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“Não há heróis elegíveis do 25 de Abril”

Coronel Costa Braz Militar de Abril

Viveu de forma intensa o antes, o durante e o depois do golpe de 25 de Abril de 1974, como militar primeiro e, depois, entre outras funções, como ministro que teve em mãos a organização das primeiras eleições livres e com sufrágio universal que se realizaram no país. Discreto, tranquilo e modesto quanto baste, o coronel Costa Braz desempenhou cargos de elevada responsabilidade e esteve ligado a muitos episódios da nossa História contemporânea, mas coloca de parte a hipótese de publicar as suas memórias.

Em 25 de Abril de 1974, o capitão Salgueiro Maia justificou a sua adesão ao golpe militar dizendo que queria ajudar a acabar com o estado a que o país tinha chegado. Olhando criticamente para o Portugal de hoje, a que estado é que o país chegou? Não será aquilo que idealizámos mas fez-se bastante do que pensámos que seria útil que fosse feito. Nomeadamente em termos de liberdade, cidadania e solidariedade social. Foram essas as grandes conquistas da revolução? Acho que sim, liberdade e cidadania. Os direitos e o respeito pelos cidadãos, com “C” maiúsculo, com reflexos na Saúde, na Educação e no apoio aos fragilizados. Esses conceitos hoje são valorizados como merecem? As excepções justificam a regra. Não quero dizer que isso aconteça em todas as circunstâncias mas sem dúvida que houve uma alteração substancial. Quem se lembra do que era o país há 40 anos e olha, sob vários pontos de vista, para a situação actual encontra de facto uma enorme diferença a esse nível que nem toda a gente valoriza como devia. Que sentimento tem por ter vivido por dentro esse período revolucionário? Tenho um sentimento de grande orgulho e de grande satisfação. Vivi o 25 de Abril em três fases. Vivi o antes, porque fiz parte do grupo preparatório do movimento que fez o 25 de Abril, nomeadamente na parte conceptual, ideológica, de objectivos, etc... Depois vivi-o na execução propriamente dita e nas funções que exerci durante uma série de anos em aplicação directa dos conceitos que defendíamos. E vivi-o e estou a vivê-lo ainda, felizmente, no seguimento da própria evolução do país. Os militares de Abril têm sido bem tratados pelo regime que ajudaram a implantar? Vou responder à sua pergunta de uma forma indirecta, mas que penso responder cabalmente à questão. Penso que não há heróis elegíveis do 25 de Abril, porque serão heróis, como algumas pessoas às vezes os procuram chamar, todos aqueles que arriscaram a profissão, a família, a carreira, a sua integridade física na procura do melhor para o seu país. Esses merecem, creio eu, pelo menos o respeito das outras pessoas. Houve quem se distinguisse mais e houve quem se distinguisse menos, ou porque tiveram mais oportunidade que isso acontecesse ou por modéstia. E houve também quem não perdesse uma oportunidade para se pôr em bicos de pés, digamos assim... Isso acontece em todos os lados e não deixou de acontecer aqui. São visíveis e notórios e não me parece que exista sobre eles o conceito positivo que, se calhar, julgam merecer. Em relação à questão anterior, dos que participaram no 25 de Abril e que desenvolveram a sua actividade no seguimento dessas ideias, nenhum quis ter benefícios especiais. Não aceitámos promoções, não aceitámos nada de recompensa a que, porventura, alguém pensasse que tínhamos direito ou merecimento. Houve um desprendimento total por parte dos militares? Houve quem quisesse que houvesse promoções e nós não aceitámos. Isto diz bastante, penso que o suficiente para que, hoje, esta geração e algumas pessoas ainda desses tempos mas que pertencem a grupos críticos sob o ponto de vista ideológico, respeitassem isso. O país tem os políticos que merece? Os países têm sempre os políticos que merecem, se o regime for suficientemente democrático. E o nosso regime é suficientemente democrático? Formalmente é. E isto acontece não só aqui mas também noutros lados. Temos aquilo que foi dito maioritariamente que queríamos. Isto tem a ver com alguns tipos de campanhas abstencionistas que vejo por aí surgirem. Essas campanhas pela abstenção incomodam-no? Considero que o abstencionismo é uma fuga à responsabilidade. O abstencionismo, o voto nulo ou o voto em branco são modos de manifestação de uma posição política pessoal mas eu considero que é uma fuga a uma escolha. E quem foge à escolha tem que aceitar quem aparece a seguir. O voto é um direito e um dever. Se as pessoas estiverem suficientemente consciencializadas das suas obrigações nacionais e como cidadãos, necessariamente que se obrigam a ir votar. Mesmo votando branco ou nulo, que são modos de expressão política. Os cidadãos devem sentir-se obrigados a ter voz activa na maneira como o seu país é conduzido. Isso é que é democracia. Teve uma carreira profissional bastante preenchida e viveu múltiplos episódios que se cruzam com a História do Portugal contemporâneo. Nunca pensou escrever as suas memórias? Pensar em escrever, pensei, mas tenho um problema em relação a isso. Tenho histórias escritas, não são muitas, mas apenas “para memória futura”. Episódios que se passaram comigo, a que assisti, ou coisas em que, de qualquer modo, fui interveniente ou assistente. Mas não publico coisa