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José Nepomuceno: “Os bombeiros estão a perder o sentido de voluntariado e isso é preocupante”
José Nepomuceno é comandante da corporação onde começou como voluntário aos 16 anos

José Nepomuceno: “Os bombeiros estão a perder o sentido de voluntariado e isso é preocupante”

José Nepomuceno, 51 anos, comandante dos Bombeiros Voluntários de Benavente.

José Nepomuceno tem um espírito de missão que nunca o abandona. É bombeiro há 34 anos e comandante dos Voluntários de Benavente há sete. Ter perdido o pai cedo demais tornou-o sentimental e mais humano. É um homem do associativismo mas para a política não o convidem. Em 2019 realizou o sonho da sua vida: participar numa missão internacional.

Em 2019 fiz a minha primeira missão internacional enquanto bombeiro, em Moçambique, após o ciclone Idai. Achei que já tinha visto de tudo mas afinal não estava preparado para lidar com tamanha miséria. Até comer passou a ser duro, com dezenas de crianças esfomeadas a olhar para nós à distância.

No concelho de Benavente a cada 500 metros tenho uma história triste para contar. Geralmente guardo-as para mim. Tenho uma espécie de diário de bordo onde escrevo sobre as ocorrências, sobretudo as mais difíceis, com crianças. É uma espécie de desabafo.

Os bombeiros deviam ter um tipo de resposta de apoio psicológico mais diferenciado. Tudo pelo que passamos nos deixa marcas, mais ou menos profundas, que costumamos ignorar.

Já perdi a conta às pessoas que socorri mesmo estando fora de serviço. Há em mim um dever de missão que nunca desaparece. Seria impensável passar por um acidente e não parar para prestar auxílio. Mas há quem o faça.

Vim para os bombeiros aos 16 anos porque o quartel tinha uma televisão a cores. Hoje os jovens têm tudo. Como se dá a volta a isto e os conseguimos cativar? É uma pergunta que faço e para a qual não tenho resposta.

Nasci em Alcochete e vim morar para Benavente com 11 anos, onde tenho as minhas raízes familiares. Nos primeiros anos senti falta da praia dos Moinhos mas depois comecei a nadar no rio Sorraia, inclusive nas aulas de educação física. Algo que hoje seria impensável.

Sinto que se tem vindo a perder cada vez mais o respeito pelos professores e pelas hierarquias em geral. Os jovens, generalizando, deixaram de saber respeitar os mais velhos.

Se ainda vivesse em Alcochete tinha sido forcado. Em criança ia acompanhar os treinos dos forcados e ficava maravilhado. Estas raízes que temos não as devemos perder nunca. Sou pelo associativismo. Fui dançarino no Rancho Saia Rodada, integrei a direcção do CUAB, a comissão da Sardinha Assada e a comissão da Nossa Senhora da Paz.

Tive uma educação rígida. À mesa ninguém se levantava sem que o meu pai desse autorização, mas por outro lado valorizávamos o afecto. Nunca saía de casa sem lhe dar um beijo. Hoje cumprimentamo-nos com murros e temo que este seja um dos efeitos negativos que a Covid-19 vai deixar a longo prazo.

Sou muito sentimental talvez por ter perdido o meu pai cedo demais. Gostava que a vida nos tivesse dado tempo. Desde o dia da sua morte tudo me toca de maneira diferente. Sou crente à minha maneira, custa-me aceitar as partidas injustas que a vida prega.

Na minha profissão tenho que ser rígido, mas não gosto de sentir que em algum momento fui longe demais. Nunca perco, por isso, a minha humanidade na forma de gerir a corporação. Já fui convidado duas vezes para a política e recusei. Pelo menos enquanto servir esta casa nunca me vão ver em cartazes de campanhas eleitorais.

Os bombeiros estão a perder o sentido de voluntariado e é preocupante. Dantes tínhamos um fato macaco, um par de botins de borracha, um cinturão e um machado, mas um enorme espírito de missão. Agora, quando começa a haver obrigações de escala muitos deixam de ser bombeiros. Lembro-me que na minha recruta éramos 32 e ficámos 31. Na última que fizemos nesta corporação eram 10 e ficaram quatro. Sei que não erro quando digo que o bombeiro voluntário tem tendência para acabar.

O Estado devia olhar para as corporações com mais respeito e não como se quisessem acabar com o serviço que prestamos. Ao vermos outras forças especiais a fazer serviços que eram exclusivos dos bombeiros significa que nos estão a dar cada vez menos importância. Temos o saber, a experiência, os meios, só nos falta mais financiamento. Há corporações a comprar ambulâncias e carros de combate a incêndio com 30 anos, que alemães ou franceses descartaram.

Não consigo desligar da minha profissão. Costumo fazer férias fora do país porque cá o rádio anda sempre ligado colado a mim. Faço parte da tertúlia “Avó Velhinha”, juntamente com mais bombeiros, mas onde é expressamente proibido falar da profissão. É o nosso escape para uns copos e petiscos.

José Nepomuceno: “Os bombeiros estão a perder o sentido de voluntariado e isso é preocupante”

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