Sociedade | 08-01-2022 15:00

Luís Marta aprendeu a ver mundo com a ponta dos dedos

Luís Marta aprendeu a ver mundo com a ponta dos dedos

Luís Marta foi diagnosticado com glaucoma congénito à nascença. Aos 17 anos ficou cego mas aos seis já estava a aprender braille. Trabalha como massoterapeuta, é DJ e presidente da Associação de Jovens de Samora Correia. Para quem vive num mundo às escuras, aprender braille e técnicas de autonomia continua a ser uma necessidade, mas o panorama está longe de ser o ideal, alerta a professora de ensino especial, Catarina Pereira.

Luís Marta conhece o mapa do percurso que faz de Samora Correia, onde vive, até ao seu local de trabalho em Lisboa como a palma da sua mão. Com 29 anos e cego desde os 17, há muito que deixou de contar os passos que precisa de dar para apanhar o autocarro. Miss, a cadela-guia que o acompanha há dois anos, ajuda-o a ultrapassar os obstáculos. “Muitas vezes adormeço e acordo na rotunda do relógio”. Como se na sua mente estivesse cravada a ferros a duração do percurso que faz até à clínica de fisioterapia onde trabalha.
Os nomes e tratamentos dos clientes sabe-os de cabeça. Os dos medicamentos que alguns tomam lê-os através do braille inscrito nas caixas. Ajuda os que têm pouca mobilidade a tirar os sapatos, depois a deitar na marquesa e com as suas mãos de tacto apurado trata-lhes as contracturas musculares, lombalgias, tendinites e tensão acumulada. Já lhe disseram que tem um dom nas mãos. Mas Luís Marta tem outra explicação: “ponho o máximo de empenho em tudo o que faço, porque desde que sou cego sinto que passei a ter que dar provas em tudo. E se corre mal? E se falho? Vão achar que não sou capaz. É isto que penso, esquecendo-me que alguma coisa pode correr mal a qualquer um”.
Com seis anos de experiência como massoterapeuta e auxiliar de fisioterapia nunca lhe aconteceu um cliente recusar a receber o tratamento das suas mãos. “Já houve quem não quisesse, não por ser cego mas por ser homem”. Por isso é que procuram mais mulheres para esta profissão”, diz, sem saber se foi esse factor que dá como certo que fez com que durante um ano não o tenham chamado para trabalhar, apesar dos currículos que enviou para dezenas de clínicas. “Depois de terminar o curso no Instituto de Medicina Tradicional estive um ano à procura. Quando me apresentava ficavam de pé atrás”. A história repetiu-se até que em 2015 uma clínica em Lisboa apostou no Luís até aos dias de hoje.
A conversa decorre na tertúlia Amigos do Copo, em Samora Correia, onde Luís Marta, presidente da Associação de Jovens de Samora Correia, gosta de receber os amigos. O pequeno anexo fica a uma dúzia de passos da casa onde mora sozinho e onde nenhum objecto fica muito tempo fora do lugar. “Manter tudo organizado é importante para saber onde tenho o que preciso”. Nas gavetas as roupas estão organizadas por tipos de tecido e cores, do mais claro para o mais escuro. Na cozinha aprendeu sozinho a desenvencilhar-se, mas à hora da refeição prefere sentar-se à mesa com os pais que moram a paredes-meias. Além de aficcionado por automóveis, é DJ de sucesso em bares e festas da cidade.

“Sinto falta da liberdade que a visão dá”

A perda de visão foi um golpe duro que Luís Marta sabia que ia receber. Diagnosticado com glaucoma congénito desde o nascimento, soube desde cedo que ia ficar cego. Por isso o seu objectivo sempre foi aproveitar a vida enquanto a visão turva do olho direito (de 10%) lhe permitiu ver o mundo. “Deu tempo para jogar à bola, andar de bicicleta, a cavalo, ver os rostos das pessoas e ler as letras gordas dos jornais. Sinto falta da liberdade que a visão dá. Agora nunca sei muito bem para onde vou quando monto um cavalo no picadeiro ou começo a pedalar numa bicicleta”.
Arrepende-se, por isso, de ter arriscado o transplante de córnea que acabou por ser rejeitado ao fim de ano e meio. A visão turva foi desaparecendo gradualmente até que o seu mundo ficou pintado a branco. “O olho esquerdo nunca viu, o direito agora só vê branco. Parece que vivo dentro de uma nuvem”. Conformado com a sua condição, garante que “a possibilidade de voltar a ver através de um transplante é uma esperança que já não [quer] manter”.

