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O ciclista que fugia dos estágios para ir ter com a mulher

Lima Fernandes inscreveu o nome na história do ciclismo de Alpiarça e do país

Correu atrás de um sonho numa época em que o dinheiro nem dava para comprar uma bicicleta e “Os Águias” de Alpiarça desvendaram o seu talento para o ciclismo. Pedalou pelo país, ganhou várias provas, foi um lutador. A modalidade que lhe deu tantas alegrias também lhe encheu o coração de desgosto quando viu o filho morrer por causa de doping. Impediu o segundo filho de andar de bicicleta mas não conseguiu impedir que também este morresse em cima de duas rodas, num acidente de moto. Lima Fernandes conta que também foi vítima do doping numa altura em que não havia controlo e em que o único estimulante conhecido era uma mistura de café com vinho do Porto.

Porque é que Alpiarça não tem a importância que tinha no ciclismo?Não é só Alpiarça. A situação acontece um pouco por todo o país. Há vários clubes que acabaram. Isto tem a ver com o facto de cada vez haver menos empresas que invistam nesta área. Mas este é um desporto que ainda cativa muita gente.O problema é que esta é uma modalidade que não tem receitas, como o futebol em que se paga bilhete para ver o jogo. O ciclismo é um desporto de passagem, o desporto de porta a porta. No meu tempo ainda se fazia provas na pista de Alpiarça que representavam uma fonte de receitas que dava para pagar algumas despesas. Nessa altura os ciclistas não ganhavam tanto como hoje…Comecei por correr por amor à camisola. Não ganhava um tostão. Mais tarde é que comecei a receber 1.200 escudos (cerca de 6 euros). Um trabalhador do campo recebia entre 700 a 1.000 escudos. O que ganhávamos não pagava nem de longe o esforço que tínhamos e os sacrifícios por que passávamos.Quem é que lhe pagava o ordenado?Estava contratado como funcionário da câmara municipal na categoria de cantoneiro, mas nunca fiz nada. Só lá ia picar o cartão. Recebia da câmara 900 escudos e o Águias de Alpiarça pagava os restantes 300 escudos. Como o presidente do clube, Raul José da das Neves, era presidente da câmara facilitava as coisas. Depois ainda havia uns talhos que por ser ciclista me ofereciam um quilo de carne por mês. Por vezes era a única carne que tinha para dar à minha mulher e ao meu filho.O facto dos grandes clubes como o Benfica, o Sporting ou o Porto terem deixado de ter ciclismo contribuiu para a decadência da modalidade?Como esses clubes tinham muitos adeptos no futebol acabam por cativar alguns para o ciclismo. “Os Águias” era um clube de província que vivia do bairrismo. Quem contribuía inicialmente para a modalidade eram os lavradores e também se fizeram muitos peditórios porta a porta e até os mais pobres ajudavam. Foi por isso que o ciclismo em Alpiarça durou muito tempo. Na década de 50, quando começou a correr, não se falava de atletas profissionais. Havia três ou quatro no país. Nós éramos amadores e como estávamos no escalão máximo chamavam-nos independentes. Foi campeão nacional de pista em 1959 e 1960. Alpiarça é uma das poucas localidades do país que tem uma pista de ciclismo. Não tem pena que não seja usada?Muita pena! A pista está praticamente abandonada e gastou-se muito dinheiro na sua recuperação, pelo menos por duas vezes. Noutros países há provas de pista e em Portugal abandonou-se esta vertente e praticamente já não há especialistas neste tipo de competição.De quem é a culpa?Não sei. Mas parece-me que em parte se deveu ao desinteresse dos clubes, dos seus directores e dos responsáveis nacionais da modalidade. Hoje o ciclismo é mais o folclore da passagem pelas localidades com todo o marketing, a promoção, a publicidade que lhe está associada.Entrou para o ciclismo com 22 anos quando o normal é começar-se mais cedo…Tinha muita vontade de ser ciclista mas não