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O pai do atletismo em Almeirim já não espera reconhecimento

O pai do atletismo em Almeirim já não espera reconhecimento

Álvaro Ribeiro formou campeões na cidade sem as mínimas condições e saiu do desporto zangado

É daquelas pessoas que dizem o que têm a dizer na cara e que vibra a falar de atletismo e de desporto, o que lhe vale pela parte de muita gente o epíteto de “tontinho”. Álvaro Ribeiro não se incomoda com isso porque o que lhe importa na vida é a família e os atletas, com os quais ainda hoje se preocupa. Nesta conversa, o professor de educação física aposentado e técnico de atletismo durante três décadas emocionou-se algumas vezes, vibrou com algumas respostas e recusou várias chamadas no telemóvel enquanto dava a entrevista. Depois de ter dado tudo o que tinha e podia, hoje sente-se uma pessoa esquecida da cidade, de quem já não espera, nem quer, nada.

Sente que o que dedicou ao atletismo é compreendido pelas pessoas?

Sei que me chamam o tontinho do atletismo. Se calhar porque a dedicação foi muito grande e fazia tudo. Marcava pistas, treinava, dava aulas e ainda investia. Tenho um problema que é ter o coração ao pé da boca e dizer as verdades. Tenho sido prejudicado por causa disso.

O que ganhou com essa dedicação?

A amizade dos atletas e de algumas pessoas que reconheceram o meu trabalho. Há muitos anos, o então vereador do Desporto, Armindo Bento, convidou o Carlos Lopes (medalha de ouro na maratona nos Jogos Olímpicos de Los Angeles) para vir a Almeirim homenagear-me e aos meus atletas. Foi o único vereador que me apoiou e não fez mais porque não o deixaram.

Que condições havia para a prática da modalidade?

O único equipamento que os atletas tinham era uma camisola patrocinada pela casa de electrodomésticos ETA. Quando participávamos em provas em Espanha tínhamos de a virar do avesso para não ser ver o patrocínio, que tinha a mesma designação do movimento nacionalista armado basco. Havia atletas a correrem em eliminatórias e assim que terminavam as provas tinham de entregar os sapatos de bicos ao colega que ia correr a seguir.

Mas tem havido um esforço no apoio ao desporto e na melhoria das condições.

O actual presidente da câmara, Pedro Ribeiro, tem feito uma boa gestão e de forma pacífica. Já lhe disse que o ex-presidente Sousa Gomes prejudicou grandemente o desporto no concelho. Alguns equipamentos que estão em Rio Maior podiam estar em Almeirim. Há muito que podíamos ter uma pista de atletismo coberta. Os vereadores que lá estavam eram boas pessoas mas não tinham vocação para o desporto. Agora até há uma pista de atletismo nova. Uma pista que foi feita à pressa e o piso foi mal colocado. Há zonas onde o “tartan” está a desfazer-se ou tem uma camada muito fina que pode provocar lesões. Mas reconheço que antes era bem pior, com uma pista de pó de tijolo que tínhamos de regar antes dos treinos e das provas.

Tinha equipamentos para as outras disciplinas do atletismo?

O Miguel Santos, filho do professor Alder Dante (antigo árbitro de futebol), foi campeão nacional em salto em altura, em iniciados, e nos treinos muitas vezes saltava para a areia porque não havia colchões, ou se havia eram cheios com palha de milho.

Como conseguiu formar atletas campeões sem o mínimo de condições?

Naquela altura os professores trabalhavam com uma finalidade única, que era ajudar os atletas em condições impensáveis. E não era só no atletismo. No andebol faziam-se treinos nos antigos celeiros da EPAC.

Qual era a receita para ter bons resultados?

Era haver muito sacrifício. A Sandra Barreiro, a Sofia Cardoso, o Pedro Oliveira e a Seomara Barreiro apareceram porque tínhamos acesso à pista do Sporting. Com boas condições tinham chegado muito mais longe. Alguns dos atletas de Almeirim foram campeões nacionais mais de uma dezena de vezes. Temos quatro recordistas nacionais, que são a Sandra Barreiro, a Sofia Cardoso, o Gaga e o Rui Serralheiro. Com as condições que havia era impossível fazer mais.

