Sociedade | 31-03-2020 12:30

Coronavírus estragou a festa dos 60 anos a José Madeira um homem que trata a morte por tu

Coronavírus estragou a festa dos 60 anos a José Madeira um homem que trata a morte por tu

Coveiro residente em Casais de Azenha, concelho de Santarém, queria celebrar seis décadas de vida com uma festa de arromba.

Tal era a vontade de ter a casa cheia que até pôs um anúncio no jornal a convidar amigos, vizinhos, clientes e autarcas. As medidas restritivas impostas pelo estado de emergência cancelaram-lhe o convívio mas promete que fica para o ano. Aqui fica um pouco da história de vida de um homem que trata a morte por tu.

A pandemia causada pelo novo coronavírus veio estragar os planos de José Júlio Cordeiro Madeira, residente em Casais da Azenha, freguesia de Azóia de Cima, Santarém. O coveiro de profissão queria comemorar os 60 anos de vida com uma festa de arromba em sua casa no sábado, 21 de Março. Para isso até pôs um anúncio no nosso jornal a convidar toda a população, autarcas das juntas de freguesia onde trabalhou e ainda trabalha, bem como agências funerárias, colaboradores e amigos. O gesto, diz, servia para juntar todas as pessoas a quem está grato. Só que a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República, dois dias antes, fez ruir o sonho: o vírus obrigou ao isolamento e a festa foi cancelada.

Homem habituado a lidar com os dramas da vida, desdramatiza a partida que o destino lhe pregou. “Não é agora é para o ano”, assegura bem disposto. Diz que publicou o anúncio para que a sua festa chegasse mais longe e captasse a atenção de mais gente. “As empresas não o fazem também? Pois bem, fiz um para mim”, exclama com uma enorme gargalhada. O borrego, o porco, a panela de sopa e a tachada de carne que estavam previstos para a ementa ficam adiados talvez para o fim de Julho, altura em que a esposa celebra o seu aniversário. “Senão é para o ano”, atira.

José Madeira tem apenas a quarta classe mas tem assunto para uma tarde de conversa. O tema pode parecer mórbido para alguns, mas ele trata a morte por tu. Fomos conhecê-lo, na terça-feira, 24 de Março. Cumpre as ordens de quarentena, mas à sua maneira. A horta que tem atrás da casa não pode esperar. É como os mortos, “mas ao contrário”, diz entre risos acrescentando que ali trata da vida.

Deixa a horta e aproxima-se da jornalista cumprindo sempre as distâncias de segurança. O dia de sol é apelativo a vir cá fora cuidar do que planta para colher. As couves, hortaliças e outras verduras ainda não estão no ponto, mas já servem para pôr no prato. A mulher cumpre a quarentena. A nossa conversa é feita sentados junto a campas que tem no quintal. São pedras de mármore como outras quaisquer, apenas têm a diferença de já terem servido para tapar a cova de alguém, diz.

Júlio Madeira trá-las para casa sempre que estão rachadas ou a necessitar de manutenção. A esposa, no início da sua actividade de coveiro, mal conseguia olhar para elas. Mas teve que habituar-se à ideia.

“O que mais custa é abrir as covas pequeninas”
Já perdeu a conta ao número de covas que abriu em 23 anos de serviço. Orgulha-se de ser o primeiro português a colectar-se nas finanças, em nome individual, como “construtor covil”. Foi a 1 de Maio de 1997. E foi nesse dia que abriu a primeira cova. “Lembro-me bem. Foi muito forte”, diz. Mas ao mesmo tempo estava concentrado para que nada corresse mal. “Cheguei a casa e lavei-me todo. Acho que foi o maior banho da minha vida. Depois habituei-me”, relata.

Já trabalhou em fábricas de cerâmica, nas obras e como auxiliar de guarda florestal em zonas de caça. Chegou a coveiro um pouco por acaso. “A necessidade a tudo obriga e temos que nos saber adaptar por necessidade e foi o que me aconteceu. Em conversa com algumas pessoas surgiu a ideia”, recorda.

Conta que o que mais custa é abrir as covas pequeninas. “Já enterrei recém-nascidos, crianças e jovens. É o que custa mais. Pensam que não sofremos com isso e até olham para mim quando começo a fechar a cova, mas não sou nenhum animal. Os coveiros choram, mas têm que chorar para dentro”, revela com os olhos embargados de quem já presenciou sofrimento que chegue.

Ao todo tem sete cemitérios onde faz a maior parte do seu trabalho: Cortiçal, Abrã, Amiais de Cima, Arneiro das Milhariças, Abitureiras, Póvoa da Isenta e Azóia de Cima, de onde é natural e onde abriu a primeira cova.

Se houver aumento de trabalho é mau sinal
Apesar de ser o seu sustento, José Madeira não pede mais trabalho. Os cinco funerais que faz, em média, por mês chegam-lhe. Se houver um aumento de trabalho, como diz que pode haver por causa da pandemia do coronavírus, é mau sinal. “Não vivo do mal dos outros. Actualmente, até quero é que nem haja muito trabalho, porque será muito mau sinal”. Nesse momento recebe um telefonema que o convoca para um trabalho no dia seguinte.

Admite que sente medo de andar a trabalhar neste período, mas “alguém tem que os enterrar”. Por isso reforçou as medidas de protecção. Homem de trabalho e de vida no campo e ao ar livre, diz que foi o próprio Homem que criou este bicho, referindo-se ao coronavírus. “Foi o bicho homem que fez isto. Ele consegue-se matar a si e aos outros por causa do egoísmo”. De que forma? José Madeira não sabe explicar, mas tem conhecimento das notícias que indicam que os índices de poluição diminuíram desde que grande parte do mundo está fechado em casa.

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