Entrevista | 09-08-2022 10:00

Fisioterapeutas ainda são confundidos com endireitas mas bastonário quer dar novo rumo à profissão

António Lopes viveu a infância em Santarém e guarda boas memórias e amigos desse tempo

António Manuel Fernandes Lopes é o primeiro bastonário da Ordem dos Fisioterapeutas, criada em Setembro de 2019 pela Lei 122/2019, e pela qual lutou desde 1999 quando pela primeira vez se entregaram os documentos para a sua formalização. Está no cargo há pouco mais de sete meses, depois da tomada de posse dos órgãos estatutários em 14 de Dezembro do ano passado. A fisioterapia, designação surgida em Portugal no início do Século XX, tem tido um caminho árduo e só foi integrada no ensino superior em 1993. António Lopes, alentejano, que fez a sua infância e adolescência em Santarém, quer ser o garante da valorização da profissão e da qualidade dos serviços prestados aos utentes, com uma ordem que não exige exames e estágios nem se quer armar em sindicato. A escolha da profissão foi influenciada pela poliomielite, doença de que padecia a tia e que o sensibilizou para as questões da deficiência e das incapacidades. Ainda há quem confunda os fisioterapeutas com endireitas ou massagistas, mas hoje a profissão tem cada vez maior destaque e importância, devido em grande parte ao trabalho que é feito no desporto.

Aos 10 anos mudou-se do concelho de Serpa para Santarém. Qual é que foi o impacto que teve quando chegou ao Ribatejo? Foi em 1964. O meu pai tinha ido para chefe da estação dos correios em Santarém. Fui para a escola primária de São Bento. A casa onde fomos habitar era no chamado Campo dos Leões. Tinha de andar uns 20 minutos até à escola. Quando fui para essa escola integrei-me logo com um conjunto de pessoas que depois transitaram comigo para o liceu. A integração foi fácil.
Das vezes que vai a Santarém vê alguma evolução? Como é que se sente quando entra na cidade? O que sinto mais, sobretudo quando visito o centro, é alguma desertificação. A vida que havia antigamente, nos cafés e nas tertúlias, parece-me já não existir. Sempre me lembro da cidade viver muito das pessoas que iam estudar para a escola agrária e para o liceu e dos militares da Escola Prática de Cavalaria. Tinha muito essa vida externa.
Ainda se junta com os amigos de infância em Santarém? Junto-me com eles mas é em Lisboa, onde estamos todos. Costumamos fazer uns almoços e temos dois ou três restaurantes habituais. Há uns três ou quatro anos fizemos um grande encontro de antigos alunos do liceu em Santarém.
Viveu as tradições ribatejanas, como as touradas, os forcados? Eu vivenciei essas coisas, mas nunca saltei para a arena. Tive um acidente quando estava na primária e fiz o exame da quarta classe com o braço ao peito. Escorreguei numa rampa no caminho da escola para casa e fraturei o radio e o cúbito e fiz uma deslocação no cotovelo, foi uma coisa complicada. O médico que me viu no hospital ainda me disse: “tu eras bom para forcado”, porque aguentava a dor. Depois disso fiquei sempre muito inibido e nunca participei nessas actividades. Mas deu para sentir a forma como se vive a ligação à lezíria, ao cavalo, ao touro e à cultura ligada à Feira do Ribatejo, às largadas de touros.
Esse acidente teve alguma influência na sua escolha pela área da fisioterapia? A escolha pela fisioterapia teve outras raízes. A ligação à profissão vem por alguma influência familiar. Tive uma tia que teve poliomielite, uma doença que felizmente está erradicada, mas enquanto profissional cheguei a apanhar pacientes com ela, em Santarém. A minha tia tinha levou-me a ligar a essas questões da deficiência e das incapacidades. No liceu tínhamos visitas de profissionais de várias áreas e uma foi de alguém da escola de Alcoitão. Eu e um grupo de colegas decidimos ir para educação física. A minha ideia era fazer primeiro essa área e depois fazer a formação em Alcoitão. Acontece que eu acabei por não passar nas provas físicas, que eram meio exigentes.
Não era um jovem desportista… Não era um atleta extraordinário. Então pensei fazer o percurso ao contrário. Comecei por Alcoitão e depois faria Educação Física, o que acabou por não acontecer. Estive inscrito, mas era mais uma questão instrumental para não ser mobilizado para a Guerra Colonial e entretanto deu-se o 25 de Abril e passei à reserva territorial de imediato, nem fiz tropa.
O seu currículo diz que é licenciado em Psicologia Educacional, na altura não havia licenciaturas em fisioterapia? Em Alcoitão o ensino não era integrado no sistema educativo, era dependente do Ministério da Saúde. Três anos depois da formação em fisioterapia fui para Inglaterra, onde estive a trabalhar durante um tempo e percebi que tinha de fazer formação académica superior. A profissão existia, tínhamos um diploma passado pelo Ministério da Saúde, que me reconhecia como profissional, mas do ponto de vista académico e do ponto de vista social é como se tivesse o 12º ano de escolaridade. O reconhecimento social vem do reconhecimento académico.
A integração da fisioterapia no ensino superior, em 1993, veio acabar com alguma desvalorização da profissão por parte da sociedade? Ainda hoje há quem nos confunda com aqueles curiosos, como os endireitas e os massagistas. Entrei para Alcoitão vai fazer 50 anos e entes de ter ido para Inglaterra, em 1978, trabalhei numa clínica em Santarém, ao pé das Portas do Sol. Em Inglaterra percebi que tinha de fazer uma licenciatura e mais tarde o mestrado em Ciências da Educação (Área de Pedagogia na Saúde), até porque queria fazer carreira na área do ensino.
Preferia mais ensinar do que executar… Quando acabei o curso fui logo convidado a ficar na escola, mas não me sentia à vontade ainda, queria ganhar experiência no terreno. Na altura éramos muito poucos e os ordenados no privado eram aliciantes. Em termos práticos acabei por juntar o útil ao agradável.

