Sociedade | 11-11-2019 07:00

Cemitério de VFX é um museu a céu aberto

Cemitério de VFX é um museu a céu aberto

O Dia de Todos os Santos e o Dia de Finados são duas datas comemorativas que fazem rumar milhares de pessoas aos cemitérios para homenagear a memória dos seus antepassados. O MIRANTE fez uma visita guiada ao cemitério de Vila Franca de Xira, local onde estão várias figuras ilustres da cultura ribatejana.

Às portas do cemitério de Vila Franca de Xira encontramos Alice Nanitas e Lurdes Tomás, duas vendedoras de flores. Embora disputem a clientela nem por isso deixam de partilhar o almoço enquanto conversam com o repórter de O MIRANTE. Avessas a fotografias, contam que esta altura é a melhor para o negócio e negam a ideia de se estarem a aproveitar da morte. “As flores e as velas, que são os produtos que mais vendemos, são uma forma de as pessoas se voltarem a ligar a quem perderam e de as homenagearem”, afirmam.

Ana Serra, antropóloga, foi a técnica da Câmara de Vila Franca de Xira que nos acompanhou numa visita guiada ao local. Iniciou a conversa enaltecendo as marcas que fazem a diferença deste cemitério em relação a outros. “A vista magnífica sobre o Tejo, as lápides, os jazigos e os mausoléus fazem com que este cemitério não seja um lugar frio e sombrio mas sim um espaço de uma beleza inigualável”, explica.

De mapa na mão, como se estivéssemos dentro de um museu à procura das melhores obras de arte, procuramos pelas figuras ribatejanas e vilafranquenses que ali estão sepultadas. O primeiro que encontrámos foi o mausoléu de José Mestre Baptista, cavaleiro tauromáquico “que se fez a si próprio e que marcou uma época”. Apelidado por muitos como “louco”, pelo seu estilo de toureio, foi condecorado pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Mestre Baptista viria a falecer de um ataque de asma, em 1985, e na sua sepultura conta como epitáfio um verso do poema de Alexandre Herculano, A Harpa do Crente: “Dormir? Só dorme o frio/Cadáver que não sente/Alma voa e se abriga/Aos pés do Omnipotente”.

Junto a Mestre Baptista encontra-se o mausoléu de José Falcão, toureiro e matador de toiros vilafranquense. Tal como a sua carreira, o monumento de homenagem ao toureiro é imponente e foi idealizado como se de uma praça de toiros se tratasse. José Falcão viveu uma carreira profícua ao tourear na Europa, América e África. Dizia que quando morresse gostaria que fosse na arena a tourear. Faleceu aos 31 anos, numa praça de toiros de Barcelona (Espanha), na sequência de uma cornada de um toiro.

No meio de muitas campas que passam despercebidas encontramos o sepulcro de Alves Redol. Está de tal forma fora de rota que nem o responsável pelo cemitério o encontrava. Embora simples, o formato da sua lápide é muito pouco comum, assim como o material de que é feita (metal). A própria oisição, na vertical, também foge aos canônes. Para alguns exibe aquilo que o escritor representou enquanto figura incontornável do neo-realismo português. Nascido em Vila Franca de Xira, no ano de 1911, serviu-se das tradições ribatejanas e da luta dos trabalhadores por melhores condições de vida como inspiração para a sua obra. “Avieiros” é uma das suas obras mais conhecidas, mas também a “Barca dos Sete Lemes” e a “Fanga” são títulos que ainda hoje merecem os melhores leitores.

Vila Franca de Xira presta-lhe homenagem perpetuando a sua memória no Museu do Neo-Realismo, num busto colocado na escola secundária, que recebeu o seu nome, e na estátua colocada na rua com o seu nome, no centro da cidade, que fez correr muita tinta por apresentar o escritor nu, apenas com uma boina na cabeça e um livro na perna.

Os cemitérios também são para os vivos e devem fazer parte de roteiros de visitação porque contêm elementos que permitem conhecer a história social e artística das regiões, através da estatuária e arquitectura, mas também dos epitáfios e dos símbolos colocados nos túmulos. São considerados locais de preservação da memória familiar e colectiva, fonte de estudo das crenças religiosas, da expressão do gosto artístico, da ideologia política, e também fonte reveladora da perspectiva de vida.

“Não lido muito bem com a morte”

Mário Dias, 46 anos, é responsável pelo cemitério de Vila Franca de Xira há cerca de dois anos. Quando o repórter de O MIRANTE lhe perguntou qual é a sensação que tem ao entrar todos os dias no cemitério, responde emocionado: “Sinto o ar pesado e a carga emocional negativa deste espaço”. Mário perdeu a mulher há alguns anos e, apesar de não estar ali sepultada, sente o impacto dessa perda diariamente. Mas o trabalho tem que se fazer independentemente das circunstâncias. “Não lido muito bem com a morte. Ter que acompanhar as pessoas nos funerais e olhar para o sofrimento delas é muito difícil para mim”, desabafa, reafirmando que é preciso ganhar a vida.

Mário Dias perde a conta aos quilómetros que faz por dia a trabalhar. O dia de Mário, e dos três colegas que trabalham consigo, passa por abrir covas, limpar os caminhos, fazer manutenção às campas, levantar corpos e lavar ossos. “É um trabalho muito duro para tão poucos trabalhadores”, afirma para explicar a necessidade que existe em colocar mais pessoas a trabalhar no cemitério.

O responsável conta que o objecto que mais o marcou a acompanhar um caixão para debaixo da terra foi no primeiro funeral que fez. “Um jovem músico levou a sua viola a acompanhá-lo na sua última morada”, diz.

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