Sociedade | 05-08-2020 10:00

Maria do Céu Antunes diz que tem alma peregrina

Maria do Céu Antunes diz que tem alma peregrina
ENTREVISTA COMPLETA

Entrevista com a ministra da Agricultura do governo de António Costa que tomou posse em Outubro de 2019. A ex-presidente da Câmara de Abrantes fala do seu trabalho, da família e do seu prazer em servir a causa pública.

Maria do Céu Antunes é ministra da Agricultura depois de uma passagem rápida pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Regional, e depois de um percurso de uma década como autarca na Câmara de Abrantes. Uma conversa pessoal e intransmissível com uma mulher que herdou um ministério que perdeu importância para o Ambiente, que foi uma das surpresas deste novo Governo, nomeadamente por não ter formação na área e substituir no cargo Capoulas Santos, um dos dinossauros do PS que fez frente a António Costa e perdeu a batalha. A conversa decorreu sob o signo do equilíbrio, uma palavra usada várias vezes, e a alma peregrina, que Maria do Céu Antunes diz ter e gosta de cultivar. A conversa começou, naturalmente, pelas questões pessoais...

….tenho duas filhas, uma com 24 e outra com 22 anos. A mais velha está a acabar Medicina no Porto, falta entregar a tese. A mais nova estuda design de moda em Londres. Para elas tenho o tempo que tinha. A Margarida teve aulas à distância neste último semestre, por causa da pandemia, o que proporcionou que estivéssemos mais perto uma da outra.

Há mais um carro do Estado, com as luzes azuis a piscar, levando e trazendo uma ministra que vai dormir todos os dias a Abrantes ?

Não. Infelizmente não. Por razões várias, que não interessam para esta conversa, fixei a minha residência em Lisboa.

Trouxe o cão para Lisboa?

O Milu já morreu. Estava velhinho. Morreu em Janeiro, antes de vir para Lisboa. Era da minha filha mais nova. Veio para a nossa casa no dia em que ela fez 9 anos.

Em Abrantes levantava-se às 07h00 da manhã, aqui levanta-se a que horas?

Aqui levanto-me por volta das 06h00. Normalmente vou fazer ginástica, depois como, leio as notícias e vou trabalhar. Não tenho hora para terminar o dia. Ainda ontem saímos da Assembleia da República por volta das 21h30.

Há dias em que dá para ir à esplanada beber uma cerveja?

Como em todas as profissões há dias muito intensos e outros mais leves. É neste justo equilíbrio que se tem de aprender a gerir a nossa vida pessoal com a profissional.

Tem tempo para acompanhar o que se passa na sua região ou no seu concelho?

Claro que sim. Falo frequentemente com o meu sucessor, muitas pessoas me telefonam, vejo redes sociais e leio a comunicação social, local e regional.

Continua a fazer política local?

Quando aceitei vir para o Governo deixei de intervir localmente. Mas estou sempre ligada a quem precisa de mim ou acha que a minha opinião ainda conta. Não vou além daquilo que acho que é o meu dever. É neste equilíbrio que tento manter activa a minha vida pública.

Há mais gente a querer aproveitar-se de si agora que subiu na vida política e pública?

Não. De todo. Não sinto que me procurem ou se aproximem de mim por interesse.

Mas fez novos amigos?

Não. Ainda não fiz outros amigos. Fiz outros conhecidos.

Sente que mudou de pele? A sua vida pessoal foi prejudicada?

Sou a mesma desde que me conheço. Tento fazer aquilo que os meus pais me transmitiram com os mesmos valores de sempre. A minha vida mudou porque eu era autarca e agora tenho outro cargo.

Divorciou-se entretanto…

Estou separada há praticamente um ano e vou divorciar-me em breve. A minha vida do ponto de vista pessoal, infelizmente, deu uma volta que eu não esperava ao fim de 26 anos de casamento, mas são as coisas que a vida nos reserva; tenho duas filhas fantásticas que são a minha força, que me dão a garra e determinação para continuar a ser feliz e a fazer o meu trabalho.

Sente-se mais realizada do que nunca?

Já disse isto a O MIRANTE mais do que uma vez. Sinto-me realizada até nas pequenas coisas como ver o nascer do sol ou realizar o meu treino matinal. Como hoje, por exemplo: fiz um treino por WhatsApp com pessoas espalhadas pelo mundo. Quando se chega aos 50 anos, como é o meu caso (festejou o dia de aniversário a 10 de Julho), os meus amigos escreveram num postal que me ofereceram que agora só posso viver um dia de cada vez e todos os dias como se fossem únicos. Já antes pensava assim. Valorizo cada gesto que faço por mim e pelos outros.

