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O mistério do Alfageme desaparecido

Jornal fundado por Guilherme de Azevedo já não se encontra na Biblioteca Municipal de Santarém

Um professor universitário estudioso da obra do poeta e jornalista escalabitano Guilherme de Azevedo garante que a colecção do jornal Alfageme, fundada por esse autor em 1871, desapareceu da Biblioteca Municipal de Santarém. Nos serviços ninguém tem memória de espólio tão valioso.

A colecção do jornal Alfageme, fundado em 1871 por Guilherme de Azevedo, que terá existido na Biblioteca Municipal de Santarém, desapareceu misteriosamente não se sabe bem como nem quando. Naqueles serviços ninguém se lembra da existência do raro e valioso espólio, mas Manuel Simões, professor de Literatura aposentado e investigador da obra do poeta escalabitano, garante que consultou a colecção na década de setenta, de onde copiou inclusivamente algumas crónicas. Recentemente, quando pretendia ter de novo acesso aos documentos, foi-lhe dito que os mesmos não existiam no local.Funcionários da biblioteca perguntaram-lhe se tinha a certeza de que fora ali que consultara a colecção, facto de que o professor universitário não tem a mínima dúvida. “Recordo-me perfeitamente de ter estado naquele edifício, no primeiro andar, onde antes era a biblioteca, a consultar essa colecção e a copiar algumas crónicas à mão”.Da data concreta não se lembra com exactidão. Apenas de que terá sido na segunda metade da década de setenta. Mais provavelmente entre 1975 e 1976, já que o edifício da biblio-teca esteve posteriormente encerrado entre 1976 e 1988 para ser restaurado. Nesse pe-ríodo, o espólio bibliográfico esteve depositado na cave do arquivo distrital.O balde de água fria foi ainda maior quando os funcionários da biblioteca lhe garantiram que não havia memória dessa colecção. Não havia sequer registo da sua ficha. “O que dá a ideia de que quem levou a colecção quis também apagar a sua memória” do local onde terá estado durante muitos anos, diz o investigador.Quando na década de setenta se dirigiu pela primeira vez à Biblioteca Municipal de Santarém, Manuel Simões, que foi professor universitário nas cidades italianas de Bari e Veneza durante 32 anos, pensava em editar uma compilação de crónicas de Guilherme de Azevedo, de quem é admirador confesso. Acabou por desistir da ideia quando lhe disseram que havia outra pessoa ligada ao meio académico que estaria já a fazer esse trabalho. E desfez-se do material copiado.Só que as informações que lhe foram dadas não eram absolutamente correctas. A compilação das crónicas de Guilherme de Azevedo continuou por fazer e Manuel Simões teve agora luz verde da Imprensa Nacional – Casa da Moeda para avançar com a obra. Só que lhe falta parte da matéria-prima e sem ela o projecto não faz sentido. “São praticamente as primeiras crónicas de Guilherme de Azevedo, quando ele começa a aparecer como cronista. São o começo da história”, diz. E, para o investigador, residente na zona de Lisboa mas com raízes em Ferreira do Zêzere, uma história sem começo não faz muito sentido.A colecção do Alfageme é raríssima e, apesar das pesquisas feitas um pouco por todo o país, Manuel Simões só conhece a existência de três exemplares da publicação, existentes na Biblioteca Nacional, em Lisboa. Com Guilherme de Azevedo como director e redactor, terão sido editados cerca de 30 exemplares, entre 15 de Junho de 1871 e Setembro desse ano. Mas o jornal continuou após a sua saída.Na introdução inscrita na reedição do livro de poesia “A Alma Nova”, do mesmo autor - que foi publicado em 1981 pela Imprensa Nacional -, Manuel Simões menciona e cita excertos de crónicas de várias edições do jornal, o que indicia o acesso a um conjunto mais vasto do que o reduzido espólio do Alfageme existente na Biblioteca Nacional.O actual director da Biblioteca Municipal de Santarém, Luís Nazaré, confrontado