"Quando cheguei tinha um padre à minha espera"

"Quando cheguei tinha um padre à minha espera"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

Joaquim Cegonho emigrou para França em Janeiro de 1972.

Um dos temas que O MIRANTE tratou no seu primeiro ano de vida, foi a emigração. Na altura já Portugal tinha aderido à Comunidade Económica Europeia mas a opção editorial foi ouvir quem tinha emigrado nos tempos em que ainda havia controle de passaportes na fronteira e ir trabalhar para outro país requeria a existência prévia de emprego e carta de chamada.

Há quantos anos emigrou?

Há 16 anos mais precisamente no dia 4 de Janeiro de 1972. Destino: Boulogne-Sur-Mer, o primeiro Porto de Pescas da Europa.

Mas não foi ganhar a vida no trabalho da pesca?

Não, fui com um contrato para uma empresa onde se fabrica o ferro que depois entra na liga de onde sai o aço.

Como é que um tipógrafo se vê assim de repente numa aventura dessas?

É fácil explicar. A empresa onde eu trabalhava não pagava o justo valor do meu trabalho e, para além disso, comecei a incompatibilizar-me com um elemento da parte directiva, situação que não acontecia só comigo. A ida a África - eu tinha regressado há pouco tempo - abriu-me novos horizontes e deu-me a conhecer outras experiências. Apareceu-me a oportunidade de emigrar e nem sequer hesitei.

Como foi a adaptação ao novo trabalho e à vida num país estrangeiro?

O mais fácil que se possa imaginar. As coisas correram-me sempre bem, felizmente. Se calhar foi por ter um padre à minha espera.

Como é que é essa história de ter um padre à sua espera?

A Rosa Braz conhecia um padre que trouxe algumas vezes à Chamusca. Nesse ano eu meti conversa com ele e perguntei-lhe se ele não me arranjava um emprego por lá. Depois de saber que eu era tipógrafo, pôs alguma dificuldade mas mesmo assim, lá levou o meu nome e a minha morada. Um mês depois recebi uma carta da embaixada de França a avisar-me de que tinha um contrato de trabalho para uma fábrica. Depois foi só o tempo de tratar a papelada e meter-me ao caminho. Quando lá cheguei tinha o padre e o emprego à minha espera.

É nessa fábrica que ainda trabalha hoje?

Exactamente. E já lá vão quase 17 anos. Comecei com uma vassoura nas mãos e hoje, nesta fábrica onde trabalham mais de 650 homens, sou o responsável pela chefia de uma das suas secções.

É a sua única actividade profissional?

Não, passado pouco tempo de lá estar apareceu-me uma oportunidade para trabalhar numa tipografia. Como os horários não se chocam, saio da fábrica por volta das 4 da tarde e vou fazer mais algumas horas a essa tipografia. É por assim dizer a minha segunda profissão.

Qual foi o seu primeiro ordenado?

Cerca de 750 francos por mês.

A família foi consigo?

Não, foi lá ter alguns meses mais tarde.

A sua esposa quando lá chegou começou logo a trabalhar?

Não, porque tinha na altura os meus filhos eram muito pequenos e ela tinha que cuidar deles. Agora, há mais ou menos um ano, é que começou a trabalhar.

E um emigrante pode dar-se ao luxo de ter a mulher em casa sem trabalhar?

Depende sempre dos ordenados que se ganham. Eu com o ordenado da fábrica e o da tipografia equilibro o orçamento e o que ganho dá bem para nós todos. Claro que agora as coisas já estão mais complicadas. Tenho por exemplo um filho a estudar a 200 quilómetros de casa. É a escola mais próxima onde existe o curso que ele queria e que anda a tirar. E depois, embora muito mais perto, também tenho a filha a tirar o seu curso.

Trabalha de manhã à noite e aos sábados e domingos?

Não é bem assim. Na fábrica começo às 6h30 e acabo às 14h30. Na tipografia começo a trabalhar meia hora depois e quando são 19h0, mais ou menos, já estou em casa. Aos sábados e aos domingos regra geral não se trabalha. A não ser que haja muito trabalho e seja preciso fazer umas horas.

A tipografia é uma empresa com as dimensões da fábrica?

Não, tem apenas 65 empregados. E eu sou o único tipógrafo. Aquilo já trabalha tudo com alta tecnologia, portanto é tudo feito com pessoal especializado.

Tem casa própria?

Ainda não. Continuo ainda no mesmo apartamento para onde fui quando lá cheguei. Tenho as melhores condições de habitabilidade, portanto não tenho necessidade de comprar casa.

Ao fim de quanto tempo de estar em França é que começou a ter dinheiro junto?

Para falar a verdade só ao fim de 3 anos. Durante todo este tempo o dinheiro gastou-se a mobilar a casa, a comprar roupas, a tirar a carta de condução, enfim, a criar condições para levar uma vida sem problemas.

Três anos em França a trabalhar, sem juntar um tostão, não deu para assustar?

Nunca fui um homem de fraquezas. Eu sabia que tinha que ser assim. Além disso, não podia mostrar desânimo porque então é que estragava tudo. Se juntarmos a todas as dificuldades porque se passa, a saudade da nossa terra, só com uma grande dose de orgulho e de vontade de vencer é que se pode ganhar uma aposta destas.

É muito grande a diferença de preços dos bens essenciais, entre a França e Portugal?

