Crónicas do Brasil | 22-01-2016 14:57

Camus e a descoberta do feijão preto – ou vice-versa (Final)

Camus e a descoberta do feijão preto – ou vice-versa (Final)

Descobrir a obra de Camus através do primeiro romance que ele escreveu – A morte feliz – foi uma coincidência... feliz. O romance nunca foi terminado. Camus começou a escrevê-lo em 1937 e o abandonou no ano seguinte, para iniciar a redação de O estrangeiro.

Descobrir a obra de Camus através do primeiro romance que ele escreveu – A morte feliz – foi uma coincidência... feliz. O romance nunca foi terminado. Camus começou a escrevê-lo em 1937 e o abandonou no ano seguinte, para iniciar a redação de O estrangeiro. Em certo sentido se pode dizer que A morte feliz é um romance abortado. Noutro, que é o embrião de O estrangeiro. Ao ler o primeiro, eu sequer sabia da existência do segundo. A felicidade da descoberta consistiu justamente de, a partir de A morte feliz, ir percorrendo a obra de Camus num passo-a-passo cronológico – às vezes com avanços, outras vezes recuos no tempo. A morte feliz só foi publicado postumamente, em 1971, como parte do volume I dos Cahiers de Camus. A minha curiosidade cresceu em fascínio quando, lendo os volumes dos Cahiers, acompanhei as primeiras reflexões de Camus na sua ainda tateante busca de traçar o destino de Patrice Mersault, o empregado de uma companhia de comércio marítimo que, para entrar na grande vida – no reino da felicidade, que ele achava poder comprar com o dinheiro – mata e rouba as economias de Roland Zagreus, um inválido de guerra. Nomesmo dia Patrice Mersault pega um golpe de ar que o torna tuberculoso e, por consequência, um condenado potencial à morte. Falamos de condenação à morte porque, como bem sabem os leitores de Camus, é esse o tema de A morte feliz que permanecerá, então de modo mais nítido, no romance seguinte – O estrangeiro –, em que Camus, por assim dizer – na expressão reducionista da crítica – “ilustra” em narrativa ficcional o tema filosófico do absurdo da existência. A pena capital – que ele repudiava visceralmente, contra a qual escreveu um ensaio a quatro mãos com Arthur Koestler, Réflexions sur la peine capitale – é uma espécie de interface que permeia todas as mortes a que estamos todos sujeitos – a morte natural, a morte “legal” imposta pelo arbítrio da lei, a morte metafísica etc. Em O estrangeiro, o que condena Mersault não é um golpe de ar, mas a sentença do juiz num tribunal – um homem como ele. Não foi por acaso, portanto, que Camus, ao abandonar a primeira redação de A morte feliz, começa a trabalhar ao mesmo tempo O estrangeiro, O mito de Sísifo e Calígula, três obras de diferentes gêneros – respectivamente de prosa ficcional, prosa ensaístico-filosófica e teatro – mas todas interligadas pelo mesmo tema do absurdo. Não deixa de parecer incrível, e até incongruente – ou absurdo, no sentido mais prosaico do termo – que a minha descoberta de Camus e de tudo o que ele viria a significar para mim tivesse de começar daquele jeito – deitado num sofá desconjuntado, e no mesmo dia e lugar em que descobri um feijão-preto inigualável.

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