Legalização da canábis para fins recreativos volta ao Parlamento depois das eleições
A liberalização do consumo da canábis caiu por terra com o final antecipado da legislatura. O MIRANTE falou com quatro deputados da região sobre o tema, que não é consensual: PS e PSD continuam a falar na necessidade de mais estudos e reflexão, o PCP mantém-se contra e o BE promete não desistir da luta pela legalização.
Com o Parlamento dissolvido à espera das eleições legislativas antecipadas de 30 Janeiro de 2022 caiu por terra o debate sobre a legalização da canábis para uso pessoal e recreativo, tema que tem sido ao longo de anos fracturante da esquerda à direita. O mais provável é que volte à discussão pelas mãos do Bloco de Esquerda (BE) ou da Iniciativa Liberal depois de em Julho terem apresentado dois projectos de lei que baixaram à comissão da especialidade sem votação e cujos requerimentos foram aprovados por unanimidade.
A deputada do BE eleita por Santarém, Fabíola Cardoso, garante que o seu partido “não vai deixar cair este assunto”, numa altura em que diz haver condições para que em Portugal se possa dar este passo. “O consenso é tão vasto na sociedade que se dá o caso de dois partidos do espectro oposto terem apresentado esta iniciativa”, afirma.
Questionada sobre se está mais preocupada com a esquerda ou a direita, Fabíola Cardoso considera que “algumas reservas têm vindo a ser ultrapassadas”, através do trabalho que tem sido feito ao nível da especialidade, incluindo as audições a diversas entidades. “O PCP dificilmente votará a favor”, atira, mantendo-se no entanto confiante que o projecto de lei que o BE vai voltar a apresentar tem condições para ser aprovado.
O BE, explica a deputada, defende a legalização responsável e segura, que envolve a inclusão de outras medidas promotoras ao nível da saúde, segurança e integração na sociedade. “A legalização da canábis é essencial para combater processos de pequena criminalidade e de estigmatização”, sublinha.
Na última versão entregue ao Parlamento o BE abdicou da possibilidade de auto-cultivo para consumo próprio proposta em 2019 e que fez com que o PSD votasse contra a iniciativa. Também PCP, CDS e parte do PS votaram contra.
Para a deputada do PSD Isaura Morais, continua a haver necessidade de uma grande reflexão, para que as medidas que venham a ser adoptadas “protejam as pessoas da vulnerabilidade em que se encontram”. Mas antes da liberalização das drogas leves, considera, “urge apostar mais na prevenção dos consumos, informando os jovens dos malefícios de qualquer tipo de adição e fomentando hábitos de vida saudáveis”.
PCP colado na discriminalização sem liberalização
Do lado do PCP não se esperam ventos de mudança. Questionado por O MIRANTE, o deputado António Filipe considera “indesejável” a liberalização das drogas leves e não vê necessidade de se referendar o tema.
Mantendo-se fiel ao projecto-lei apresentado pelo partido no ano 2000, António Filipe defende a despenalização (já aprovada e em vigor) do consumo de drogas sem liberalização. “Não podemos subestimar as consequências profundamente nocivas do consumo de drogas para a saúde física e psíquica dos consumidores e a facilidade com que o chamado consumo recreativo se torna em absoluta dependência sobretudo entre as camadas mais jovens”, afirma.
Necessário reflectir sobre os impactos na saúde
No que toca ao PS este tem sido um tema fracturante. A deputada socialista Vera Braz, que é também presidente da Assembleia Municipal de Azambuja, pertence à fracção que entende que antes de se avançar para a legalização é preciso estudar os reais impactos destas drogas. “Pessoalmente concordo que se tem de olhar para o tema e obter mais informação que actualmente não existe, ao contrário do álcool e outras drogas. Como, por exemplo, a partir de que quantidade é que é nocivo para a saúde?”, questiona. E o mesmo, sublinha, aplica-se um possível referendo sobre o tema. “É preciso primeiro que a sociedade esteja bem informada antes de poder ser chamada a pronunciar-se”, defende.
De acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, Portugal é o segundo país europeu que mais consome canábis de forma regular superado apenas pela Espanha. No “relatório europeu sobre drogas 2021: tendências e evoluções”, divulgado no mesmo mês em que o BE e a IL reacenderam o debate sobre a liberalização da canábis, lê-se que três em cada cem portugueses consomem canábis pelo menos 20 vezes por mês, percentagem que sobe 4,16% na faixa etária dos 15 aos 34 anos. Tanto a Ordem dos Farmacêuticos como a Ordem dos Médicos são contra o uso da canábis para fins recreativos devido ao que consideram ser os seus efeitos graves para a saúde nomeadamente cancerígenos e aditivos.
Grande percentagem dos jovens internados em psiquiatria consumiu canábis
Como director do serviço de internamento para jovens no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e pela experiência de ter observado muitos casos de doença psiquiátrica relacionada com o consumo de canábis, o psiquiatra José António Salgado considera que “a sua legalização comporta riscos nomeadamente em relação ao consumo abusivo e da saúde mental”.
No serviço que dirige são internados todos os anos aproximadamente 400 jovens e “em perto de metade foi o consumo de canábis que potenciou o aparecimento da doença” psiquiátrica, sendo a psicose a mais comum.
Na opinião do psiquiatra, que também dá consultas na AS Médica, em Santarém, “a ideia de que a canábis [para uso recreativo] é uma droga leve é perigosa” porque a principal substância psicoactiva da canábis, o Tetra-hidrocanabinol (THC), que hoje em dia tem uma percentagem cerca de “seis vezes maior que há 20 anos” é potenciador do desenvolvimento de psicose. E quando não o é, o mais provável é que cause o chamado “síndrome amotivacional” que leva o consumidor a “afastar-se da realidade e das suas responsabilidades”.