Sociedade | 14-01-2024 15:00

Trabalhar para pagar a renda é um pesadelo que continua no novo ano

Trabalhar para pagar a renda é um pesadelo que continua no novo ano
Ana Rita Ferreira receia não conseguir sustentar-se e ter que regressar a casa da mãe. Marisa Bentes teve que começar a fazer limpezas para suportar a prestação da casa que quase duplicou

Mais de metade do salário de Ana Rita e da reforma de Isaura vão para a renda dos apartamentos onde moram sozinhas.

Teresa trabalha mas aos 39 anos não consegue pagar uma casa. Nuno vai-se desenvencilhando com o cartão de crédito e Marisa teve de começar a fazer limpezas para ganhar um salário extra e conseguir pagar o crédito à habitação. O novo ano arranca com a descida da Euribor mas com as rendas a sofrer o maior aumento em 30 anos.

Perto de fazer 40 anos e a estrear-se num novo emprego, Ana Rita Ferreira decidiu que era a oportunidade certa, e necessária, para deixar a casa da mãe, em Samora Correia, e ir morar sozinha. Não levou muito tempo a aperceber-se da dificuldade em encontrar uma habitação que pudesse arrendar, mas lá acabou por encontrar um apartamento “de apenas um quarto pequeno” por 500 euros. É, no entanto, incerto até quando conseguirá suportar uma despesa que lhe absorve mais de metade do ordenado, que é o mínimo. “Foi o mais barato que consegui encontrar. Vai fazer um ano que estou aqui e continuo à procura de um que seja mais em conta. Chegam a pedir-me 700 euros mais dois meses de caução por um T1. É impossível, muito mais para quem vive sozinho”, diz a O MIRANTE.
A conjuntura descrita por Ana Rita não é estranha aos portugueses que, neste ano, depois de um 2023 com rendas a atingirem valores exorbitantes, voltam a ser confrontados com más notícias: o Governo decidiu não colocar qualquer travão à actualização das rendas, o que faz com que os senhorios as possam fazer subir até 6,94%, segundo o valor apurado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). É o mais elevado desde 1994, que pode apenas ser atenuado pelo reforço do apoio aos inquilinos (4,9%) e da parcela das rendas que se pode deduzir no IRS. Pode ainda acontecer o senhorio optar por não fazer qualquer aumento ou um tão substancial.
Ana Rita Ferreira não sabe, até à data, se o seu senhorio tem intenção de lhe aumentar a renda, mas está agora numa luta para não ter que somar aos 500 euros mais 30 de condomínio, despesa que o proprietário do apartamento quer que passe a ser sua. “Trabalho de segunda a domingo [com um trabalho extra] para me conseguir sustentar e chego ao fim do mês com muito pouco depois de pagar casa, combustível, água, luz e compras. Estamos todos no mesmo e eu, se tiver que sair daqui, terei que voltar para casa da minha mãe”, conclui.
Isaura Lopes não tem plano B caso o cenário se agrave. Viúva e recém-reformada, com uma pensão de 482 euros, viu a renda ser-lhe aumentada, este mês de Janeiro, dos 320 para 342 euros. Estamos a falar de um apartamento T1, no Bairro da Lezíria, em Samora Correia, no qual vive há três anos. “Sei que não me posso queixar muito porque com os preços que vejo acho que não arranjava mais barato. Mas para mim, sozinha, é muito”, afirma a mulher de 66 anos, natural de Abrantes.
Neste caso, a ajuda inverte-se: é o filho que ajuda a mãe a sustentar-se. “Traz-me de comer, leva-me onde preciso e assim já não gasto em gasóleo”, explica, acrescentando que às despesas correntes se somam mais 60 euros mensais em medicação. Antes de enviuvar “vivia bem”, com o ordenado a ser canalizado apenas para os seus gastos. Agora, “se precisar de comprar um par de calças já penso duas vezes” e no supermercado vai-se “sempre ao mais barato”.

