"Fui incómodo em muitas situações mas se voltasse atrás ainda teria sido mais incómodo"

"Fui incómodo em muitas situações mas se voltasse atrás ainda teria sido mais incómodo"
TEXTOS QUE FIZERAM HISTÓRIA

Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, falecido ontem, foi entrevistado por O MIRANTE em Agosto de 2009.

Esta quinta-feira cumpre-se um dia de luto nacional, decretado pelo Governo, pela morte, ocorrida ontem, do arquitecto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles. O arquitecto, que tinha 98 anos, tinha grande ligação a Coruche. Foi aí que O MIRANTE o entrevistou em Agosto de 2009, na altura das Festas de Nossa Senhora do Castelo.

Quando é que descobriu esta vocação por cuidar da paisagem?

A arquitectura paisagística é uma área independente de tudo o resto e eu despertei muito cedo para esta realidade. Quando era criança tinha uma certa vocação para o desenho e era um observador do campo. Cresci e comecei a perceber os problemas do campo e a necessidade de se intervir. Tive a sorte de encontrar, quase por acaso, o curso que me convinha. Foi o primeiro curso de arquitectura paisagística iniciado pelo arquitecto Caldeira Cabral. Depois criámos outro curso em Évora, onde fui professor muitos anos. Agora já existe em cinco universidades portuguesas.

O facto de ter nascido no seio de uma família de Coruche, influenciou a sua ligação ao campo?

Eu nasci em Lisboa, mas cresci em Coruche e ia lá frequentemente. Vivia em Lisboa porque o meu pai era oficial do Exército e estava colocado na cidade. Tenho as memórias dos campos do Sorraia, do rio, das margens e da força da agricultura naquela zona. Sou do tempo em que as hortaliças vinham do campo e das hortas de Loures e Vila Franca para a Praça da Figueira.

Que memórias guarda da sua meninice em Coruche?

Fui um menino da cidade que teve o prazer de crescer no campo e passar em Coruche uma boa parte da minha infância. Este contacto com o campo acabou por traçar a minha vida. Nunca deixei de ter contacto com o mundo rural apesar de passar muito tempo na cidade. A cidade nunca se pode dissociar do campo. Há um grande défice de educação que não permite compreender que estes dois mundos só subsistem se andarem ligados. O mundo rural e o mundo urbano não podem viver um sem o outro.

Ainda vamos ter um regresso ao mundo rural de pessoas que foram viver para as cidades?

Não tenho dúvidas que esta população acumulada à volta das cidades, no Litoral, não gosta da vida que tem e vai querer regressar ao campo quando tiver lá condições para viver. Ou então vai ter de sair para o estrangeiro. Há um grande desconhecimento dos nossos políticos em relação ao mundo rural. Falam dele, mas não sabem do que se trata. Veja esta lei da Reserva Agrícola Nacional (RAN) onde tudo passa a ser agricultura, inclusive a reflorestação com eucaliptos passa a ser possível nas melhores terras de cultura. Depois não produzimos nada e temos de comprar tudo o que comemos ao estrangeiro com custos elevadíssimos para a economia nacional.

Ainda tem vida social em Coruche?

Gosto muito de estar com a família e de ir ao café e conversar com as pessoas. Continuo ligado á Irmandade de Nossa Senhora do Castelo e gosto de assistir às festas.

É aficionado da festa brava?

Gosto de ir às corridas de toiros e vou ver os meus primos Ribeiro Telles que são cavaleiros de bom nível com quem gosto de estar.

A intervenção feita na zona ribeirinha agrada-lhe?

Não. Considero que o que se fez nas margens do Sorraia, com colocação de pedra e betão é um desastre com consequências imprevisíveis. Já vi e reflecti sobre o que lá está. E alertei em tempo oportuno, mas ninguém me ouviu.

A família é um elemento fundamental na sua vida?

Sempre fui um homem de família. Procurei conciliar a minha vida profissional com a vida familiar. No Natal juntamos 40 a 50 pessoas em casa. Tenho quatro filhos e nove netos. Perdi uma filha.

Porque é que continua a viver em Lisboa?

Em Évora dizem que devia viver lá onde fui professor e tenho muitos amigos. Em Coruche, gostavam de me ter lá porque é a terra da família, mas opto por estar em Lisboa porque estou perto de tudo e ainda tenho muita actividade na cidade. Ainda trabalho. As relações de café que tenho em Lisboa são fundamentais e não gostaria de as abandonar. Tenho que estar com os amigos, pelo menos uma a duas vezes por semana.

Qual é o segredo para a sua forma física e intelectual?

Fiz uma vida regrada e sempre tive uma actividade muito intensa na defesa dos direitos das pessoas. Toda a vida fiz o serviço a alguém ou a alguma coisa e isso dá-me uma motivação permanente para andar. Felizmente tenho tido saúde e sinto-me bem para continuar.

Teria tido uma vida mais folgada e tranquila se optasse por servir o poder. Mas esteve sempre do outro lado…

As pessoas têm direitos e deveres. Eu lutei sempre pelos meus direitos e dos meus semelhantes com a consciência que tinha o dever de intervir.

Entre 1974 e 1976 foi subsecretário de Estado do Ambiente e secretário de Estado de Ambiente e, de 1981 a 1983, desempenhou as funções de Ministro da Qualidade de Vida...

Devíamos ter um ministro do território e da paisagem que é um dos problemas graves do país. Já tivemos ministros com vários nomes, mas pouco se fez pela protecção do território e da paisagem. Ninguém sabe quem manda na paisagem se é a agricultura ou o ambiente. É necessário um mistério que olhe pela terra e pela paisagem.

É considerado o pai da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN)...

Não fui o pai. Houve mais pessoas envolvidas nesse processo.