Parece quase o discurso do desgraçadinho.

Hoje não quero nada. Mas não me esqueço que quando íamos a provas a Espanha muitas vezes tinha que pagar o quarto para os atletas e dormíamos 10 no mesmo quarto. Os espanhóis até metiam as mãos na cabeça quando nos viam a dormir em balneários, em cima dos colchões do salto em altura ou dentro de carrinhas.

O que o satisfaz hoje são os resultados que obteve?

Não, porque o atletismo também serviu para a reintegração social. Levava alunos do Centro de Recuperação Infantil de Almeirim (CRIAL) para provas e competiam com atletas sem deficiência. Uma aluna do CRIAL, Lisete Silva, tinha um arranque rápido e quando ia destacada parava à espera dos outros atletas. Éramos um exemplo.

Papel da Associação de Atletismo causa tristeza

Cada vez mais há políticos dirigentes associativos. Isso é bom?

É impensável. Os políticos devem dedicar-se à política e os dirigentes aos clubes. Estive a trabalhar em Espanha e não havia políticos ligados aos clubes. A ligação dos políticos aos clubes é uma forma de os controlar. Não admito que em Almeirim praticamente todos os autarcas estejam nos clubes. Era o sócio número 9 do Hóquei Clube “Os Tigres” e deixei de o ser por causa disso. Neste momento só sou sócio de mérito do União de Almeirim.

Porque é que, apesar dos subsídios aos clubes, os praticantes de desporto têm de pagar mensalidades?

Pagar para praticar desporto é uma forma de discriminação. Fui preparador físico de Os Tigres e na altura via que o dinheiro que era dado para a formação acabava por ser gasto nos seniores. Outro problema é que os pais, como pagam, sentem-se no direito de pressionar os clubes e os treinadores para os filhos jogarem. Querem fazer dos filhos campeões à força.

Como é que vê o papel da Associação de Atletismo de Santarém?

Como fundador da associação sinto-me triste. Triste porque eu e os meus colegas fundadores quando saímos nunca mais fomos convidados para nada. Há duas pessoas que, devido ao que têm feito, não têm condições para estar na associação. Também não posso admitir que o presidente da associação não seja imparcial e que nos órgãos dirigentes não estejam pessoas representativas do distrito.

Porque é que não há tantos ídolos do atletismo como antigamente?

Porque houve uma derrapagem. Porque durante anos houve uma polémica entre técnicos dos clubes e a federação. Hoje os atletas têm todas as condições para progredirem e há uma crise de resultados que não percebo.

Os clubes grandes deviam apostar mais nas modalidades ditas amadoras?

Sim. E tenho receio que quando o professor Moniz Pereira morrer acabe o atletismo no Sporting.

Qual o clube que está a fazer mais pelo atletismo?

O Fátima tem feito um bom trabalho, em Almeirim também se tem trabalhado bem. Mas um valor demora oito a nove anos a formar.

“Não aceito medalhas”

Foi trabalhar para Espanha zangado com a sua terra?

Sim! Estive em Espanha (Olivença e Badajoz) durante 15 anos e fui por ver que as promessas não eram cumpridas. Ainda estou à espera que o então vereador do Desporto, Gabriel Duarte, faça o que prometeu, que era eu ser requisitado para a câmara para desenvolver o atletismo. E choca-me que nem me tenham convidado para a inauguração da nova pista.

A cidade esqueceu-o?

Já não me importo com isso. Fui recentemente homenageado por um grupo de ex-jogadores do União de Almeirim. Essa homenagem é sentida. Neste momento, se quiserem atribuir-me distinções não vou aceitar. Gostava de ter sido apoiado quando precisava e as medalhas hoje não resolvem nada. É triste ver que a Assembleia Municipal de Alpiarça foi a única que nos deu um louvor, quando tivemos que ir treinar durante um tempo para essa vila.

Porque é que nunca mais treinou?

Quando regressei de Espanha, há seis anos, não queria ser mais um clube.

Porque é que não se envolve na prova 20 quilómetros de Almeirim?

