Ir dar sangue para dar mais sentido à vida

Ir dar sangue para dar mais sentido à vida
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

No serviço de sangue do Hospital de Torres Novas em Maio de 1992.

Devido a relatos de leitores sobre recusa de dádivas de sangue em hospitais por motivos tão absurdos como o do dador viver com uma mulher não sendo casado, O MIRANTE resolveu ir verificar o que se passa na nossa zona. Num país como o nosso, com grandes carências de sangue, não fazia sentido a existência de tantos obstáculos para a concretização de tão importante gesto cívico.

Escolhemos o Hospital de Torres Novas. O jornalista apresentou-se como um normal cidadão, sensibilizado pelos apelos do Instituto Português do Sangue. O fotógrafo acompanhou-o. Não queríamos deixar passar nenhum pormenor. Esta é uma reportagem escrita na primeira pessoa. Estou a escrever este texto e a olhar para a nódoa negra que agulha deixou no meu braço esquerdo.

O enfermeiro Luís Madeira, que me atendeu, nem sequer me perguntou se era casado ou solteiro. Pesou-me, mediu-me a tensão e mandou-me sentar num cadeirão reclinável. Daí a pouco o meu sangue corria pelo estreito tubo de plástico para a embalagem previamente numerada e datada. Foi quase meio litro, 450 ml para ser mais preciso. É a medida de lei, explicaram-me.

Antes de mim, este ano, com Maio a começar, já lá tinham estado perto de 1500 (mil e quinhentos) dadores, disseram-me também. Fiz as contas e dá uma média de 18 dadores por dia. Nada mau.

No Serviço de Sangue do Hospital de Torres Novas, não rejeitam ninguém desde que seja saudável e tenha entre 18 e 65 anos. Tratam as pessoas com amabilidade, recolhem o sangue e analisam-no. Se há problemas, enviam uma carta ao dador, explicam-lhe o que se passa, fazem outras análises e, se for caso disso, encaminham-no para uma consulta médica.

"Entre que a casa é sua"

O primeiro contacto com o Serviço de Sangue do Hospital de Torres Novas não foi fácil. Estive um quarto de hora a secar ao telefone até me conseguirem fazer a ligação. De três em três minutos ouvia um "clic" nas linha e a voz da telefonista: "Só um momento, porque ainda está a falar". Depois, durante a pequena conversa também não foram particularmente simpáticos.

A pessoa que me atendeu identificou-se sempre como «a empregada», e nem sequer me quis dizer o nome do enfermeiro que estava de serviço. Informou-me apenas que podia dar sangue até às duas horas e que, se quisesse, podia tomar o pequeno almoço. Bebi um café e fui.

Antes de entrarmos, o Joaquim Emídio arrancou os autocolantes do jornal que tinha colados na bolsa do equipamento fotográfico. Não queríamos assistir às habituais encenações para "jornalista ver".

Ao fundo da enorme escadaria que dá acesso ao Hospital, vira-se à direita e segue-se um estreito passeio. "Entre que a casa é sua, Instituto Português do Sangue", lê-se. É ali. De um lado, uma sala com sumos, garrafas de vinho (tinto, branco e Porto), copos lavados e sujos, uma caixa de bolachas sortidas e um "tupperware" com duas sandes. Do outro lado, porta semi-aberta, vejo o que me espera. Um dador sentado, com uma agulha espetada na veia e ar compenetrado, fixa um ponto qualquer no tecto enquanto o sangue corre pelo tubo.

Dou dois passos em frente e fico entre o vidro e a recepcionista. Digo-lhe que quero dar sangue e registo mentalmente os três únicos reparos que vou deixar aqui. As sandes deviam estar tapadas porque as moscas também comem. O orifício do vidro da recepção não devia estar ao nível dos nossos estômagos. A porta da sala onde se dá sangue podia estar fechada para haver maior privacidade. Eu pessoalmente, não gosto de ser visto naquela situação.

Enquanto esperamos entra um motorista da Rodoviária Nacional. Vem falar com o Enfermeiro Neto por causa do Convívio dos Dadores de Sangue. Se calhar não consegue dispensa de serviço para o dia 10, domingo.

Um dador que vai a sair fala contra o Governo e contra as taxas moderadoras. O Dec-Lei 54/92 está afixado no «placard» sublinhado a marcador fluorescente amarelo. Para não pagar as novas taxas moderadoras é necessário ter dado sangue, pelo menos duas vezes no ano anterior.