Há quem precise de fisioterapia mas não pode pagar

O que é que mudou para os fisioterapeutas com a criação da ordem? O parlamento português reconheceu que a profissão tem identidade própria e que merece a autonomia de se auto-regular. Quando me formei não havia sequer um registo. Tínhamos de ir registar o nosso diploma na delegação de saúde da área onde íamos trabalhar. Em 1999 é que o ministério passou a atribuir-nos uma cédula profissional. Antes tínhamos um cartão que nos habilitava a exercer a profissão. Em 1993 a nossa formação foi integrada no ensino superior e passou a haver uma licenciatura, um bacharelato e um doutoramento.
A ordem surge numa altura em que o Governo disse pretender limitar os poderes das ordens profissionais. Isso é motivo de preocupação? Vejo essa situação com alguma tranquilidade. A ideia de limitar os poderes das ordens tem a ver com o facto de haver ordens que restringem o acesso de profissionais, que impõem estágios e exames, dizendo que não chega a formação académica. No nosso caso basta ter a licenciatura para exercer a profissão. Uma das coisas que me parece que a nova lei irá impor será a existência de um provedor do utente. Fazemos uma regulação do interesse de quem servimos. Não queremos ser uma espécie de estrutura sindical.
Mas há ordens que mais parecem sindicatos. Estamos preocupados com a prestação de cuidados e o acesso da população a bons cuidados de fisioterapia. O nosso objectivo é dignificar a profissão. É claro que isto vai trazer problemas de ligação e interacção social com outras profissões, com outras estruturas. Eventualmente vai trazer problemas no que diz respeito a carreiras. Há um sindicato dos fisioterapeutas com o qual a ordem tem uma relação positiva.
O número de fisioterapeutas é suficiente? Há entre 8 a 10 mil fisioterapeutas a trabalhar diariamente, dos quais só 1500 é que estão no Serviço Nacional de Saúde. É um número baixo mas temos vários factores de crescimento. Nos últimos 20 anos o número de fisioterapeutas não é em nada comparável ao número que ficou para trás. Estão a sair anualmente 700 novos fisioterapeutas e não há 700 que saem, pelo que já se sente dificuldades em arranjar emprego, apesar de haver trabalho nos lares, nos clubes de futebol e em outras entidades. O problema é que não conseguem pagar-lhes. A geração mais nova tem sido mais empreendedora e está a abrir os seus próprios gabinetes.
Qual é a vantagem do Estado investir mais na área da fisioterapia pública? Não chega dizer que se fez fisioterapia, o que é importante é perceber qual foi a vantagem entre uma pessoa com a mesma patologia, tendo feito fisioterapia e não tendo feito fisioterapia e quais foram os ganhos em saúde para a pessoa e para o sistema. Se conseguirmos provar que há ganhos para a saúde, que assim as pessoas acabam por ir menos ao Serviço Nacional de Saúde e que se economizou dinheiro, possivelmente vamos conseguir convencer os administradores hospitalares, os políticos e os médicos de família.
Os médicos olham para essa profissão de lado, como uma coisa menor? Exatamente. Podem não conhecer quais são as vantagens deste recurso. Uma pessoa tem uma dor nas costas, se calhar é mais fácil fazerem uma prescrição de um medicamento que lhe tire a dor do que mandar para um fisioterapeuta, que mais do que lhe tirar a dor, vai ensiná-la a viver com a dor, porque mais dia, menos dia, a dor vai voltar.
Para se ser um bom fisioterapeuta basta ter umas boas mãos? As mãos são importantes, inclusive sabemos cientificamente que o toque terapêutico tem relevância, é benéfico. Mas diria que os fisioterapeutas têm também uma componente muito grande como educadores. Sou professor e fui coordenador do curso em Alcoitão durante muitos anos e quando me perguntavam o que era preciso para ser um bom fisioterapeuta, costumava dizer duas coisas: Se não gostam de lidar com pessoas não escolham esta profissão porque vão lidar com utentes em sofrimento físico mas também mental.
As lesões provocadas por acidentes são factores de preocupação?
É necessário haver uma educação das pessoas, a chamada prevenção rodoviária tem de ser analisada desde miúdos, numa perspetiva das implicações que têm os acidentes. Começando pelo acidente da bicicleta. Uma pessoa cai de bicicleta, bate com a cabeça em qualquer lado e tem um traumatismo craniano.
As campanhas de prevenção de acidentes não têm funcionado bem?
As campanhas existem, mas têm de ser consistentes e disseminadas. Não podem ser campanhas só em determinados momentos. É começar na escola. Isto é uma questão cultural séria e que está relacionada com aquilo que as pessoas valorizam na vida.
Com a ordem o que é que vai mudar em termos de organização nos profissionais que trabalham em clínicas ou hospitais? Queremos criar uma auto-regulação da profissão e unidades autónomas de gestão. É importante que num hospital sejam os fisioterapeutas a organizar-se e a organizar a resposta às necessidades que existem por parte dos utentes. Esse é o nosso compromisso. Um compromisso com os utentes, de prestar serviços de qualidade. Enquanto nós não conseguirmos definir como alocamos os recursos, como é que damos respostas, até do ponto de vista técnico. Enquanto não tivermos essa capacidade não podemos ser responsabilizados.

