"Nunca me apareceu o Diabo mas vejo diabos todos os dias"

"Nunca me apareceu o Diabo mas vejo diabos todos os dias"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

Confissões de Amílcar Luís Fialho, padre de Lapas, Torres Novas, em Março de 1997*

Amílcar Luís Fialho foi ordenado padre em 15 de Agosto de 1967 e um ano depois foi para Lapas - Torres Novas. É ali que vive e é ali que sente bem. Para se realizar a nível pessoal já fez mil e uma coisas. Foi Comandante dos Bombeiros Voluntários Torrejanos, director do jornal O Almonda, fundador da Rádio Local de Torres Novas, secretário da direcção do Centro de Recuperação Infantil Torrejano e Membro do Conselho Consultivo do Hospital de Torres Novas. É professor na Escola Secundária Maria Lamas. Confessa que tem as suas "tentações" e não tem medo de reconhecer que a ideia da morte ainda o assusta.

Como é que se vai para padre?

Acho que tem que haver sempre alguém a despertar a vocação que possa existir dentro de nós. No meu caso foram os seminaristas do seminário dos Olivais que me davam catequese.

Na altura em que foi para o seminário já havia crise de vocações?

Entrei para o seminário em 1965, em plena crise vocacional. Éramos cem e saímos seis.

Essa crise coincide com o Concílio Vaticano II e com toda a revolução social e de costumes dos anos sessenta.

O Concílio veio trazer uma abertura muito maior à Igreja. Uma nova maneira de ver a realidade humana e cristã, mas a evolução no interior da própria Igreja foi muito lenta. As pessoas sentiam um grande desajustamento entre aquilo que o Concílio dizia e a prática da Igreja. Daí o descontentamento. Até houve padres que tinham sido meus professores no seminário que deixaram de ser padres.

Como é que conseguiu escapar a essa razia?

Eu era jovem e tinha um ideal que felizmente consegui realizar aqui em Lapas. Fui ordenado padre em 1967, estive um ano no seminário de Santarém e depois vim para aqui. Se tivesse ficado mais um ano ou dois no seminário não tinha conseguido. Não aguentava aquele sistema.

Quando chegou a Lapas o que é que encontrou?

Encontrei uma comunidade onde havia uma camada jovem muito sequiosa de respostas para muitos problemas. Como eu tinha trabalhado com jovens no Seminário consegui fazer algum trabalho interessante com eles e isso fez-me sentir realizado como padre. Além disso sempre fui apoiado e acarinhado. É por isso que ainda cá estou.

Nessa altura não teve queixas das pessoas de mais idade. Elas não se sentiram mais desapoiadas?

Inicialmente tive problemas com uma estrutura muito assente nas pessoas adultas, principalmente senhoras idosas mais ligadas ao culto. Felizmente nas Lapas havia uma nova geração de pessoas de meia-idade, com um espírito muito aberto, que conseguiu compreender o meu trabalho com os jovens e evitou o conflito.

Os dois ou três primeiros anos a seguir ao 25 de Abril de 1974 não foram muito bons para a Igreja portuguesa. Como é que viveu esses tempos?

Antes do 25 de Abril a comunidade estava mais unida. Lembro-me que conseguia fazer festas e outras iniciativas, em que juntava os que iam e os que não iam à missa. Com o 25 de Abril gerou-se um forte divisão. Eu soube esperar pelo meu tempo.

Nunca foi hostilizado?

Nunca. As pessoas sempre me trataram com a maior cordialidade.

Um padre é um relações públicas de Deus?

O padre terá que ser sempre alguém presente no meio dos outros é isso que eu tenho procurado e continuarei a procurar fazer. Gosto de estar onde estão as pessoas.

Nunca aspirou a ser Bispo?

Um Bispo vive muito isolado. Acho que não me ia dar muito bem como Bispo. Jesus Cristo sentia-se bem com as pessoas e no meio delas. Eu procuro seguir o seu exemplo. E ali que o meu trabalho deve ser feito.

Um padre que se fecha é um mau padre?

Não se é mau padre só por isso. Um mau padre é também aquele que não tem a serenidade e a humildade de aceitar aqueles que não gostam dele. Eu não sou santo nenhum e não quer dizer que não cometa erros e asneiras, mas luto diariamente para ser tolerante, paciente e compreensivo. E às vezes custa tanto...

É importante levar as pessoas à missa ?

Não. A pessoa é que há-de descobrir por si o dia em que há-de ir, ou se há-de ir. Aí é que está a grande diferença preconizada pelo Concílio Vaticano Segundo. Infelizmente vejo que, cada vez mais, estamos a andar para trás na prática.

É uma crítica aos padres?

Sim. É uma crítica a alguns colegas meus que são meros funcionários da Igreja.

Um seu colega de Alhandra, aqui há algum tempo, gerou polémica ao instituir um donativo mensal obrigatório a ser pago pelos fiéis. Você alguma vez pensou em fazer o mesmo?

Não. Isso nunca me passou pela cabeça. Eu acho que se o padre estiver disposto a ajudar as pessoas e atendê-las nos momentos em que elas precisam, será, naturalmente, recompensado.

Como é que você é compensado?

De início, de 68 a 72, vivia exclusivamente das paróquias de Lapas e Ribeira Branca, mas era um tempo em que a generosidade das pessoas era maior e em que a relação das pessoas com o dinheiro era muito diferente.

Decidiu ir trabalhar porque a generosidade já não era a mesma?

De maneira nenhuma. Decidi ir trabalhar porque tinha o meu dia muito pouco ocupado e começava a sentir um certo vazio. Surgiu-me a oportunidade de ir para o ensino e foi isso que fiz. No entanto verifico que é muito difícil um padre, com uma paróquia pequena, viver só dela.