"Meu ya-ya meu yo-yo"

Oiço o meu nome e entro cheio de nervoso miudinho. A sala é pequena e impessoal. Dois pequenos quadros com flores e um calendário com a fotografia de um puto reguila que, com um ar muito doutoral, ausculta as entranhas de um televisor. É quase meio-dia.

O Enfermeiro Luís Madeira responde às minhas perguntas e vai fazendo o seu trabalho. Desde o aparecimento da SIDA que, em muitos países se vem implementando a técnica da auto-transfusão. Alguns médicos especialistas em imunoterapia defendem que é a solução mais segura para quem precisa de sangue e não quer correr riscos.

Pergunto-lhe como é ali no Hospital. Que sim senhor que podem fazer auto-transfusões, que inclusivamente já o fizeram. O único problema é com a marcação de cirurgias. Nem sempre é possível conciliar datas e o sangue só tem 35 dias de conservação.

Aperta o garrote em volta do meu braço e espeta a agulha. Não me dói nada. Vou abrindo e fechando a mão lentamente obedecendo às instruções. O Emídio ri-se e vai conversando. Pede para tirar fotografias e é autorizado. Flash da máquina. Na sala ao lado trabalha-se e ouve-se música.

«Sem seiva as árvores morrem. Sem sangue não há vida», o slogan é do IPP. Na rádio, o brasileiro Wando canta o refrão da canção Fogo e Paixão. Ao ritmo do "meu ya-ya, meu yo-yo", o meu sangue, escuro, escuro, baloiça levemente dentro do saco que vai enchendo. Procuro não olhar. Flash outra vez. Ajeito o cabelo. Sei que fico sempre desfavorecido nas fotografias em que me estão a tirar sangue.

"Já me está a meter medo"

Ficamos com a sensação que as pessoas que ali trabalham gostam do que estão a fazer. O ambiente é descontraído. O Enfermeiro fala com uma certa vaidade do serviço. "Isto é uma casa pequenina mas temos aqui equipamento muito sofisticado. O sangue tem que ser analisado e tratado como deve ser. A tecnologia que usamos aqui é das mais avançadas. O sangue que vai daqui é aceite em todo o lado sem mais análises". Fala também da médica que chefia o serviço, Drª Leonor. Elogios sinceros. Ele não sabe que somos de O MIRANTE.

Contamos-lhe a história do dador recusado em Santa Maria só por viver maritalmente com uma mulher. "Só por isso, não acredito. Nós aqui, à partida, não isolamos ninguém que queira fazer a dádiva. Só pessoas que não tenham o peso ou a idade ideais. Fazemos a colheita, fazemos as análises. Se descobrimos qualquer tipo de problema, chama-se a pessoa e explica-se. Este procedimento enraizou-se e é assim que se faz. Os resultados das análises são enviados para sua casa. Se surgir qualquer anomalia não enviamos os resultados. Enviamos uma carta e depois aqui é que explicamos presencialmente".

Meio-dia e um quarto. Se não estivéssemos ali como vulgares cidadãos, pensávamos que a coisa tinha sido toda combinada. Entra um dador do Entroncamento com uma carta na mão. Está nervoso. Quer saber o que se passa. Vem uma mulher, jovem. No cartão pregado na bata branca só consigo ler um nome. Rosa. Diz que as análises detectaram qualquer coisa e que querem confirmar. "Já me está a meter medo".

Ela tenta tranquilizá-lo. O homem conta que teve problemas com o fígado. Bebia uns copos valentes. Um dia o fígado não aguentou. Foi ao médico, fez análises, mas tem-se sentido bem. "Não lhe estou a meter medo nenhum. Vamos fazer novas análises e depois, no princípio da próxima semana, já lhe podemos dizer mais qualquer coisa».

O Enfermeiro Luís, antes de me tirar a agulha do braço, recolhe sangue para dois pequenos recipientes. Despeço-me e passo à sala em frente. Bebo um Porto e como uma bolacha. Está calor mas os sumos estão quentes. Bebo outro Porto e saímos para a rua. É meio-dia e meia.

Em Torres Novas ficou um pouco de mim. Um pouco do meu sangue. Se tudo estiver ok, aquele sangue vai ajudar outra pessoa. Outra pessoa que eu nunca vou saber quem é. Sinto-me bem comigo e só lamento esquecer-me tantas vezes de fazer mais coisas que lhe dêem sentido.

Texto de Alberto Bastos e fotografias de Joaquim António Emídio

Reportagem publicada na edição de 15 de Maio de 1992

Texto editado

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