Entrevista | 30-07-2009 11:53

Aos 84 anos continua a trabalhar no seu laboratório de análises clínicas

Aos 84 anos continua a trabalhar no seu laboratório de análises clínicas
Nasceu na Cidade da Praia, em Cabo Verde, mas é cidadão cartaxeiro por convicção. Aos 84 anos Henrique dos Santos Silva continua a gerir o laboratório de análises clínicas para onde veio trabalhar há 57 anos, depois de concluir o curso de ciências farmacêuticas. Durante 26 anos foi o responsável pela análise da qualidade das águas do concelho e ajudou o Cartaxo a criar o jardim-de-infância para ocupar os filhos das mulheres que queriam ir trabalhar nas fábricas.Não nasceu cá, mas adoptou o Cartaxo como terra.Nasci na cidade da Praia, Ilha de S. Tiago, Cabo Verde, onde o meu pai prestava serviço militar. Sou o terceiro de seis irmãos. Cada um nasceu na sua ilha à medida que a missão militar do meu pai ia percorrendo o território. Após a reforma do meu pai deixámos Cabo Verde. Ainda nos perguntou se queríamos lá ficar, mas dissemos que não e fixámo-nos em Coimbra.E como foi passar lá a infância?A população era amena e educada. Um dos meus companheiros de liceu foi Amílcar Cabral [político assassinado em 1973]. Tinham boa escolaridade, mas a terra era pobre. Os que podiam vinham estudar cá. Os que faziam o sétimo ano e já não tinham mais posses eram mandados pelo Governo para as outras colónias como chefes de posto.E como vem para o Cartaxo?Acabei o curso de Ciências Farmacêuticas, especialidade de análises clínicas, e fui para a terra onde estavam os pais, Coimbra. No Cartaxo havia um laboratório do Dr. Matias Lopes Guedes. Ele precisava de um colega. A área estava a ter mais complexidade e ele era de uma escola muito antiga. Ele conhecia um professor meu e seleccionou-me. Em Janeiro de 1952 tomei conta do serviço. Até hoje. Já lá vão 57 anos. Porque é que o professor se lembrou de si?Era o mais classificado. Tinha 14. Ter um 10 ou mesmo um 11 era um caso muito sério. Com que impressão ficou do Cartaxo?Fui bem recebido. A vida social era diferente. Onde existe o restaurante chinês havia o café “Campino” onde à noite se reunia a sociedade do Cartaxo. Reuníamo-nos para ler os jornais da tarde. Lia-se bastante, o que hoje desapareceu. Era no “Monumental” que se via mais gente a seguir ao almoço. Tínhamos uma vida mais livre e com mais segurança. Havia cinema às quintas-feiras e ia-se para casa à vontade. Após a mudança de regime a liberdade transformou-se em libertinagem.Que excessos levaram a esta insegurança?As pessoas não se convencem de que a liberdade tem leis para cumprir. Lá fora, quando se toca em alguém por engano pede-se desculpa. Aqui não…Um dia comprou a quota ao sócio. Conseguiu ter capacidade financeira para se estabelecer?Pouco tempo depois de ter chegado ao Cartaxo o director chamou-me para me oferecer o lugar, mas naquele tempo ganhava-se mal. Ganhava-se mal, mas poupava-se e hoje o dinheiro foge. Não havia acesso ao crédito como há hoje. O acesso ao banco com esta liberdade só foi agora. Foi em excesso e provocou esta crise. O que ganhava era o que aplicava. Naquele tempo as capacidades financeiras eram diferentes.E tinha muitos clientes?Tinha muito serviço de Santarém, que era uma cidade fraca em termos de laboratório. O hospital que existia era o da Misericórdia. Vinha muita gente de Santarém e das margens do Tejo: Coruche, Salvaterra de Magos, Golegã, Almeirim e Alpiarça. A medicina era quase toda privada. No Cartaxo havia meia dúzia de consultórios médicos. Todos tinham a sua clientela e iam com chamadas a casa. Hoje os privados desapareceram. Tem que se ir para o centro de saúde.Mas havia menos acesso à saúde.Não havia com tanta abundância. Até os partos eram feitos em casa, mas prestava-se um bom serviço. Nunca houve problemas de maior.O serviço era melhor nesse tempo?Os médicos de Santarém, tal como os do Cartaxo, dedicavam-se muito ao doente. Iam a Lisboa com regularidade tentar aperfeiçoar e só largavam o doente quando se atingia um certo nível.Um sonho chamado Jardim-de-Infância do CartaxoNão teve filhos, mas foi um dos fundadores do Jardim-de-infância do Cartaxo. O que o motivou? Havia muita pobreza