Se tivesse de sair de Lapas depois destes anos todos, resistia, ou encarava isso como fazendo parte das suas obrigações?

Se agora, aos 52 anos, tivesse que reconstruir tudo do princípio, confesso que ficaria atemorizado. Estou muito ligado a esta comunidade e estou muito ligado à escola Maria Lamas de Torres Novas para encarar com facilidade a minha saída. São muitos anos.

Numa situação limite encarava a hipótese de deixar de ser padre?

Não digo desta água não beberei, mas isso só aconteceria se estivesse em conflito com a estrutura eclesial da Igreja e isso me estivesse a provocar grande insatisfação. Não me estou a ver em conflito com Deus.

A palavra de Deus tem pouco tempo de antena?

Pode parecer isso, mas não é verdade. Há um amigo meu que costuma dizer, com uma certa graça, que se o PCP tivesse tantos lugares de culto como a Igreja era o principal partido português.

Se fosse possível rezava a missas para as suas duas paróquias em simultâneo através de vídeo-conferência?

Só se fosse uma vídeo-conferência interactiva... (risos)... acho que me ia faltar o contacto directo com as pessoas.

Tem pessoas na sua paróquia que vão à missa e às celebrações da chamada santa da Ladeira do Pinheiro, na Meia-Via?

As pessoas daqui sentem-se pressionadas socialmente a não fazerem isso, mas algumas, em situação de aflição, não digo que não o façam. É uma atitude que demonstra falta de cultura religiosa. A sua fé é construída dentro do seu próprio individualismo e por isso tem contradições tremendas. São essas contradições que me angustiam.

Quando perde a paciência, conta até dez, reza um Pai-Nosso, ou rebenta mesmo?

É muito raro perder a paciência, mas às vezes acontece. Quando estou à beira de perder a paciência tento controlar-me pensando. Pensando muito.

Alguma vez sentiu que se tivesse tido uma família isso o poderia ter ajudado a ser melhor padre?

Desde que sou padre consegui ter uma realização pessoal e humana rica e completa. Nunca tive tendência para me isolar para me fechar ou para criar momentos de solidão e por isso nunca senti necessidade de constituir família. Pessoalmente não sou contra o casamento dos padres, mas como às vezes costumo dizer na brincadeira, se começarmos a pensar no casamento dos padres temos que começar logo a pôr a questão do divórcio dos padres.

Se fosse casado e pai de filhos a sua missão era dificultada?

Podia ser dificultada ou facilitada. Dependia da pessoa com quem eu tivesse casado. O casamento, como sabe, é uma carta fechada.

Você lidou com a geração de sessenta e lida com a juventude actual. Esta é pior ou melhor?

Hoje a juventude está muito marcada pelas distorções sociais e familiares. Além disso a escola está de tal modo massificada que não permite o relacionamento e a atenção que os jovens mereciam por parte dos professores. É uma situação complexa, mas a juventude actual tem muito valor.

Como encara o facto de alguns fanáticos religiosos amaldiçoarem e por vezes queimarem na praça pública obras literárias e cinematográficas?

Essas são atitudes de Velhos do Restelo. A própria Igreja tem actualmente uma outra atitude. Ainda recentemente o Papa pediu oficialmente desculpa pelo que se passou com Galileu. A mim o que preocupa é a libertinagem e a pornografia. Não são livros como o "Evangelho segundo Jesus Cristo" do José Saramago

A TVI alguma vez foi a televisão da Igreja?

Prefiro não responder.

Tinha alguma expectativa em relação à TVI?

Não, nunca tive. Nunca concordei com uma televisão da Igreja. Uma televisão implica meios muito dispendiosos, técnicos muito especializados, estruturas muito fortes. Ou a TVI ia transmitir missas todos os dias e fazer umas palestras muito jeitosas e não tinha viabilidade económica, ou então dava no que deu. Mas não é só a TVI. A Rádio Renascença, de católica...enfim.... E "O Novidades" que foi uma tentativa de fazer um jornal diário da Igreja falhou porque era uma folheca para meia dúzia lerem.

Quando o diabo lhe surge, surge-lhe disfarçado de quê?

Tenho as minhas tentações e as minhas tonteiras, mas nunca me apareceu o Diabo. O que eu vejo são muitos diabos por aí. Pessoas que enveredam pela desonestidade, mentira e falsidade para atingir determinados objectivos.

Está a acender um cigarro. Quais são os seus prazeres?

O fumar aconteceu-me devido à minha vida sedentária. O meu maior prazer é o do convívio com os amigos, à volta de um petisco.

A gula já não é pecado?

Eu já não tenho gula. (riso). Saborear um bom petisco não é pecado nenhum. Viver para comer é que é capaz de ser gula.

Porque é que as pessoas se sentem cada vez mais infelizes?

Aqui há um tempo um amigo meu dizia-me que para dormir bem tinha que ter pelo menos duzentos contos no banco. Não sei se está a ver o que isto significa? O problema da infelicidade das pessoas é o consumismo. Somos forçados a ter as coisas e já nem as sabemos usufruir. Esse é o grande problema.

A morte assusta-o?

Ninguém gosta de morrer e eu como humano também partilho esse sentimento. Pode ser que com a velhice venha a encarar essa realidade de outra maneira. Este é o meu sentimento humano, mas eu tenho a minha fé e quero acreditar que este é um momento de passagem para um mundo melhor.

*Entrevista da autoria de Alberto Bastos, publicada na edição de 5 de Março de 1997.

Texto editado.

O padre Amílcar faleceu a 8 de Maio de 2001 com 57 anos.

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