Fui o fundador da prova e o senhor Gabriel Duarte aproveitou-se disso. Era colega de curso do professor Mário Machado e através dele consegui trazer a prova para Almeirim. O que mais me chateia é que a prova em determinada altura serviu para fins políticos. Mas reconheço que a prova é um incentivo ao atletismo apesar de, infelizmente, alguns atletas de Almeirim estarem em clubes de fora do concelho. A cidade é madrasta para alguns valores que tem.

Quem é que marcou o desporto em Almeirim?

A grande perda para o desporto de Almeirim foi a morte do major Caetano, que foi presidente do União de Almeirim e que conseguiu unir toda a gente de várias sensibilidades. Naquela altura o União era um clube eclético, que além do futebol tinha atletismo, andebol e outras modalidades. E ninguém pagava mensalidades. Se ele não morresse teria sido presidente da câmara.

Um promissor futebolista que foi para o atletismo porque via mal

Álvaro Lopes Ribeiro, nascido a 19 de Outubro de 1942, considerado por alguns o “pai do atletismo em Almeirim”, teve no desporto a salvação de duas fases marcantes da sua vida. Uma foi amenizar o que sofreu com um pai austero e outra foi libertar-se das dores físicas e psicológicas da Guerra do Ultramar, na qual ficou ferido no rebentamento de uma mina quando combatia na Guiné. “Se não fosse ter-me agarrado ao desporto, que foi a minha fisioterapia, teria provavelmente ficado numa cadeira de rodas”, desabafa.

Foi quando regressou da Guiné ao fim de oito meses de guerra que tirou o segundo curso e aquele que gostava, o de educação física, porque o pai o tinha obrigado a tirar o curso de regente agrícola. Ainda trabalhou na antiga Junta Nacional do Vinho e na Junta das Frutas, este último um emprego arranjado pelo Sporting, clube onde começou a praticar atletismo.

A vida de Álvaro Ribeiro não foi só feita de emoções e de vitórias. Também teve azares e um deles fez com que ainda hoje tenha estilhaços no corpo da mina que atingiu o então cabo miliciano e que matou um camarada de armas. “Vim da Guiné para Lisboa para um médico me tirar os estilhaços através de um sistema de ímanes, mas quando cheguei ao hospital o médico tinha morrido”, lembra.

Outra situação que o atormentou foi o stresse pós-traumático que o levava a dormir em casa com facas debaixo da cama. Momentos de grande pressão que, revela, também causaram problemas a duas filhas. Álvaro Ribeiro diz que a sua família é a sua esposa, os quatro filhos, os netos e os atletas. Diz que foi traído por muita gente.

Nasceu em Ramalde, concelho do Porto, mas ainda menino foi viver para Almeirim. Foi professor de educação física em Coruche e Santarém e a maior parte da carreira no Ministério da Educação foi na Escola Febo Moniz de Almeirim. Quando acabava as aulas ia treinar atletismo para a pista até às 9 ou 10 horas da noite. Não ganhava nada com isso. Os fins-de-semana passava-os em provas ou em estágios.

Começou a praticar desporto com 15 anos, na equipa de futebol dos juniores do Lusitano de Évora, que estava na primeira divisão. “Tinha uma grande velocidade, fazia 100 metros em 11 segundos. Era um promissor extremo-direito”, recorda. Não foi mais longe no futebol porque via mal e virou-se para o atletismo. Foi treinar ao Sporting e ficou. Foi campeão nacional pelo clube em juvenis e juniores. A sua especialidade era a velocidade, provas de 100 e 200 metros, e também fazia salto em comprimento.

Foi técnico de atletismo desde 1966 até meio da década de 90. Esteve nos clubes Juvenil de Almeirim, CADCA, União de Almeirim e Bombeiros de Almeirim, Benfica de Castelo Branco, União de Santarém, Águias de Alpiarça e Sporting Clube de Portugal. Foi preparador físico das equipas de hóquei em patins de “Os Tigres”, Sporting Clube Marinhense e Corujas de Coruche.

Como atleta foi campeão regional e três vezes campeão nacional (em 4x100 metros) entre 1962 e 1973. Foi técnico da Direcção Geral de Desportos.

O pai do atletismo em Almeirim já não espera reconhecimento

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