com o caso pelo nosso jornal, garante que nunca teve conhecimento dessa colecção e que informações no mesmo sentido lhe terão sido comunicadas pelo anterior director, Bertino Coelho Martins. “Se houvesse tal valor já o teria visto”, referiu Luís Nazaré, admitindo que possa haver “algum lapso” por parte de Manuel Simões.Mas o estudioso da obra de Guilherme de Azevedo, confrontado com essa possibilidade, reiterou o que já nos havia declarado: “Consultei a colecção completa do Alfageme na Biblioteca de Santarém, disso não tenho a menor dúvida”.O investigador diz ainda ter esperança que haja bibliotecas particulares que possam ter essa colecção, para assim poder avançar com o seu trabalho - “ou que a pessoa que tirou os jornais da biblioteca os devolva”, diz com alguma ironia. João CalhazGuilherme de Azevedo, o “diabo coxo”Guilherme Avelino de Azevedo Chaves nasceu em Santarém a 30 de Novembro de 1839 e faleceu em Paris em 1882. Estudou Humanidades no liceu de Santarém, tendo fundado e dirigido na cidade o jornal O Alfageme (1871). A sua intervenção polémica nas páginas dessa publicação, a propósito da Comuna de Paris, é mal recebida na cidade e acaba por sair do jornal nesse mesmo anos. Fixa-se em Lisboa, onde se junta à Geração de 70, participando nas Conferências do Casino que agitam o meio político e cultural e acabam proibidas pelo Governo. Colaborou na Lanterna Mágica e no Álbum das Glórias, este último ilustrado com caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro. É contemporâneo e partilha ideais com outras figuras das nossas letras como Ramalho Ortigão, Eça de Queirós ou Antero de Quental.As suas posições contra a ordem vigente e o desassombro que põe na escrita valem-lhe, ainda em Santarém, um meio fechado e conservador, a alcunha de “Diabo Coxo”, numa alusão à pequena deficiência que tinha numa perna.Sendo correspondente jornalístico do Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, parte em 1880 para Paris, onde viria a falecer. As influências poéticas sofridas vão de Lamartine a Victor Hugo, mostrando a sua poesia algumas semelhanças com a de Cesário Verde. Das suas obras poéticas constam: Aparições (1867), Radiações da Noite (1871) e A Alma Nova (1874). Em colaboração com Guerra Junqueiro, escreveu Viagem à Roda da Parvónia.Uma voz incómodaAs posições cáusticas contra o poder estabelecido ficaram bem vincadas nas crónicas de Guilherme de Azevedo em O Alfageme. Este excerto, citado na introdução à reedição do livro de poesia “A Alma Nova” de 1981, organizada por Manuel Simões e com a chancela da Imprensa Nacional, comenta a decisão ministerial de proibir as conferências democráticas do Casino, onde participavam pensadores e grandes vultos das letras da época. Foi publicada originalmente em O Alfageme, nº 5, 29-6-1871.“Sr. Ministro do reino: aos promotores das conferências democráticas ainda resta uma tribuna, não para castigar a insensatez da vossa resolução, que não merece tal honra, mas para continuar na cruzada santa da nova ideia, para pugnar pela afirmação do novo credo social e democrático, para erguer a voz em defesa da justiça e da verdade. Amanhã, se vos aprouver, amordaçai a imprensa, levai a perseguição até este reduto em que vamos continuar a defender cheios de crença e de convicção os generosos princípios que constituem o nosso credo: a razão humana não pode ser de todo afogada pela mão rude dos vossos aguazis; quando for tudo em silêncio, quando todas as tribunas estiverem mudas e todas as bocas oprimidas, se ao vosso tempo chegar do campo oposto um rumor confuso e sempre crescente, pensai então e acautelai-vos: é a voz da tempestade que nasceu do vento que semeaste; é o grito da consciência pública que se levanta impetuosa; é o rugido da hidra popular que desperta; começais enfim a ouvir tumultuar na praça pública a voz solene da revolução”.

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