Sente vaidade por ser ministra?

Não. Vim para a causa pública para poder servir com cara alegre e determinação. Enquanto precisarem de mim. Se não precisarem volto para a minha profissão.

O poder também tem o seu lado masoquista: isola, desilude, castiga…

O exercício do poder é um exercício solitário em muitas situações. Aquilo que peço todos os dias quando acordo é que não deixe de ser quem sou. Se sou ministra da Agricultura e se fui secretária de Estado, presidente de câmara ou vereadora, é porque nunca deixei de ser quem sou; uma mulher trabalhadora que quer sempre mais. Costumo dizer que tenho alma peregrina. Já fiz várias peregrinações porque tenho para mim que o meu lema de vida é não ficar refém daquilo que sou, do que tenho e construí.

Olhando para o espelho sente que envelheceu nestes últimos tempos?

Sinto que envelheci, sim, mas é um processo normal para uma pessoa que fez 50 anos.

Não é do trabalho?

Há quem diga que o trabalho nos torna mais bonitos.

Mais sexys?

Não sei (risos). O que sei é que me sinto feliz por poder servir o meu país numa área muito importante para o seu desenvolvimento, nomeadamente o Ribatejo.

Mas este trabalho faz olheiras?

Herdei do meu pai, entre outras coisas boas, a capacidade de trabalho. Quando chego à cama durmo lindamente. Durmo poucas horas mas o meu período de sono é muito reparador. Quando saio do ministério, ou de outro lugar onde esteja a trabalhar, saio com a consciência que fiz tudo o que pude. Isso é muito tranquilizador. Dá-me força para recomeçar todos os dias. É a tal alma peregrina que acho que tenho.

Foi muitas vezes a Fátima a pé?

Já perdi a conta. Mas também fiz Oviedo-Santiago de bicicleta, que são 350 km. Fiz Santiago-Finisterra, que são 120 km. E depois fiz cinco vezes Valença-Santiago.

E tomava notas pelo caminho?

Sim. Tomava notas, assim como tomo agora enquanto faço caminhadas.

E escreveu poesia?

Não. Escrevo notas soltas, por tópicos. Leio bastante. Levo textos preparados para trabalho espiritual. Vou buscar uns mantras ou uns textos… por exemplo do Tolentino de Mendonça, que nos brindou com o texto do 10 de Junho sobre o que é ser Comunidade. Se bem se recordam, a minha primeira campanha em Abrantes foi sobre isto mesmo, o ser/sermos comunidade e trabalharmos pelo bem comum.

Estamos a terminar as perguntas pessoais; aumentou muito o seu guarda-roupa?

Zero. Zero. Por questões de saúde tive que deixar de usar algumas. Engordei durante uns tempos. Felizmente tudo se recuperou e voltei quase ao meu normal.

É o stress que engorda ou são os fartos almoços?

Falo de questões de saúde. Mas a situação está estabilizada e já consigo pôr-me dentro da minha roupa toda.

Já encontrou a esteticista/cabeleireira perfeita aqui em Lisboa?

Não sou muito esquisita nessa matéria. Conhecem-me desde sempre com o cabelo curto para não dar muito trabalho. Mas confesso que quando vou a Abrantes vou aos meus locais. Ao sítio onde gosto de comer, onde gosto de fazer compras… Ainda na sexta-feira, no dia dos meus anos, tive essa oportunidade de celebrar a vida.

Podemos saber com quem?

Com as minhas filhas, primos, um casal amigo, dois amigos que vieram de propósito de Aveiro para me darem um abraço. Foi tudo em Abrantes. De manhã estive aqui no gabinete e a equipa fez-me uma surpresa. Depois comi uma pizza com as minhas filhas e fui ver os meus pais. Levei-lhes pastéis de nata, que é o que eles mais gostam. Dormi em casa dos meus primos, que são como irmãos para mim, e regressei a Lisboa no outro dia.

Já foi à Caparica dar um mergulho?

Fui a Carcavelos com a minha filha ver como estava a temperatura da água. E estava boa (risos).

Como é ser ministra em tempo de pandemia?

Temos as equipas em teletrabalho. O meu gabinete esteve em espelho durante todo o tempo. Nunca deixei de trabalhar. Sempre com máscara. Nunca deixei de fazer política de proximidade e de apoiar o sector. Reuni com as confederações e associações, às vezes à razão de uma vez por semana. Os agricultores não estavam preparados para esta situação. Sabíamos que íamos ter um excesso de oferta em relação à procura com o encerramento dos restaurantes, hotéis e com o turismo a quebrar quase 100%.