O desporto atrai muita gente para a fisioterapia

É o desporto que mais visibilidade dá à fisioterapia? Essa é uma área tradicional da nossa intervenção, onde houve provavelmente um maior desenvolvimento e autonomia dos fisioterapeutas. Hoje temos pessoas como o António Gaspar, que está na seleção nacional e outros fisioterapeutas de referência nacional e internacional. O desporto atrai muita gente para a fisioterapia. Quando perguntamos aos alunos porque escolheram a fisioterapia, muitos deles dizem que foi pela convivência com fisioterapeutas do desporto. Actualmente há 20 escolas e vão entrar este ano mais duas, onde entram cerca de 700 alunos anualmente.
Se calhar alguns despertaram para esta área quando tiveram de ser tratados a lesões. Muitos deles tendo feito desporto contraíram lesões e contactaram com fisioterapeutas e percebem que essa pode ser uma linha. O fisioterapeuta tem de ter algumas características, como destreza física e alguma força, apesar de aprendermos a usar o nosso corpo para facilitar o trabalho com os doentes. Tive uma colega que era magrinha, pequena e conseguia trabalhar com os doentes tetraplégicos. Para termos essa capacidade temos de ter nós próprios uma habilidade motora, temos de conhecer muito bem o nosso corpo e a nossa capacidade para sermos bons profissionais. Quem tiver essas apetências tem a vida mais facilitada.

O professor que quis trabalhar primeiro para ter experiência no terreno

António Lopes exerceu a profissão durante pouco tempo porque queria ensinar e trabalhou em Santarém e em Inglaterra porque queria ter a experiência do terreno. Nasceu em Vila Nova de São Bento, concelho de Serpa, em 22 de Agosto de 1954, mas fez o ensino primário e o liceu em Santarém, antes de ir formar-se em Alcoitão. O professor participa há muitos anos no desenvolvimento curricular do curso de Fisioterapia, a nível nacional e internacional, além de colaborar no desenvolvimento curricular de outros cursos na área da saúde. Foi um dos membros coordenadores da implementação do processo de Bolonha em Portugal. Foi dirigente de várias organizações ligadas à fisioterapia a nível nacional e presidiu à Região Europeia da Confederação Mundial de Fisioterapia entre 1998 e 2010. A confederação distinguiu-o pela liderança e serviços prestados à organização e à fisioterapia a nível mundial. Esteve desde a primeira hora no processo de criação da ordem e foi vogal da Comissão Instaladora da Ordem dos Fisioterapeutas.

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