Foi o professor que lançou a semente. Está desiludido com o uso que foi dado a estes instrumentos de protecção da paisagem?

O uso da RAN e da REN tem sido completamente anedótico. Há um enorme desconhecimento e foram feitas monstruosidades em vários pontos do país. Vieram uns senhores dizer que o que dava dinheiro era o loteamento urbano e construíram-se casas em todo o lado que agora estão por vender ou entregues aos bancos. Temos perímetros urbanos com extensões que comprometem o uso do solo e ninguém sabe o que fazer.

A especulação urbana enriqueceu muita gente?

A legislação de ordenamento do território tem uma visão mercantilista da terra e permitiu que se construísse em todo o lado para se fazer dinheiro rapidamente. O país está cheio de construções em locais que deviam estar reservados para a paisagem. A legislação tem de ser mais exigente e tem de ser cumprida para preservar a qualidade de vida dos portugueses. As pessoas precisam de ter comer e se não produzirmos, temos de comprar tudo lá fora.

É uma questão de legislação ou de coragem para a aplicar?

O problema é o desconhecimento completo do que é a paisagem ao nível dos técnicos e de quem decide. Sem conhecimento da paisagem e das suas origens não é possível preparar o futuro.

Os técnicos estão demasiado fechados nos seus gabinetes?

Não estão nada. Eles andam no terreno. Têm condições para conhecer os locais que antes não existiam. O problema é que eles têm visões sectoriais, não analisam no conjunto e não contemplam as articulações que têm que existir entre todos os sectores do conhecimento.

Os arquitectos paisagistas são incómodos para quem tem de decidir sobre o ordenamento do território?

Os arquitectos paisagistas foram expulsos pelos interesses que existem nas câmaras. Veja que há uma ordem dos Médicos, dos engenheiros, dos arquitectos, mas não há dos arquitectos paisagistas. Nós não somos o mesmo que os arquitectos. Os pareceres dos técnicos terminam sempre da mesma maneira. “Coloca-se à consideração superior”.

São os políticos que tomam a decisão?

E o problema é que a maioria dos políticos é muito ignorante. Há excepções várias no país, mas há muita ignorância nas câmaras, nas estruturas intermédias e no Governo. A lei obriga a uma revisão dos Planos Directores Municipais (PDM), mas quem faz esta revisão não conhece a realidade onde trabalha. Há dezenas de pareceres, mas só complicam o processo porque não há articulação entre as várias entidades.

Os Planos Directores Municipais (PDM) de primeira geração foram positivos?

Houve planos magníficos que travaram processos de loteamento que seriam uma desgraça, mas basta ler as legendas da maioria dos PDM’s para perceber que quem os fez não sabia onde estava a intervir.

Ainda faz planos de futuro?

Todos os dias penso nos meus planos e projectos. Todos os dias aprendo mais um pouco…

Tem medo da morte?

A morte é uma passagem, mas gosto muito da vida e não sei o que se passa depois. Tenho medo de ir para o desemprego (risos).

“Os políticos enganam os cidadãos com mentiras que repetem muitas vezes e passa a ser verdade”

A plataforma logística da Castanheira do Ribatejo está a ser construída numa área protegida e classificada como Reserva Agrícola Nacional (RAN) e Reserva Ecológica Nacional (REN)…

É como os projectos de interesse nacional que estão a aparecer em todo o lado. Não há nada que justifique a construção da plataforma logística naquele local da Castanheira do Ribatejo. É o desprezo por estas terras. Havia muito local onde a plataforma poderia ser feita.

Na zona ribeirinha que vai de Vila Franca de Xira à Póvoa de Santa Iria estão previstas várias urbanizações e áreas de logística…

Isso é uma dupla monstruosidade. Não se admite que estejam a fazer uma maldade dessas à região. O Tejo não é só o rio, são também as suas margens. Há uma ignorância muito grande das pessoas e depois os políticos enganam os cidadãos com mentiras que repetem muitas vezes e que passam a ser verdade. Como é que podem construir em zonas alagáveis? Estas pessoas não têm noção do risco? Pode haver uma tragédia…

O Tejo é um elemento fundamental na paisagem ribatejana?

O Tejo, os seus afluentes, e as margens adjacentes. Ver o Tejo apenas como o rio, é de uma ignorância espantosa. O Tejo é um sistema de continuidade que deve ser valorizado. Os espanhóis estão a estudar o seu aproveitamento, mas nós continuamos a vê-los passar. O caudal do rio tem vindo a diminuir devido às construções e isso é óptimo para as plataformas logísticas e para os projectos imobiliários previstos para a região.

O professor foi sempre uma voz incómoda na sua vida académica, na política ou nas intervenções cívicas. Foi prejudicado em várias situações. Não se arrepende?

Nunca me arrependi do que fiz. E se fosse hoje, em alguns casos teria feito pior porque não vi resultados da minha intervenção. Tive a sorte de ter encontrado uma área de formação que me deixou conhecer o mundo rural e tive a sorte de ter visto no mundo os problemas da paisagem.

A nova geração de portugueses não tem a coragem que o acompanhou?

O problema não está nos jovens, está na geração que os forma e que não os tem formado da melhor maneira. Hoje há mais informação e com acesso mais fácil, na Internet, mas faltam conhecimentos básicos que são fundamentais na formação de cada um de nós.

Os cidadãos hoje são mais egoístas?

Não me parece. O país é extraordinário na solidariedade por causas que o mobilizem. O problema é que as decisões dos políticos afastam as pessoas. Porque é que fecham as escolas nas aldeias? Por não haver alunos, então vamos arranjar maneira de haver gente na aldeia mas não se feche a escola. Criem condições para que as pessoas possam trabalhar as terras das aldeias e viverem lá com as famílias.

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