"Não tenho medo de fantasmas nem de mortos. Os vivos é que me assustam"

"Não tenho medo de fantasmas nem de mortos. Os vivos é que me assustam"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA
foto Arquivo

Com Eugénio Estevão, coveiro no cemitério de Santarém em Setembro de 1997*

Eugénio Estevão diz que lida com os mortos, da mesma maneira que lida com os vivos. Com respeito, mas sem medos. Coveiro no cemitério de Santarém, já aprendeu que as grandes correrias do dia a dia não fazem sentido. Os seus gestos são lentos e compassados. As suas mãos pegam nos ossos de um esqueleto com a mesma suavidade com que pegam na mão de uma criança. No subsolo do cemitério, à profundidade de um metro e vinte apodrecem milhares de sonhos por cumprir. Milhares de olhos que já estavam cegos antes de se fecharem pela última vez. Quem quiser encontrar um sentido para a vida não se pode esquecer de visitar periodicamente o cemitério.

Dez e meia da manhã no cemitério de Santarém. Eugénio Estevão atira mais duas pazadas de terra para fora da campa onde se encontra e começa a arrancar a tampa do caixão que tem debaixo dos pés. 0 sol abrasa. Grossas bagas de transpiração caem sobre a madeira podre. À volta faz-se silêncio.

O coveiro inclina-se e quando se levanta tem nas mãos os ossos do sacro do cadáver que ali repousa há sete anos. Após uma breve observação, informa a viúva, que assiste ao acto, que o esqueleto pode ser levantado porque já não tem qualquer vestígio de carne putrefacta.

Cuidadosamente, como se estivesse a lidar com um vivo, o coveiro vai procurando os ossos no fundo da urna e vai-os colocando num pequeno tabuleiro de madeira. As tíbias, os perónios, as falanges, as clavículas. Do vestuário pouco resta. Uma gravata e as peúgas de onde são retirados alguns ossinhos.

A caveira domina o conjunto. Eugénio Estevão sai do buraco, ajeita o boné e filosofa: "Tanta guerra e tanta coisa, para acabarmos todos assim". Depois pega no tabuleiro, coloca-o ao ombro e começa a andar em direcção a um outro ponto do cemitério onde se situa a antiga casa mortuária. Das botas enlameadas descolam-se grandes bocados de lama.

Amparada por duas amigas, a viúva assiste a um segundo funeral do marido. Um turbilhão de ideias deve percorrer-lhe o cérebro. O coveiro pára junto a ela e tira o boné para lhe falar. "Não pense mais nisso minha senhora. Vá para casa, descanse e não pense mais nisso". Após um breve cumprimento retoma a caminhada. Uma caminhada lenta e solene. Uma caminhada respeitosa e grave.

Eugénio Estevão tem quarenta e sete anos e é coveiro há dez. Antes foi bate-chapas. Um dia envolveu-se numa zaragata com um encarregado e foi despedido. Há males que vêm por bem. Um amigo falou-lhe numa vaga para coveiro e ele acabou por descobrir uma profissão de que realmente gosta.

"Quando era pequeno o meu pai não me comprava pastilhas nem me levava o leitinho à cama. Era muito novo quando fui aprender de pintor de automóveis e até gostava daquilo. Só que um dia desmaiei por causa das tintas e foi assim que fui para bate-chapas. Foram dezoito anos naquele trabalho mas nunca gostei muito do que fazia. Penso que se eu soubesse o que sei hoje tinha ido logo para coveiro".

Enquanto fala vai passando as mãos ensaboadas pela água que jorra de uma torneira. Depois esfrega-as com lixívia e novamente com sabão. "A lixívia é o melhor desinfectante que há".

"Durante a guerra em África, vivi coisas que só eu sei"

A um canto da arrecadação, junto a outros objectos está uma máscara e uma luva de borracha desemparelhada. Eugénio Estevão explica que não se dá muito bem a trabalhar com aquelas protecções. "A máscara não tem filtros". Coloca-a sobre a boca e o riso sai-lhe abafado pela borracha. Parece uma personagem de uma série de televisão.