nenhuma. Porquê? Porque entendo que a palavra “eu” fica demasiado presente em qualquer coisa que se escreva e não gosto que isso aconteça. Além disso há também preguiça da minha parte. Mas há realmente muitas coisas que vivi e a que assisti que não são “estórias” a começar por “e”. São histórias com “H” grande. Mais uma razão para as dar a conhecer? Tem toda a razão. Mas, aí, seja-me permitido que prevarique em relação às minhas obrigações. Tenho visto textos contando versões de acontecimentos relacionados com o 25 de Abril, nomeadamente sobre a intervenção dos autores nesses acontecimentos, que me confrangem. Não deixo no entanto, num caso ou noutro de visão muito diferenciada, de dizer ao autor qual é a minha opinião. Alguns desses textos são pura ficção? Por vezes acontece. São uma maneira tão subjectiva de ver as coisas, tão personalizada, tão a puxar a brasa à sua sardinha, tão exageradamente ideológica, que me incomoda. E eu receio cometer os mesmos erros, mesmo que em menor grau. Portanto, o que já tenho dito é que aquilo que escrevo é para as minhas netas. De uma vida agitada passou para a aposentação. Foi fácil lidar com tanto tempo livre? Fui filho único, de maneira que sempre tive uma certa capacidade para gerir as minhas solidões. Apesar de tudo não foi fácil. Porque passei de uma vida muito activa e muito responsabilizante para uma vida sem responsabilidades a nível profissional. Aconteceu que em 1998 tive um contencioso com um órgão de informação que publicou coisas a meu respeito que tive como difamatórias. Terminei o mandato funcional que tinha em 1999 e não aceitei qualquer outro enquanto a questão não fosse clarificada, o que, lamentavelmente, só veio a acontecer cinco anos depois, com um acórdão da Relação dando-me inteira razão e sancionando severamente os arguidos. Mas então já eu ia nos 70 anos, um tanto tarde para as pesadas incumbências do meu agrado. Foi pena. Entretanto dediquei boa parte do meu tempo a questões relacionadas com os deficientes, presidindo gratuitamente a um Conselho Nacional pertinente. Passou a ter tempo para coisas que antes não podia fazer? Passei a ler mais do que lia, a passar algum tempo no computador, mantive os meus contactos sociais com amigos e colegas, que entretanto vão diminuindo, por força da natureza, e vou gerindo as preocupações familiares que tenho. Sinto-me bem com o meu passado e esperançoso quanto ao futuro do meu país que, com muitos outros, desejei. Um militar de Abril com um currículo notável O Pombalinho é um porto seguro onde Manuel da Costa Braz regressa regularmente para gozar da paz campestre. Foi nessa aldeia, agora do concelho da Golegã, que nasceu em 4 de Novembro de 1934. Homem discreto, de perfil sereno, o militar aposentado fez parte da nata política e militar que emergiu da revolução de 25 de Abril que em 2014 comemorou 40 anos. O currículo do coronel impressiona pela quantidade e pela qualidade dos cargos que ocupou. Militar da arma de artilharia, integrou a comissão política do Movimento das Forças Armadas (MFA). Participou activamente na preparação do 25 de Abril, fazendo parte do grupo que elaborou o chamado Documento de Cascais e o Programa do Movimento das Forças Armadas. Após a revolução foi adjunto militar do primeiro-ministro do 1º Governo Provisório e em Maio e Junho de 1974 integrou a comissão administrativa da RTP. Foi ministro da Administração Interna nos II e III governos provisórios e nos I e II governos constitucionais, entre 1976 e 1980. Do seu caderno de encargos fizeram parte processos complexos como a organização do recenseamento eleitoral e a preparação das eleições para a Assembleia Constituinte (1975) e das primeiras eleições autárquicas (1976). Foi também o primeiro Provedor de Justiça do país, nomeado em Dezembro de 1975, e Alto Comissário Contra a Corrupção entre Dezembro de 1983 e Maio de 1993. Em 1997, foi nomeado presidente do Conselho Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Presidiu ainda ao conselho de administração da Hidroeléctrica de Cahora Bassa (Moçambique) em representação do Estado português, entre Junho de 1993 e Abril de 1999. Costa Braz é detentor de várias condecorações nacionais como a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique (1982) e a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (1985). A Casa do Ribatejo em Lisboa outorgou-lhe o título de “Ribatejano Ilustre” e o Estado espanhol atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica (1978). No que toca à política sempre defendeu a sua independência partidária intransigentemente, garantindo que “sempre assim foi, mesmo quando estava no Governo”. Considerada uma pessoa moderada, mesmo quando se viviam os tempos conturbados pós-25 de Abril, integrou nessa altura o chamado “Grupo dos Nove” que reunia militares da ala moderada. Costa Braz tem orgulho nas suas raízes ribatejanas (o pai chegou a ser presidente da Junta do Pombalinho) e é apreciador de touradas, mas prefere vê-las pela televisão em casa. Confessa-se uma pessoa discreta e pouco dada a excessos emocionais. No que respeita a bairrismos também não é homem de ânimos exacerbados. Ficou satisfeito com a mudança do Pombalinho para o concelho da Golegã, mas diz continuar a gostar de Santarém.

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