Ir ao cinema ou jantar fora é uma extravagância
Teresa tem emprego, mas o que ganha não chega para pagar uma renda. Em tempos chegou a conseguir suportar uma, de 400 euros por um T2, mas os sucessivos aumentos e o facto de na altura se ter separado do companheiro ditaram o seu regresso a casa dos pais. Aos 39 anos já não mora lá, mas apenas porque o seu actual companheiro comprou casa na Póvoa de Santa Iria e a convidou para viver junto. “Há dois anos andei à procura e os valores eram exorbitantes, chegaram a pedir-me 600 euros por um T1 e 550 por uma casa da porteira”, recorda, lamentando que actualmente seja praticamente impossível uma pessoa conseguir morar sozinha.
É também nessa cidade do concelho de Vila Franca de Xira, de onde é natural, que Teresa abriu o seu próprio negócio na área da estética. Pelo arrendamento da loja paga 204 euros e no final do mês, feitas as contas e depois de pagas as despesas correntes - de material e seguro de trabalho - fica com uma quantia que ronda os 200 euros nos meses fracos e os 500 euros nos meses fortes. “Vou conseguindo ajudar o meu namorado, mas com muita dificuldade” até porque, explica, tem gastos médicos avultados por padecer de otoesclerose, doença que lhe afecta a audição.
Para Teresa é uma luta, ou se quisermos uma ginástica diária, para conseguir chegar ao final do mês com algum dinheiro no bolso. As compras giram em torno de promoções e as idas a concertos, os jantares em restaurantes são extravagâncias de outros tempos. “É impossível, quanto muito manda-se vir uma pizza para casa e está feito o jantar ‘fora’”, diz, explicando que se vai conformando com programas para ocupar os tempos livres que não impliquem gastar dinheiro, como a leitura de um livro ou um passeio ao ar livre. “Só dá para isto”. Pior, confessa, seria ter que regressar, “com esta idade”, para casa dos pais. “Ninguém gosta de ser adulto e dependente dos pais e eu, infelizmente, já vou sendo devido ao problema de saúde. Sempre que tenho uma avaria no aparelho auditivo, que para reparar custa 250 euros, tenho que recorrer a eles”, lamenta.

Fazer limpezas para pagar a mensalidade ao banco
Marisa Bentes entra nos casos das famílias que, em poucos meses, viram as suas despesas com a habitação disparar. Conseguiu comprar casa em Samora Correia, juntamente com o marido, mas se antes a prestação era razoável, desde os últimos seis meses do último ano, após uma subida de 675 euros para 1090 euros, virou uma dor de cabeça. “Lamentavelmente sou mais uma das inúmeras pessoas que se vêm neste momento com despesas quase duplicadas”, afirma.
Para lhes fazer face, esta mãe que é delegada comercial em Castanheira do Ribatejo, teve de arranjar um segundo trabalho, “a fazer limpezas em estabelecimentos comerciais para conseguir tirar mais algum”. Afinal, sublinha, além do aumento da mensalidade, tem uma filha a estudar no ensino superior em Castelo Branco e um dos dois ordenados fixos da casa vai inteiro para o crédito à habitação. Não há como não ter preocupações nem como não fazer restrições. “Tivemos que deixar de comer tantas vezes fora, de ir ao cinema, comprar roupa”. As férias já não têm a mesma qualidade e até nas compras para a casa, refere, tem que se olhar a preços. “Há muito que já não dá para fazer poupanças”, remata.
Embora as perspectivas para quem tem crédito à habitação sejam mais positivas para 2024 com a descida da Euribor, o alívio das prestações pode, segundo a Deco Proteste, demorar a chegar, sobretudo para quem tem contratos indexados a 12 meses. A perspectiva, refere a organização de consumidores, é que esse alívio seja sentido a partir do segundo semestre deste ano. Assim o espera Nuno Lourenço, 38 anos, que, para já, conta com uma subida de mais 150 ou 200 euros na prestação da casa que comprou em 2010 na Póvoa de Santa Iria. O valor manteve-se estável, nos 400 euros, até 2022, tendo subido para os 720 euros no ano passado, o que veio dificultar a situação desta família de quatro pessoas - dois adultos e duas crianças de seis e nove anos.
Com este aumento a juntar às despesas correntes, mais um crédito pessoal que contraiu para fazer face a despesas com o arranjo dos dois carros do casal, o funcionário de uma conhecida cadeia de supermercados tem que utilizar, por vezes, o cartão de crédito, o que acresce mais uma mensalidade. “No fim criou-se uma bola de neve em que cada vez que consigo poupar ou abater algum valor, tenho que voltar a utilizar ou porque os miúdos precisam de roupa ou calçado”, diz, contando que felizmente às vezes conseguem roupas usadas. Mais raro que isso, conta, é conseguirem ir ao cinema, o que só acontece “uma vez por ano no aniversário de um dos miúdos” ou jantar fora, que também não ocorre mais que uma vez. “Quando dá, compramos pizza cá para casa”, diz, opinando que “o Governo tem tudo na mão para criar condições para a população, só não o faz porque não lhe interessa” e lembrando que “todas as pessoas têm direito à habitação”.

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