"Um homem, com isto na cara, a trabalhar numa campa, ainda morre por lá.". Respira ruidosamente para exemplificar a eventual dificuldade. "As luvas romperam-se logo e deitavam cá um pivete que ninguém aguentava", vai contando.

Em cima da pedra larga, onde antigamente eram colocadas as urnas, alinham-se vários tabuleirinhos com ossadas. Cada um deles está numerado e tem lá dentro um pequeno papel com o nome do coveiro que exumou os restos mortais e o nome do defunto.

Antes de serem entregues às famílias para colocação era pequenos "gavetões", no cemitério, os ossos são lavados e ficam a secar ao sol. As ossadas que não são levantadas são mais tarde enterradas numa vala comum.

A conversa segue para histórias de pesadelos e assombrações. O coveiro, coloca o boné era cima da mesa, aperta dois botões da camisa e confessa que nunca teve maus encontros. Nem a dormir, nem acordado.

"Às vezes tenho maus sonhos mas é por causa do que passei na guerra era África. Vivi lá coisas que só eu sei. De fantasmas não tenho medo. Nem dos mortos. Quem me assusta a valer são os vivos", desabafa.

Na tropa, Eugénio Estevão foi soldador de urnas. Foi onde teve os primeiros contactos cora a morte, prolongados depois na sua actividade como bombeiro. "No último ano que estive em Angola, em Carmona, ainda soldei as urnas de dois soldados e de um tenente. Nos bombeiros fui muitas vezes buscar mortos ao fundo de poços, à linha do caminho de ferro e às estradas".

Nem toda a gente tem o sangue-frio de Eugénio Estevão. Há alguns anos, dois coveiros de Santarém abandonaram a profissão que tinham iniciado pouco tempo antes, na altura era que procediam a uma exumação de um cadáver. O corpo ainda estava era decomposição. Um toque nos restos mortais vacinou-os para toda a vida. "Quando chegaram à carne...ò abre! Foram-se embora sem olhar para trás!".

Impressionada ficou também a mulher de Eugénio Estevão quando ele se iniciou na nova profissão. Impressionada e enojada. Só de pensar que as mãos do marido eram mãos que mexiam em mortos e em esqueletos, entrou em pânico e não permitia que ele lhe tocasse. As vizinhas ainda lhe acirravam mais a cisma. Apesar do amor que lhe tinha, o coveiro pensou muitas vezes em divorciar-se. Mais tarde, em desespero, ainda tentou ser transferido para outro serviço, mas um coveiro não se arranja de um dia para o outro e a transferência foi-lhe recusada.

O problema começou a atenuar-se quando a mulher foi trabalhar para o sector de higiene e limpeza da câmara municipal. "Ela agora mexe todos os dias em lixo e já compreende melhor as coisas. Já se habituou".

Saímos para a luz do meio-dia. O reflexo do sol nas pedras tumulares cega-nos. O silêncio é total. O Tejo corre lá no fundo, indiferente. Uma paisagem magnífica que grande parte dos vivos se esquece de olhar. Uma paisagem magnífica que infelizmente nenhum morto pode ver. Centenas de olhos apodrecem a um metro e vinte de profundidade. Despojos inúteis.

Eugénio Estevão olha de relance as campas e sai para o almoço. A dona do café sorri e informa-o da ementa. O coveiro esquece o ácido úrico e ataca uma primeira imperial cora visível satisfação. "Nunca vou à missa mas rezo todos os dias para que Deus me dê forças". Que assim seja, respondemos da porta, já despedir-nos. "E que a terra nos seja leve", acrescentamos agora.

*Reportagem de Alberto Bastos

Publicada na edição de 10 de Setembro de 1997

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