consegui entrar quando era mais novo porque não tinha dinheiro para ter uma bicicleta com as mínimas condições para começar. A minha família tinha dificuldades. O meu pai era padeiro, um ofício com ordenados baixos. Tive que começar a trabalhar no campo aos 12 anos até ir para a tropa. Qual foi a sua primeira bicicleta?Uma “pasteleira” na qual me deslocava para ir ver a equipa do Águias nas várias localidades da região. Quando fui para a tropa em Alcabideche pensei ir de bicicleta para não gastar dinheiro nas viagens. Fiz um negócio com um amigo que tinha uma bicicleta de um antigo ciclista. Dei a minha pasteleira e mais cem escudos. E a primeira vez que entrei em competição já estava na tropa. Como é que isso se proporcionou?Na mesma unidade havia um ciclista do Alverca e desafiou-me para ir a uma prova popular a Ranholas. Disse-lhe que ia apenas ver porque não estava em condições e nem sequer tinha roda suplente. Mas quando lá cheguei não aguentei e tive que entrar na prova e acabei por fazer um tempo melhor que ele.Escapou à guerra colonial por causa do ciclismo?Não. Estava numa unidade que se chamava bateria de costa que não era mobilizada para o Ultramar. E tive a sorte do comandante gostar muito de desporto e deixar-me ir treinar e entrar e sair do quartel equipado à ciclista.Como é que entra para o Águias de Alpiarça?Estava a ver os treinos na pista de Alpiarça e o presidente do clube, Raul José das Neves, perguntou-me se gostava de ser ciclista. Respondi-lhe que sim mas que a minha bicicleta era fraquinha e que não tinha possibilidades de ser ciclista a sério. Ele mandou-me entrar para a pista com mais três ciclistas e nunca descolei da roda deles. Pouco tempo depois o presidente mandou fabricar um quadro à minha medida, fiz um treino com a equipa e na primeira prova, em Lisboa, como federado, fiquei em terceiro lugar. Que recordações tem desse presidente?Foi como um pai para mim. Era um homem apaixonado pelo ciclismo. Gastou muito dinheiro do seu bolso para dar condições aos ciclistas. Nas voltas a Portugal quando os quartos nos hotéis não davam para todos oferecia-nos a cama dele.Arranjou mais amigos ou inimigos no ciclismo?O ciclismo fez-me ganhar muito mais amigos que inimigos e felizmente posso gabar-me de ter amigos em todo o país, tanto colegas de equipa como rivais. Naquela altura cultivava-se a amizade entre os adversários. No ano passado houve um encontro de confraternização entre ciclistas das décadas de 50 e 60 em Mafra. Como é que Alpiarça tem tratado os seus ex-ciclistas?Não tão bem como devia. No meu caso particular sinto que nos últimos tempos não tenho sido bem tratado por pessoas como o presidente da câmara (Joaquim Rosa do Céu) e do pai dele (Manuel Miranda do Céu) que até foi um bom dirigente dos Águias. Refere-se ao que se passou na inauguração do monumento aos ciclistas?Para essa cerimónia foram convidados ciclistas do meu tempo, outros que apareceram depois, mecânicos, massagistas, directores e esqueceram-se de me convidar. E nem o meu nome referiram nos discursos quando outros foram mencionados. Isso tem a ver com questões políticas?É possível. Mas não sou político, nunca percebi nem percebo de política, nunca andei na política activa nem a escrever nas paredes. Sou apenas um simpatizante do PCP porque é o partido que defende os pobres e os trabalhadores deste país. Isso não me impede de ser amigo de todos, qualquer que seja o seu partido. Um dos meus melhores amigos é o João de Brito que é militante do PSD (eleito na Assembleia Municipal de Alpiarça). Qual foi a prova que mais lhe ficou na memória?A Volta a Portugal em 1959 em que ganho cinco etapas e fico em sexto lugar da geral e o clube classifica-se em segundo lugar por equipas. É a melhor classificação de sempre de “Os Águias” de Alpiarça.

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