Sociedade | 07-12-2020 12:30

Vidas dedicadas a cuidar de filhos especiais

Vidas dedicadas a cuidar de filhos especiais
REPORTAGEM COMPLETA

Duas histórias de pessoas com deficiência e dos familiares que consagraram a vida ao seu acompanhamento, conforto e carinho. O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência assinala-se a 3 de Dezembro e nunca é de mais destacar quem pugna pela defesa da dignidade, dos direitos e do bem-estar de quem é diferente e especial. Numa sociedade inclusiva ninguém pode ser deixado para trás.

Acidente de viação desconcertou a vida de família que luta por justiça há nove anos

Há nove anos a pacata vida da família Neves, de Alpiarça, mudou radicalmente. O jovem Gonçalo sofreu um grave acidente de viação e ficou em estado vegetativo. Os pais dedicaram a sua vida a cuidar do filho, venderam património para pagar contas e lutam desesperadamente por uma justiça que tarda em chegar.

Uns dias antes do acidente que deixou Gonçalo Neves num estado vegetativo a sua família viajou até Évora para celebrar o aniversário da sua irmã mais nova, Inês, na altura com 13 anos. A mãe, Sandra Martins, recorda que o filho saltava agarrado a si dizendo “a mãe é minha”, a brincar com a irmã. Do que os pais de Tofu, como é mais conhecido entre amigos, sentem mais falta é do seu sorriso, dos seus beijos e abraços. “O Gonçalo enchia a casa de alegria. Desde criança sempre foi muito comunicativo, falava a toda a gente e todos os conheciam”, lembra Sandra a O MIRANTE.

A família, residente em Alpiarça, tinha uma vida confortável financeiramente até que a 1 de Setembro de 2011, a vida deu uma reviravolta e nunca mais foi a mesma depois do acidente de viação que o filho mais velho de Sandra e Óscar Neves sofreu. Gonçalo esteve dois anos e meio internado em hospitais. Em Junho de 2012 esteve quatro meses em Alcoitão até que lhe deram alta. “O meu filho precisava de todo o tipo de cuidados médicos. Mandaram-no embora dizendo que não podiam fazer mais nada por ele. Tivemos que nos desenrascar”, critica Sandra Martins.

O património e as poupanças de Sandra e Óscar foram investidos na recuperação do filho. Os muitos espectáculos solidários que se fizeram também ajudaram a pagar as contas. Em Setembro de 2013 foram para uma clínica em Santiago de Compostela (Espanha) onde Gonçalo respondeu bem a todos os tratamentos. Estiveram lá três anos até que o dinheiro começou a escassear e também porque o julgamento iria começar. Como Gonçalo queria seguir a carreira militar e estava na tropa, o Instituto de Acção Social das Forças Armadas (IASFA) comparticipou com 20% dos custos da reabilitação.

Na semana passada a Segurança Social colocou uma plataforma elevatória (pedida pelos pais há cerca de dois anos) que permite a Gonçalo subir e descer as escadas de casa. Até então eram os pais que levavam o filho, agora com 30 anos, às costas para o quarto ou para a sala. Todos os meses gastam cerca de mil euros em farmácia e fisioterapia.

Sandra e Óscar admitem que já gastaram cerca de meio milhão de euros com Tofu e já não têm dinheiro para as sessões de terapia da fala. O casal vendeu uma segunda habitação que possuía, três carros e duas motas e fez uma segunda hipoteca da vivenda onde residem. O automóvel que têm não está adaptado para Gonçalo e os pais não têm dinheiro para comprar um com essas condições.

Sandra confessa que tratar de Gonçalo é como cuidar novamente de um bebé. Desta vez um bebé grande com todas as dificuldades que isso acarreta nomeadamente com o seu peso. “Perdemos o nosso filho naquele acidente. Temos um filho diferente que precisa de cuidados e é isso que fazemos”, contam Sandra e Óscar, “quase especialistas em cuidados médicos”.

A lentidão e insensibilidade da justiça

“A justiça é demasiado lenta e não há sensibilidade para perceberem que casos como o do Gonçalo, que precisa de reabilitação diária, devem ser prioritários. Estamos a falar de seres humanos, não são números. Como é possível estarmos à espera há mais de nove anos que se faça justiça. Pelo Estado e pelos tribunais o meu filho já tinha morrido e o assunto ficava resolvido”.

As palavras contundentes são de Sandra Martins, que não esconde a revolta por não conseguir ajudar mais o filho sabendo que os primeiros anos são fundamentais para a recuperação de uma pessoa que está na condição de Tofu.

A sentença do tribunal de Dezembro de 2017 condenou a seguradora Generali a pagar mais de um milhão de euros a Gonçalo Neves. No entanto, a seguradora recorreu e entre avanços e recuos já passaram mais de nove anos desde o acidente e a família ainda não foi ressarcida do valor da indemnização que permitiria que a vítima pudesse ter acesso a tratamentos de reabilitação e cuidados médicos.

