Sociedade | 21-09-2020 07:00

Vindimar à mão ainda é tradição em Aveiras de Cima mas as máquinas vão ganhando terreno

Vindimar à mão ainda é tradição em Aveiras de Cima mas as máquinas vão ganhando terreno
SOCIEDADE

Cada vez com mais máquinas e menos gente, a época das vindimas arrancou em bom ritmo em Aveiras de Cima com o calor a obrigar a antecipar o corte das uvas.

Passamos a vila de Aveiras de Cima e entramos nos campos, na primeira vinha que se avista. São 08h30 da manhã, o sol continua escondido e entre as videiras Manuela Abreu agradece: “Se estivesse calor não se fazia tão bem”. O trabalho vai a meio, porque de madrugada já lá “andaram as máquinas a colher os bagos”, e a sorte “é gostar de vindimar”, porque ainda assim o “trabalho é puxado”.

“É até ao último bago”, já dizia a avó de Manuela Abreu que cedo a puxou para as vindimas. Ao lado, Paulo Santos vai acenando afirmativamente com a cabeça ao mesmo ritmo que corta os cachos. Demore o tempo que demorar, o dia de trabalho vai render-lhe 40 euros, por isso “quanto mais rápido melhor”, diz reclamando do tempo que lhe roubamos para uma fotografia. “Ainda por cima” ficou meia hora a mais na cama e “atrasar mais o trabalho é que não”.

É Manuel Abreu, proprietário da vinha com 4,3 hectares, quem carrega um a um os cestos apinhados de uvas para a carrinha. Leva tintas e brancas. A maior parte, perto de 20 mil quilos, já foi vendida a uma sociedade de vinhos de Aveiras de Cima, a cerca de 34 cêntimos o quilo. O restante vai para uma pequena adega que tem em casa, para ficar com algum para consumo próprio e dar a provar aos amigos. “Temos de saber se o que andamos a produzir durante o ano é bom”, diz Manuel que herdou o gosto pela vinha e o vinho dos pais e avós.

O produtor sabe que a tradição já não é o que era, mas assim “sai mais barato”, diz referindo-se à colheita mecânica que lhe poupou euros no bolso e cinco dias de trabalho. “Em quatro horas tenho tudo vindimado e não tenho de me preocupar em arranjar pessoal”, explica. Até porque “não os há”, e “com a pandemia pior ainda”. Outra tradição que se tem perdido é o pisar da uva. “Isso era no tempo dos nossos pais. Agora é tudo mecanizado e a verdade é que no final o néctar fica mais apurado e com melhores aromas. Não leva aquele verdete dos engaços”, justifica.

“Produzimos uvas por carolice e porque é tradição”

A segunda vinha que visitámos pertence a outra família Abreu. O apelido é o mesmo, mas por aqui a colheita é 100 por cento manual, porque a vinha não está preparada para receber máquinas. Há 17 pessoas a trabalhar. Uma delas é José Oliveira Abreu, que há 80 anos, por esta altura, já andava com os pés metidos no lagar. “Se tenho saudades de as pisar? Então não tenho. Mas o meu filho já não faz vinho e isto agora é dele, quer dizer as uvas, porque a vinha ainda é minha”, diz.

Tem 86 anos, vindima desde os seis e é conhecido como Zé Pinoca, porque quando era jovem “de vez em quando andava bem vestido”. As suas pernas são as que melhor conhecem o terreno e “lá vão aguentando” apesar de se queixarem. “Mas eu gosto disto. Nasci numa vinha e a primeira coisa que me lembro de ter na mão foi uma tesoura. Aos seis anos deram-me a beber o primeiro copo de vinho branco para aguentar o tempo que passava com as cabras no monte”, conta.

Há três semanas que não via o filho, Horácio Abreu, que comanda a vindima de onde estima que saiam quatro mil litros de vinho. Há dois anos que a família Abreu deixou de produzir o vinho em lagar próprio, depois de a legislação apertar e exigir muitas regras para se fazer vinho em casa. Vão vender tudo a uma sociedade e o dinheiro que vão receber só deve chegar para o gasóleo do tractor e para as curas do próximo ano.

Horácio Abreu explica porque continua a cultivar a vinha, mesmo não sendo um negócio com lucro. “Produzimos uvas por carolice e não vamos deixar de o fazer porque é tradição que está enraizada na família”. Quando deixar de o poder fazer, espera que um dos filhos ou sobrinhos, que também vindimam continuem.

Para Isabel Abreu, de 58 anos, a época das vindimas já não é o que era. Chegava a vindimar durante 30 dias e só recebia do capataz quando o trabalho estivesse terminado. “Uma vez saí de casa tão entusiasmada que levei o farnel e deixei lá o cesto para pôr as uvas”, recorda dos tempos em que usava um lenço na cabeça que servia de suporte ao cesto de verga que transportava, vezes sem conta, carregado de uvas. Nessa altura, geralmente a vindima fazia-se em Outubro, ao mesmo tempo que se “adiava o regresso às aulas” para viver a festa do vinho.

Embora não faltem jovens no grupo, uns da família outros amigos, Isabel Abreu diz que “é cada vez mais difícil encontrar pessoas disponíveis”. Por isso é que a maior parte dos vinicultores de Aveiras de Cima tem optado pela vindima mecânica. “É uma pena porque se perdem os momentos de convívio”, diz.

O que não se perde, pelo menos na vindima dos Abreu, é o “farnel depois do dia de trabalho” onde não falta o torricado de bacalhau e, claro, o vinho.

Estreia nas vindimas em vésperas do casamento

Anabela Santos nasceu em Lisboa, alheia à época do corte das uvas. No dia da reportagem de O MIRANTE em Aveiras de Cima fomos encontrá-la na sua primeira vindima entre os ramos das videiras, de mãos encardidas da terra e do sumo dos bagos. Tinha acabado de ser picada por uma vespa. “Esta primeira experiência não podia estar a correr melhor”, atira, explicando que foram as reportagens de vindimas nos jornais e televisão que lhe aguçaram a curiosidade de vindimar.

Mas foi Ricardo Silva, o homem natural de Aveiras de Baixo com quem vai casar em breve, que a levou a viver aquela experiência. Entre beijos e sorrisos, num reencontro a meio da vindima, Anabela Santos diz que vindimar só é tarefa a repetir se a terra e a cor de vinho lhe sair das mãos antes do casamento.

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