escondida. O Cartaxo era mais agrícola. Depois começaram a aparecer as fábricas. Havia mães a querer trabalhar e a não ter onde deixar os filhos. O jardim nasceu e hoje tem uma população bastante grande.E como surgiu a ideia?Naquele tempo havia uma comissão de assistência no concelho do Cartaxo. Por influência de um amigo, o então presidente da câmara Carlos Reis, arranjavam-se pessoas com boa vontade para ajudar os pobres. Eu já conhecia muita gente. Clientes que vinham cá… No país havia uma terra ou outra que tinha jardim-de-infância e isso criou em mim uma vontade de ajudar a fazer um jardim-de-infância. Uma certa noite fui com a minha mulher a Lisboa falar com uma médica ligada ao Cartaxo. Recebeu-nos com entusiasmo e indicou-nos os caminhos a seguir. Foi uma porta aberta. Entretanto apareceu o senhor José Paínho e também se entusiasmou com a ideia. E o espaço?Havia uma propriedade particular onde o jardim-de-infância nasceu. Tinha havido um processo de falência e a casa estava abandonada. Foi vendida em leilão. Quem tinha a chave era um cliente meu da Maçussa. Um dia eu e o senhor Paínho fomos ter com ele. Explicámos o que queríamos. Era uma pessoa muito compreensiva e disse: ‘os senhores ficam com a chave’. Os verdadeiros donos estavam em Lisboa, mas ele disponibilizou-se a falar com eles. E assim aconteceu. Foi uma coisa de horas.Tiveram muita ajuda.Sim… Tinha aberto a fábrica da General Motors na Azambuja. Pedimos caixotes de madeira onde vinham algumas peças de barco para fazer as mesas. Nem cobraram nada. Depois começámos a bater à porta das altas individualidades. Trouxemos o professor Marcelo Caetano [último presidente do Conselho do Estado Novo, deposto aquando da revolução de 25 de Abril de 1974] quando já estávamos a querer comprar o terreno onde está implantado o jardim hoje. Ficou encantado com a localização e até teve uma acção generosa. ‘Somente peço que não deitem as árvores abaixo’, disse. No fim da visita mete a mão à carteira e passa um cheque. E com outros apoios conseguimos adquirir o terreno. Os donos do primeiro edifício praticamente cederam-nos o prédio. Fizemos algumas festas e a obra aconteceu.E conseguia conciliar a profissão com o projecto?Ajudei o Paínho sempre que pude. Ele foi a verdadeira alma do jardim. A figura central e dinâmica. Se o Cartaxo tem o jardim deve-o a ele. Eu era uma espécie de amigo. Claro que muita gente o ajudou. Fizemos muitas excursões à noite a casa de pessoas bem colocadas. Chegámos a ir a Sintra e a vir de lá às quatro da manhã. Muita gente não sabe disso. E as pessoas colaboravam sem qualquer recompensa.Fez parte dos corpos sociais. Estive uma eternidade como presidente da assembleia-geral. E porque se desligou?Tudo tem o seu tempo. Depois de mortos não guardávamos o jardim. Temos que ter a consciência dos limites que vamos atingindo.“As grandes empresas não são fábricas de esmolas”Durante 26 anos foi responsável pelas análises da água no concelho do Cartaxo. Como é que surgiu essa oportunidade?Havia muita febre tifóide. E o problema que se punha era o da contaminação das águas. A maior parte das câmaras não fazia controlo. Fui nomeado oficialmente para a Câmara Municipal do Cartaxo. No início fazia-se um tratamento da água com cloro, muito primitivo. Depois criaram-se os depósitos. A partir daí o tifo praticamente desapareceu. Nunca teve problemas?Um dia em Vale da Pedra houve uma infecção numa escola. A água era a mesma que seguia depois para Lisboa. Fui lá e a água estava de facto contaminada. Comunicou-se às Águas de Lisboa e foi resolvido.Como vê a concessão do sistema de abastecimento de água a privados?Lisboa tinha uma companhia privada que sempre forneceu água e teve laboratório. Pessoalmente considero-me mais liberal que socialista… Toda a gente diz que é preciso arranjar emprego. É verdade. Mas quem é que dá emprego? Quem tem dinheiro para investir. O Estado tem que ser dirigente e fiscal. Nos Estados Unidos quem falir faliu. O Estado não vai socorrer ninguém. E o Cartaxo tem conseguido captar empresas para esse propósito?Nada, nada. Algumas empresas fecharam, como a GM, no concelho vizinho de Azambuja. Algumas empresas de metalomecânica