Este ano, por causa da pandemia de Covid-19, a data do julgamento já foi adiada duas vezes. A nova data do julgamento é agora 1 de Fevereiro de 2021 mas, com tantos adiamentos, os pais de Tofu já têm dúvidas que venha a acontecer. Óscar e Sandra garantem que vão lutar por justiça até ao fim porque querem criar condições para que, no futuro, a filha Inês possa dar apoio ao irmão sem perder a sua vida. “A sentença foi dada, só falta executá-la. Queremos deixar tudo resolvido para quando não estivermos cá a nossa filha não deixe de ter a sua vida, como aconteceu connosco”, garante o casal.

Os pais de Gonçalo sentem a vida suspensa porque a prioridade é o filho. Sandra é solicitadora mas vai trabalhando “aos poucos”. Óscar colocou baixas de assistência à família logo após o acidente, até que antecipou a reforma. O único escape do pai é ir ao supermercado. “Não podemos sair para ir ver o mar porque o carro não está adaptado à cadeira de rodas do Gonçalo e não o vamos deixar em casa”.

“Só queria que as outras crianças me aceitassem e brincassem comigo”

Conhecida em Samora Correia como a menina da pele vermelha, Sara Silva, portadora de um angioma desde nascença, foi mais tarde apanhada na curva por um glaucoma que a deixou num mundo às escuras. A mãe é o seu braço direito.

Sara Silva nasceu há 30 anos com um sinal que marcou para sempre a sua vida. Um angioma tuberoso, formado por acumulação de vasos sanguíneos que lhe conferem um tom vermelho na pele do rosto, pescoço e tronco e que por ser também interno lhe afecta a parte neurológica. Dona de um optimismo gigante e de uma força arrebatadora, a menina da pele vermelha, como é conhecida em Samora Correia, onde vive, continua a ter sonhos e a esperança de um dia os realizar.

“Ser veterinária é o que mais quero na vida. É o meu sonho de infância que gostava de concretizar”, começa por revelar, sorridente e com a pequena Bianca, uma cadela da raça pinscher ao colo. Sem que alguma vez tenha tido a oportunidade de trabalhar, Sara já é reformada desde os 23 anos. Tem 94 por cento de incapacidade e apenas um quarto do cérebro a funcionar, o que faz com que precise de apoio para quase tudo, desde tomar banho a vestir-se.

É a mãe, Fernanda Cerquinha, o seu maior apoio. Todos os dias é quem ajuda Sara a preparar-se para ir para o Centro de Recuperação Infantil de Benavente (CRIB), onde passa o dia e é utente há sete anos. “Quando regressa estamos sempre ao lado uma da outra. Se precisa de ir à casa-de-banho acompanho-a, se quer ir dormir vou com ela, se eu precisar de ir à rua buscar pão ela fica no sofá até eu voltar”, conta a mãe.

A gravidez foi aparentemente normal, sem qualquer sombra de doença ou má formação. Só quando Sara veio ao mundo o problema saltou à vista. “Nasceu completamente negra. A primeira vez que a vi, na incubadora da neonatologia, seis horas após o parto o meu mundo desabou, mas em segundos fui ao fundo e voltei à tona. Era a minha filha, ponto”, recorda Fernanda Cerquinha.

O preconceito, a curiosidade e a estranheza pela aparência de Sara Silva acompanham-na sempre que sai à rua. “Quando vêem a minha filha as pessoas chocam-se e há quem se afaste como se ela tivesse algo contagioso”, lamenta. Se isso incomoda Sara? “Claro que sim. Ela sente como qualquer pessoa”.

Enquando a mãe fala Sara Silva vai buscar mémorias que reflectem e acompanham o preconceito com o qual convive desde o infantário. “Senti-me muitas vezes um caso à parte, ignorada pelas outras crianças. Elas brincavam juntas e eu era o quê? Um espantalho no meio daquela gente toda? Só queria que me aceitassem e brincassem comigo”, conta com tristeza e alguma revolta.

Aprender a viver às escuras

Já lá vão seis anos desde que Sara Silva passou a viver no mundo às escuras, depois de o glaucoma, uma patologia ocular que lhe foi diagnosticada em criança lhe roubar de vez a visão. A perda foi sendo progressiva. A graduação das lentes aumentava de ano para ano, assim como os tratamentos para retardar a cegueira, que era inevitável. De sombras, passou a ver rigorosamente nada.

A mão a arrastar-se pela parede guia-a até à casa-de-banho. Acende a luz como que por força do hábito. “Vou apalpando o terreno para saber onde estão as portas”, explica. Algumas paredes, observa a mãe, “já estão gastas de tanto passar a mão”.

De olhos abertos, já cristalinos, Sara olha para cima para se lembrar do rosto da mãe e dos longos cabelos pretos que tinha na altura. No CRIB, conta, aprendeu a ler e a escrever em braille mais rápido do que aceitou a companhia da bengala. Ainda hoje em casa esse instrumento não entra apesar de Sara lhe reconhecer a sua utilidade no reconhecimento do espaço e a evitar obstáculos. “Não é fácil viver assim, mas ainda tenho esperanças de voltar a ver”.

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