Metade da população sofre de alterações da visão

Em Portugal, onde o número de pessoas cegas ultrapassa as 35 mil, estima-se que cerca de metade da população sofre de alterações da visão, desde a sua diminuição até à cegueira total e que cerca de 20% das crianças e metade da população adulta sofre de erros refractivos significativos.
Segundo o Programa Nacional para a Saúde da Visão (PNSV), revisto em 2020, da Direcção-Geral da Saúde (DGS) as principais causas de perda de visão incluem a catarata, a diabetes ocular, o glaucoma e as doenças maculares.
Para a DGS o país “encontra-se perante um problema de saúde pública que urge combater” e que requer medidas planeadas a nível nacional que incluem a “prevenção primária e a detecção precoce, o acesso a terapêuticas cirúrgicas oftalmológicas e a recuperação global visual”.

São precisos mais professores a aprender e ensinar braille

Quando o problema é detectado tarde demais e não há volta a dar, há que trabalhar novas competências e treinar o quotidiano num mundo às escuras. No caso de Luís Marta, as técnicas de autonomia começaram a ser trabalhadas antes de perder a visão. Aprendeu a ler e a escrever como uma criança com visão e em simultâneo começou a aprender braille, o método de escrita e leitura inventado por Louis Braille no início do século XIX.
Seis pontos posicionados frente a frente em metades iguais. Cada um ou cada junção corresponde a uma letra e a um número. “É preciso decorar, não é fácil e quanto mais cedo se começar melhor”. Luís Marta começou a desbravar o caminho do braille com a ajuda da professora de educação especial, Catarina Pereira, na escola, em Benavente.
A professora especializada em ensino do braille defende que deveria haver mais pessoas a interessar-se por aprender e ensinar este sistema de escrita e leitura, que na sua opinião jamais vai ser posto de parte, apesar da evolução da tecnologia. “Na escola onde lecciono actualmente, em Loures, temos 13 alunos cegos e se tivermos o azar de um professor ficar de baixa não há quem o substitua porque no país não há ninguém habilitado em lista”, afirma.
Catarina Pereira entende, por isso, que é preciso sensibilizar os professores a aprender o sistema para não pôr em causa e facilitar a aprendizagem do aluno cego. Outra barreira que ainda é preciso ultrapassar é o tempo que os manuais em braille demoram a chegar às escolas. “Só para se ter uma ideia um manual de uma determinada disciplina com dois volumes em braille são 14 manuais. Muitas vezes acaba o ano sem que o Ministério da Educação os tenha enviado todos”, explica, criticando ainda que o Estado deixe de garantir o acesso a livros em braille no ensino superior.
Quando a cegueira chega fora da idade escolar não é uma instituição pública a assegurar o acesso a aulas de autonomia ou do ensino do braille. São instituições particulares de solidariedade social, como a Associação dos Cegos e Amblíodes de Portugal (ACAPO), que fazem esse papel “tão importante de ensinar” métodos de orientação, a usar a bengala e a ler e a escrever às escuras.
Luís Marta confessa que usa cada vez menos o braille, embora o considere essencial à sua autonomia. Numa ida ao hipermercado, por exemplo, ajuda quando as embalagens têm braille, como as caixas de café Delta. Mais difícil, explica, é saber os preços e identificar os produtos nas prateleiras. De qualquer forma, sublinha, “os funcionários ajudam e já se pode comprar quase tudo pela Internet”.

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