Sociedade | 13-04-2020 18:00

Para a ADP e General Electric uma vida humana vale oito mil euros

Para a ADP e General Electric uma vida humana vale oito mil euros

Cerca de quatro dezenas de vítimas da legionella abrangidas pela acusação do Ministério Público aceitaram um cheque de 8.050 euros dos arguidos para o caso cair na fase de instrução e ser evitado o julgamento.

O processo em tribunal do surto de legionella, que matou 12 pessoas e infectou mais de 400 no concelho de Vila Franca de Xira em 2014, está parado desde Novembro e com a actual pandemia não há informação de quando volta a ser retomado. A maioria das vítimas residia em Alverca, Forte da Casa e Póvoa de Santa Iria.


Das 73 pessoas mencionadas na acusação do Ministério Público cerca de quatro dezenas já assinaram um acordo com as empresas arguidas e receberam, no final do ano passado, 8.050 euros cada. As restantes consideram o valor ridículo e recusam-se a aceitá-lo.


As três centenas que ficaram de fora da acusação continuam a lutar pelos seus direitos nos tribunais e juntamente com a associação das vítimas que já entregou em Novembro uma acção popular contra o Estado.
Quanto vale uma vida humana?


Filipa Ferreira, advogada em Benavente, explica a O MIRANTE que a lei não prevê um valor para a vida humana. O que se tenta fazer nestas situações é minimizar ou confortar as vítimas ou seus familiares pela perda da vida ou pelos problemas de saúde que lhes foram causados. É o tribunal que decide os valores indemnizatórios mas a advogada considera oito mil euros um valor muito baixo.


E o pagamento desse valor pode ser visto como uma assumpção de culpa por parte dos arguidos? “O processo só será arquivado na fase de instrução caso o Ministério Público (MP) considere que o valor entregue pelos arguidos é razoável e suficiente para acautelar os interesses das vítimas nesta fase”, explica.


Para a causídica, a tentativa dos arguidos é evitar o julgamento e uma eventual condenação. “Para os arguidos acaba por ser mais vantajoso ver o processo terminar na fase de instrução. Porque depois, em julgamento, as vítimas arriscam-se a não receber nada caso não seja feita prova da acusação”, explica. No fundo, os arguidos livram-se do problema e deixam as vítimas com um valor garantido. “É uma moeda que dá para ser vista dos dois lados”, conta.

Oito mil euros é um valor “quase ofensivo”


João Guerra é sociólogo e trabalha no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Fez um estudo aprofundado junto das vítimas da legionella sobre os problemas ambientais e as conclusões foram apresentadas em Vila Franca de Xira em 2017. “Continuo a achar que foi um problema ambiental que teve sérias repercussões na saúde humana. Deveria ter havido forma de evitar isso”, afirma a O MIRANTE.


Para o sociólogo, é impossível dar um valor à vida. “Teria de haver uma forma justa de ressarcir essas pessoas e isso não aconteceu. Desde logo porque muita gente ficou de fora da acusação do MP. A prioridade dos serviços de saúde na altura foi salvar vidas e não se tomaram as devidas precauções para garantir amostras para uma investigação judicial futura. Ninguém pensou no assunto porque não se sabia o que estava a acontecer”, lamenta.


Para João Guerra, houve vítimas que perderam toda a capacidade de sair de casa, por se cansarem demasiado a subir e descer escadas. Por isso, diz, sentir-se-ia ofendido se lhe propusessem um valor desses. “Essas coisas têm um preço e não são oito mil euros”, lamenta. No entanto compreende que para muitas pessoas “vale mais um pássaro na mão do que dois a voar”.

“Ninguém ficou doente por sua vontade”


Carlos Augusto morava em Alverca aquando do surto e é cientista ambiental e analista de riscos ambientais. “O que se viveu com a legionella foi um sério risco ambiental”, confirma. Para ele, o consenso mundial é de que o risco aceitável no que toca à indústria química é de uma morte a cada milhão de pessoas. “Esse é o princípio, agora como dar um valor a essa vida humana é uma questão filosófica, mas sobretudo de advocacia”, explica.


Para Carlos oferecer oito mil euros a cada vítima de legionella “parece pouco” e é um valor baixo, especialmente se se tratar de alguém que estava em idade produtiva e a trabalhar. “No fundo é pouco mais de um ano de salário”, lembra. Importante é, sobretudo, a parte moral de toda a questão. “Estamos a falar de pessoas que até ao dia de hoje sofrem e que ficaram doentes sem terem culpa. É diferente de um fumador que assume os seus riscos. Ali ninguém escolheu ficar infectado”, conclui.

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