também se foram abaixo. Na sua perspectiva o que tem falhado na estratégia?As grandes empresas não são fábricas de esmolas. Trabalham na base do lucro. No sector dos carros, por exemplo, vêm peças lá de fora e aqui fazem-se coisas secundárias. O “cérebro” está todo lá de fora. Nas outras fábricas é a mesma coisa. Aproveitam a mão-de-obra. Quando propuseram aos operários da Auto Europa trabalhar ao sábado as forças comunistas não quiseram aceitar. A Alemanha é a maior força económica na Europa. Não lhes custa passar para lá as coisas…Teme pelo futuro dos jovens face a esta situação?São vítimas da situação económica. O português é tão inteligente como o estrangeiro. Trabalham lá fora sem problema. O que é preciso ter é investimento, que não tem acontecido muito.Uma história de amor que começou na pensão do CartaxoEle era um jovem licenciado em Ciências Farmacêuticas a trabalhar num laboratório de análises clínicas do Cartaxo. Ela, diplomada em Filologia Germânica, ocupava um lugar de professora no antigo colégio Marcelino Mesquita. Conheceram-se na pensão do Júlio, onde pernoitavam, longe da terra, no Cartaxo. Dois anos depois casaram. “Tenho saudades desse tempo. Achava uma certa graça aos donos da pensão. Na hora das refeições colocavam de um lado os doutores, como lhes chamavam, e de outro os professores primários, mas dávamo-nos bem uns com os outros”, conta Henrique dos Santos Silva. A pensão era ocupada por professoras do colégio e às segundas-feiras também por lá passavam advogados e juízes. “Fazíamos companhia uns aos outros e falávamos sobre todos os assuntos”. Cartaxeiro por convicçãoNasceu a 8 de Fevereiro de 1925 em Cabo Verde. A família de Henrique dos Santos Silva foi deslocada para a antiga colónia portuguesa, por força de uma missão do pai, oficial ao serviço do exército, mas o especialista em análises clínicas sente-se cartaxeiro. Ainda passou por Coimbra, cidade onde a família se fixou após o regresso à metrópole, mas pouco depois de ter chegado ao coração do Ribatejo para começar a trabalhar no laboratório de análises clínicas, naturalizou-se como cartaxeiro. Mantém o hábito de ler o diário francês “Le Monde” e acorda todos os dias às 06h30. Uma hora e meia depois está no laboratório para onde foi trabalhar depois de concluir o curso de ciências farmacêuticas, especialidade de análises clínicas, dividido entre a Universidade de Coimbra e do Porto, já lá vão há 57 anos.Ideologicamente posiciona-se à direita, mas recusou todos os convites que teve para ingressar na política. Classifica os bloquistas como sonhadores e os socialistas como perseguidores de uma utopia. “Como é que se ajudam os pobres? Dando-lhes emprego. Esta política começou com Marcelo Caetano que implantou Sines que tem hoje uma grande actividade industrial”, opina. Sente-se em permanente aprendizagem. Há dois anos, depois de ter ido a um congresso a Sevilha, implementou um método que ainda não estava a ser usado em Portugal. “Trouxe os apontamentos todos e estudei. Para fazer os cálculos pedi ajuda a um professor de matemática conhecido”, diz com o humor.Do lado direito e esquerdo do gabinete onde trabalha estão algumas das obras que já estudou. São livros de especialidade. Não lê romances. Folheia os livros de História à hora de deitar. O último foi “Príncipes de Portugal suas grandezas e misérias”, de Aquilino Ribeiro, sobretudo pela história de vida de D. Nuno Álvares Pereira, o patrono da infantaria portuguesa. Vai à missa sempre que pode e é apaixonado por fotografia. O sonho de ter filhos ficou por concretizar, fruto de um problema de saúde da esposa, mas ainda assim Henrique dos Santos Silva bateu-se por ajudar o Cartaxo a conseguir um espaço onde as mães pudessem deixar os filhos para ir trabalhar. No laboratório deu estágio a mais de uma centena de colegas e colaborou com o Hospital de Santarém no estudo de patologias. Aos 84 anos sente-se com energia para continuar a gerir o laboratório. Não dispensa a bata branca, a pose serena e a voz pausada. “A minha mulher costuma dizer: não sabes jogar cartas portanto não podes ir para a rua. Tenho amor a isto”.

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