A comida, se compararmos os níveis de vida, lá é mais barata. A roupa então nem se fala. E o que é mais engraçado é que a roupa "Made in Portugal" lá é mais barata que cá. A governanta da casa onde a minha mulher trabalha agora, tem um casaco de pele, dizem eles que é pele de camelo, mas tem escrito por dentro "Made in Portugal".

Qual é a situação económica da empresa onde você trabalha? Sabe-se que há muitas a fazerem a reconversão de pessoal. Qual é a sua opinião sobre a situação actual?

O que está a acontecer agora, não é uma situação nova. Na fábrica onde trabalho já aconteceu em 1978 e voltou a acontecer o ano passado. Repare que nas grandes fábricas de automóveis havia mecânicos especializados que só apertavam parafusos e a montarem retrovisores. Com a robotização das fábricas os indivíduos que não tinham capacidade profissional viram-se de repente à porta das fábricas. Sobretudo os emigrantes árabes. Os portugueses não têm grandes problemas nesse aspecto. São homens que fazem qualquer trabalho e a se adaptam com a maior das facilidades.

Quando houve a redução de empregados na sua empresa, não esteve em risco o seu posto de trabalho?

Não, porque eu tinha, e ainda tenho, a chefia técnica de sala e sou responsável por uma sala electrónica. Acumulo as duas funções porque o anterior chefe saiu da empresa e como eu conhecia o tipo de trabalho e falo bem a língua nomearam-me para aquele lugar.

Tudo isso sem incidentes? Males de inveja?

Claro que não. mas eu tenho subido à minha custa. Nos primeiros 3 anos que lá estive tirei durante a noite um curso de francês. E posso dizer, que entre 160 fui o terceiro. Foi mesmo o meu chefe que me avisou. "Para subires na empresa tens que tirar um curso de francês". E eu tirei-o pois claro.

Tem alguma actividade sindical na sua empresa?

Não.

Conflitos sindicais costuma haver?

Houve em 1977 quando foi do primeiro despedimento. Mas de nada valeu. Toda a gente começou a compreender que é necessário é agarrarmo-nos ao trabalho porque, cada vez mais, há gente para tomar o lugar de outros.

Como é a organização sindical na sua empresa?

A SGT tem uma organização fantástica. São indivíduos que não guardam rancores. Para eles os trabalhadores, sejam ou não sindicalizados, são tratados da mesma maneira. Organizam excursões. Dão cabazes de compras de Natal. Este ano que passou, o cabaz de compras que deram a cada trabalhador andou à volta dos doze mil francos. Ainda dão para os casais que têm os filhos a estudar uma ajuda monetária. Na Páscoa dão uma prenda especial. No dia da mãe fazem uma festa na fábrica que é espectacular e ainda dão outro cabaz de compras. Por esta altura organizam excursões a Londres e a outros lugares. A primeira é em Quinta-Feira da Ascensão. Todos os anos eu e a minha família vamos apanhar a espiga a Inglaterra.

Como ocupa os seus tempos livres?

É o que me custa menos a programar. Um dos meus passatempos preferidos para o sábado e o domingo é a pesca. Para além da pesca, vou até à praia, leio, vejo televisão, etc..

A ver televisão é onde se gasta mais o tempo?

Às vezes é. Temos sete canais de televisão à escolha.

Há muitos portugueses na zona?

Não há mais do que meia dúzia de famílias portuguesas.

Vamos falar do regresso a Portugal. Já tem data marcada? Já alguma vez abriu uma agenda e apontou o mês e o dia para o regresso definitivo?

Não, nem isso é coisa que se faça assim. Por enquanto não há nada pensado. Há-de acontecer um dia mas não será assim tão breve.

Quer dizer que se sente bem e para si "a nossa terra é onde a gente se sente bem"?

A nossa terra é sempre a nossa terra. É o lugar insubstituível onde a gente nasceu e cresceu. Boulogne foi a cidade que me adoptou já lá vão 17 anos, mas a Chamusca é a Chamusca.

Tem vindo todos os anos passar férias?

Nunca falhei nenhum.

Vamos supor que regressa daqui a 10 anos. É ainda uma altura em que você é dono de todas as suas forças. Vai começar uma vida nova?

Julgo que seria muito difícil. Já foi difícil vencer quando cheguei a França. Não correria esse risco, a não ser que as dificuldades da vida a isso me obrigassem. De resto é na Chamusca que eu tenho o meu coração, mas isso não quer dizer que eu, por sentimentalismo, vá correr riscos.

É na Chamusca que tem sempre o seu coração. E o mealheiro guarda-o na Chamusca ou em Boulogne?

Guardo algum aqui mas a maior parte está guardado lá. Dá-me mais segurança.

Se vive a dois mil quilómetros de distância e gosta tanto da sua terra, porque é que só vem uma vez por ano?

Há vários factores me impedem de o fazer. Por exemplo, a neve nas estradas durante o longo Inverno ou os filhos que ainda não têm a vida arrumada. Mas embora não venha, estou sempre em contacto com a família. Todas as semanas, e às vezes mais do que uma vez, telefono a saber como vão as coisas e até sei as novidades fresquinhas e tudo.

Não acha que o prejudica estar assim tão ligado sentimentalmente à terra?

Não, não me prejudica absolutamente nada. Às vezes tenho uma certa nostalgia. Recordo os tempos de juventude, a minha passagem pela direcção do Sporting e pela secção de Pesca Desportiva onde estive sete anos. De qualquer forma eu sempre pensei sair da Chamusca para trabalhar.

Entrevista publicada na edição de Agosto de 1988

(Texto editado)

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