico. Chega uma altura em que ou somos donos do nosso nariz, do nosso negócio, ou há mil pessoas à nossa volta a quererem ocupar o nosso lugar nem que para isso tenham que passar por cima das nossas bochechas. É a lei da vida. Se se dá o caso de falarmos em armas apontadas ao peito, ou matas ou morres; se se dá o caso de as armas serem máquinas fotográficas, ou canetas que escrevem notícias ou artigos de opinião, ou és muito bom e muito resistente e sobrevives ou se deixas de ter onde publicar de nada te vale seres o melhor de todos.

Há muitos anos que aprendi isso. Os melhores jornalistas ou fotojornalistas são os melhores também porque trabalham nos melhores órgãos de comunicação social. Ontem à noite, a RTP 2 transmitiu um documentário sobre Paulo Cunha e Silva, que conseguiu levar para a Fundação de Serralves uns objectos que pertenceram ao histologista Abel Salazar. Diz ele, nesse documentário, que quem conseguir levar um objecto para um museu o transforma em obra de arte. Nada mais verdadeiro há 20 anos quando se realizou essa exposição e também nos dias de hoje em que se realiza esta mostra da autoria do Henrique de Carvalho Dias.

Curiosamente a festa dos touros está a perder cada vez mais esse estatuto de manifestação cultural porque são cada vez menos os Henriques de Carvalho Dias a defenderem as touradas como uma arte e não apenas como um espectáculo lúdico.

Acho que a festa deve ao fotojornalista Henrique de Carvalho Dias essa homenagem. Um dia que alguém consiga trabalhar em favor de um museu da tauromaquia, que bem podia ser em Santarém, e neste espaço que, como todos sabemos, está sub-aproveitado, muito sub-aproveitado, para falarmos verdade e sem receio e misericórdia. E a homenagem ao Henrique deve-se não só por ser um dos mestres da arte da fotografia taurina mas pelo amor à festa, à paixão que ainda mantém pelos toiros e a admiração pelos toureiros, pelos forcados e pela generalidade das pessoas ligadas às tradições da festa.

Óscar Lopes, um dos críticos mais conhecidos no meio literário dos últimos 100 anos, escreveu um dia que um escritor só se deve considerar escritor depois de 20 anos a escrever ininterruptamente. Acho que se ele falasse de fotojornalistas não diria nada de diferente. O Henrique é um mestre da fotografia e já leva uns bons pares de vinte anos a mostrar o que vale.

Por último; alguém escreveu um dia, não me lembro quem, que a fotografia, a arte da fotografia, precisava de encontrar um Picasso pelo caminho. Gosto de pensar no assunto mas se me perguntassem agora se estou de acordo diria que não. Pelo menos em parte. As fotografias de Henrique de Carvalho Dias são únicas como são as de Eduardo Gageiro, de quem também sou amigo e admirador.

Agora sim, por último: se as touradas não fossem um parente pobre das nossas cada vez mais pobres tradições; se Portugal não fosse um país de invejosos, Henrique de Carvalho Dias já teria direito a uma exposição numa das galerias portuguesas de prestígio, a publicação dos seus livrinhos de forma artesanal já teriam dado lugar a um livro de capa dura e papel couché. Infelizmente para ele e para a festa dos toiros não se adivinham melhores dias. Nada melhor, por agora, que o termos entre nós a trabalhar como só ele sabe, com a paixão que só ele domina e sabe conduzir.

Há um valor humano e uma qualidade estética nas fotografias de Henrique de Carvalho Dias que nenhum jornalista, por mais experimentado e culto que seja, consegue explicar por palavras.

Para mim o Henrique de Carvalho Dias é um ícone dos fotógrafos taurinos.

Longa vida ao Henrique e, já agora, desejos de melhor sorte com os amigos, onde me incluo, onde nos incluímos, para que a sua Obra nunca seja esquecida e possa ser valorizada como merece.

Citando uma frase do trabalho do multifacetado artista, político e fundamentalmente agitador cultural que foi Paulo Cunha e Silva, “o futuro começa agora ou não começará nunca”.

NOTA

Um elemento da organização e gestão da “Celestino Graça”, cinco minutos depois da leitura do texto, aproveitando um momento a sós, ameaçou o autor com palavras impróprias para reproduzir aqui com o argumento de que o texto é provocador e ofensivo; com os dentes serrados e a cuspir impropérios só faltou usar comigo um ferro daqueles que os toureiros usam nas suas lides. Fica o registo para memória futura. 

JAE

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