Esteve a pôr em prática aquilo a que chama “agricultura de precisão” e “agricultura inteligente” de que tem falado nos seus discursos?

O Governo tem grandes objectivos para esta legislatura. Adaptação e mitigação dos efeitos das alterações climáticas, ataque às desigualdades, digitalização. Temos que introduzir processos inovadores para produzir mais, melhor e com menos. No caso da agricultura essa proposta é feita através da agricultura de precisão onde somos capazes de gerir melhor recursos como é o caso da água, a utilização dos pesticidas e fertilizantes. Ainda hoje em conversa com o primeiro-ministro falámos de algumas formas de simplificar medidas. A modernização do Estado passa por uma relação directa entre o agricultor, produtor, cidadão e administração pública.

Todos sabemos que o país agrícola está a ser transformado num olival intensivo, agora também num amendoal. A água continua a ser desperdiçada de forma pornográfica. Quais são as suas prioridades até ao final da legislatura?

Água. Temos um programa nacional de regadio que colocou 560 milhões de euros para modernizar, adaptar e estender regadio. A par disso há investimentos em curso para a modernização. Conscientes de que a água é um bem escasso e que é preciso saber gerir, mas também conscientes de que só vamos ter actividade agrícola se tivermos água disponível.

Vai haver ou não restrições nestas culturas intensivas?

Deixe-me concluir. Em relação à água acompanhamos tudo o que diz respeito às condições hídricas do país, preocupados que estamos com a seca no Algarve e Alentejo. Estamos a concluir estudos para verificar as condições gerais de médio e longo prazo e podermos definir as nossas políticas. Também está concluído o caderno de encargos e o concurso para fazermos alguma coisa em relação ao rio Tejo, salvaguardando um património natural que está ameaçado com a salinização das águas e destruição das margens.

A salinização das águas é até 20 quilómetros da foz. Há muito rio e muitos problemas a montante até à fronteira com Espanha.

Estamos a trabalhar com o Ministério do Ambiente. Do lado do Ministério da Agricultura comprometemo-nos a realizar um estudo sobre o Tejo que vai custar 600 mil euros e que não se vai esgotar de certeza.

O ex-ministro Jorge Lacão andou de barco no Tejo com o primeiro-ministro António Guterres há mais de 20 anos a anunciar o mesmo.

As alterações climáticas dizem-nos que não podemos deixar para depois o que temos de fazer com urgência. Há compromissos ambientais que temos de respeitar para deixarmos o nosso planeta se não melhor pelo menos como o encontramos.

E quanto à cultura intensiva que está a mudar aquilo que tínhamos de melhor?

Precisamos de água para a manutenção da vida humana. A agricultura é determinante para a nossa vida. Temos que garantir que vamos utilizar correctamente a água e a vamos distribuir pelo território, nomeadamente no interior do país, para que a actividade agrícola seja geradora de emprego, fomente o comércio local, o consumo de produtos de época, ajude a diminuir a nossa pegada ecológica. Por outro lado também precisamos de uma agricultura mais competitiva, que prefiro chamar assim a intensiva. Temos de continuar a trabalhar para que a agricultura possa produzir para consumo interno, possa produzir para exportação e possa ser uma alavanca para desenvolver turismo de natureza. Aliás, os portugueses já perceberam isso durante esta pandemia.

Não é com palavras que se vigiam as marachas, se impede a erosão dos solos e o abuso das culturas intensivas que desvirtuam a nossa tradição agrícola.

As alterações que estamos a desenvolver não se fazem em três anos, esperemos que pelo menos se façam em sete. O grande desafio colocado pela Europa é trabalharmos numa agricultura mais verde. Temos que potenciar a agricultura sempre respeitando a ideia do casamento entre a pequena agricultura e a agricultura mais intensiva. Respeitando os princípios basilares dessa agricultura verde que tem que ser a nossa maior aposta.

O Alentejo era o celeiro de Portugal e agora é um olival intensivo. Vai acontecer o mesmo no Ribatejo mais tarde ou mais cedo. Não era uma boa medida colocar restrições ao plantio?

Se não vivêssemos em democracia podíamos fazer tudo. Temos de encontrar o equilíbrio. Portugal é auto-suficiente em muitos produtos, nomeadamente o leite, vinho, tomate, azeite e isso é muito bom.

Mas isso é à custa de uma política agrícola que não está nos manuais do Governo.

Temos de encontrar soluções para o justo equilíbrio…

Ainda não é altura para impor limites?

Não há nada estudado sobre esse assunto. Mas deixe-me voltar aos cereais: não somos competitivos neste capítulo. Nem nunca seremos por mais que dêmos voltas ao assunto.

Volto à questão do Tejo. Temos cinco problemas que são falados diariamente: marachas, Almaraz, assoreamento, salinização e o açude de Abrantes. Não acha que o açude de Abrantes já merecia o camartelo?

E o que é que fazemos à barragem de Belver e às outras todas que estão para cima? Digo-lhe que do ponto de vista ambiental cumpre todos os requisitos. Nomeadamente em relação à escada passa-peixe que já foi melhorada e vai continuar a ser. Só posso dizer isto.

Mas justifica o açude com a qualidade de vida das populações locais?

Não me cabe a mim fazer essa justificação. Todas as questões que colocou são questões ligadas ao ambiente e que acompanhamos com proximidade porque estamos conscientes da importância do Tejo.

O que é que lhe custava admitir que o açude de Abrantes é um projecto falhado?

Não vou admitir coisa nenhuma. Não tenho mais nada a acrescentar em relação a este assunto.

Acabou de despedir a gestora do IFAP a seis meses do final do Portugal 2020.

Não é verdade. Dispensei uma equipa exercendo as minhas competências. É uma senhora que é funcionária da Direcção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural e o Portugal 2020 não está a seis meses de terminar. Só termina em 2023. Do ponto de vista do compromisso estamos com 100% das verbas. Estamos a falar de perto de 4 mil e 500 milhões de euros em números redondos. Está com uma execução perto dos 56%. Temos pela frente mais um período importante com dois ciclos. Estamos a caminhar para o final deste quadro comunitário e depois temos um ciclo em que temos cerca de 600 milhões que têm que ser gastos em três anos atribuídos pela União Europeia, para fazer face aos impactos da Covid neste período. (Foi buscar um caderno e depois de falar em muitos milhões para vários programas concluiu que “há um trabalho político que ainda não está fechado”).

Quem é que vai gerir agora o IFAP?

O IFAP tem uma equipa de gestão. O que está a querer falar é de uma Autoridade de Gestão. Já está uma equipa designada, escolhida por mim, que conhece bem a casa.

Só lhe estou a falar do assunto porque a sua decisão fez sangue.

Mas não despedi ninguém. Já ontem no Parlamento disseram-me o mesmo. É um cargo de nomeação.

Como é que se sente observada e julgada pelos agentes do sector? Como sabe eles mandam nisto tudo há muitos anos e fazem cair ministros com muita facilidade.

Desde o primeiro momento que reuni com todas as associações e confederações senti que estávamos a remar para o mesmo lado.

Não estavam a ser cavalheiros?

Não. Criticam-me quando têm que criticar e estamos a trabalhar juntos.

As medidas publicadas recentemente sobre emparcelamento podem ficar na História deste Governo se forem bem geridas. Mas há um caso na nossa região de emparcelamento liderado pela Agromais que é um caso de estudo que parece ser observado de outro planeta pelos governantes.

Pelo que sei é um projecto que tem condições para andar, mas para já não na sua totalidade. Há condições de financiamento que devem ser aplicadas até final do ano. Também há uma linha de crédito que foi criada com excelentes condições, taxa de juro fantástica, com um prazo dilatado de pagamento. Já disse aos promotores e mostrei-lhes a solução.

Qual o seu colega de Governo a quem mais recorre quando está com dificuldades?

Com todo o respeito pelos outros, é ao senhor primeiro-ministro. Mas tenho uma relação muito próxima com todos.

Tendo em conta que ultrapassamos o nosso tempo podemos saber ainda onde é que vai almoçar hoje?

(Levantou-se, abriu um armário e trouxe uma lancheira com uma lata de sardinhas, um tomate e um pepino). Eis o meu almoço: produtos do Ribatejo.

O que é que não lhe perguntámos que gostaria de responder?

A minha vida pública passa pela minha cidade, concelho, aldeia, região. E quero deixar uma mensagem a todos os ribatejanos: têm sido o motor da minha vontade de fazer serviço público. Porque independentemente do que esteja a fazer e dos cargos que ocupei continuo a receber um carinho imenso dos ribatejanos e isso, para mim, que sou uma mulher de afectos, é essencial para continuar na missão.

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