Entrevista | 22-01-2010 12:12

O autarca astrónomo que detesta a ignorância

O autarca astrónomo que detesta a ignorância
Máximo Ferreira ainda está a adaptar-se ao trabalho autárquico, onde chegou completamente virgem ao nível da política. Divulgador da astronomia por todo o país, ascendeu na vida a pulso. Foi moço de recados numa metalúrgica aos 12 anos, sacristão e músico na adolescência, concretizou o sonho de ser electricista na Marinha e aposentou-se como professor universitário. Não abdica de ser o responsável pelo Centro de Ciência Viva de Constância. O trabalho é um vício para este homem que não consegue estar parado e que classifica a ignorância como uma fobia.Deve ser o único astrónomo presidente de câmara. Como é que surge na política autárquica?Nunca esteve nos meus projectos de vida ser autarca. O que me trouxe para aqui foi um conjunto de situações decorrentes de ser responsável pelo Centro de Ciência Viva (CCV) de Constância, dedicado à astronomia. Como é que o convenceram a ser candidato?Exactamente porque o CCV é um grande projecto em que me empenhei. Isso fez-me estar muito próximo do anterior presidente António Mendes. Estabelecemos uma certa cumplicidade nesse interesse de fazer tudo pela terra. Quando decidiu não se recandidatar colocou-me este desafio. Disse que havia alguns projectos por concretizar e que se queria garantir a viabilidade dos mesmos tinha de aceitar o desafio. Como reagiu?De início protestei um bocadinho, mas depois esses objectivos falaram mais alto e cá estou.Tem sido difícil a adaptação?Não. Menos difícil do que pensava. É um tipo de vida diferente e, sob certo aspecto, até mais calma do que a que tinha antes. Em que sentido?Porque quando estava apenas na astronomia havia uma série de instituições no país que me conheciam e era solicitado para fazer cursos, palestras a alunos, para fazer coisas na universidade. Embora o tema fosse sempre o mesmo, era em ambientes muito diferentes e implicava compromissos com entidades diferentes que me complicavam um bocado a vida. Até porque não sou muito metódico e às vezes apareciam coisas sobrepostas. E não tinha praticamente ninguém que me ajudasse a não ser a minha mulher em casa, que funcionava como secretária. Essas conferências, presumo, acabaram?Quase todas. Sou mais selectivo. Continuo a ser astrónomo e nunca se sabe o que vai ser o futuro. Tenho intenção de ficar na câmara pelo menos dois mandatos, porque no primeiro mandato não se vai conseguir fazer quase nada, apesar de algumas coisas estarem já encaminhadas e de pretender continuar o trabalho do executivo anterior. Mas há outras coisas que estamos a iniciar e que para serem feitas precisam de pelo menos dois mandatos. Depois disso quero ter saúde para continuar a trabalhar. Agora tem que participar também em inúmeros actos públicos, mas provavelmente terá de falar de outras coisas que não astronomia. Sente-se igualmente à vontade?Aí não me sinto tão à vontade. Ainda não tenho a linguagem normal dos políticos. E digo isto no bom sentido. Há assuntos que envolvem linguagens e termos que ainda não domino bem, por exemplo na área financeira. E se tenho de falar sobre isso tenho de me controlar um pouco para não se perceber que não sei muito. Mas tenho a permanente preocupação de ir aprendendo. Parece haver pouca apetência dos homens da ciência pela política. Porquê?Sentia isso antes. Achava que não tinha muito apreço pelas coisas da política. Em primeiro lugar por desconhecimento do que fazem as pessoas na política. Em segundo lugar, pela ideia, que entra em nossas casas através da comunicação social, de que os políticos não são pessoas muito sérias. Já mudou de opinião?Vou tendo uma ideia diferente e muito mais apreço pelos políticos que se dedicam ao trabalho autárquico. Sinto mesmo que isto é um serviço para os outros.Concorreu por uma coligação liderada pelo PCP. Revê-se nos ideais comunistas?Revejo-me na CDU e em particular na prática autárquica que conheço. Vivi muitos anos no Seixal, que tal como Sesimbra e Almada, nuns casos mais, noutros menos, são ambientes onde o trabalho da CDU pode ser considerado exemplar. Foi ou é filiado nalgum partido?Não. Após o 25 de Abril estive quase a filiar-me no Partido Socialista. Felizmente não o fiz, porque depois percebi que, do meu ponto de vista, ser filiado num partido implica uma certa disciplina mental que não tenho. Não consegue dizer “Ámen” a tudo.Não consigo. Mas percebo que para um partido funcionar seja preciso haver uma certa disciplina, que não sou capaz de cumprir.O modelo de desenvolvimento defendido por António Mendes ficou praticamente esgotado ao nível dos equipamentos, designadamente na zona ribeirinha, CCV, Parque Ambiental de Santa Margarida. Que apostas sobram?Nunca perguntei isso ao António Mendes, mas penso que ele não considerou o seu modelo de desenvolvimento esgotado. Falamos sobretudo ao nível dos grandes equipamentos.De qualquer das formas houve coisas pelas quais o António Mendes lutou que não estão realizadas. Como o açude no rio Zêzere, como a zona histórica onde é preciso continuar a trabalhar. Estamos a procurar quem nos faça um estudo de intervenção na zona histórica que envolva a parte anexa ao jardim-horto, o largo Cabral Moncada e a zona onde se pensa que pode ser feito o açude. No meio desta crise global, como estão as finanças do município de Constância?Estão bem, controladas.Esse é um discurso raro nos tempos que correm.É verdade. Se quisermos arriscar há um campo suficientemente grande para poder concretizar quase todos os projectos que temos em mente. Mas não queremos arriscar chegar ao limite do endividamento, até porque a construção dos centros escolares, que são coisas que temos de fazer e que são caras, implica 40 ou 50 por cento de comparticipação das autarquias. O que é muito. Um centro escolar de um milhão e meio de euros leva-nos o dinheiro que temos em cada ano para investimento.Revê-se na reivindicação de uma nova ponte sobre o Tejo no concelho, expressa pelo seu antecessor?Plenamente. Aliás tenho mudado ligeiramente o discurso. Queremos uma ponte com dignidade e com capacidade de trânsito. Se o Governo disser que a ponte que estava projectada não se faz, mas que a actual ponte pode ser alargada, então o que quero e pelo que vou lutar é que exista uma ponte que não faça as pessoas estar ali que tempos à espera para passar. Embora entenda que a melhor solução era a construção de uma nova ponte que servisse as pessoas, as empresas, a própria câmara e as unidades militares de Santa MargaridaA fábrica do outro lado do rio Tejo é uma espécie de mancha na paisagem. É um mal necessário. Sabemos que Constância chegou a ser proposta para prémios internacionais exactamente pela sua beleza e a proposta nem sequer avançou devido à existência da fábrica. Nesse aspecto temos pena que a fábrica esteja lá. Mas já lá está há muitos anos e é a maior empresa no concelho, quer em termos de produção, de impostos que paga à câmara e de emprego. Portanto não há nada a fazer. O que tem sido pedido é que a empresa coloque árvores sempre que possível para atenuar a agressão à paisagem.É muito interessante a ideia de ter um Centro de Ciência Viva em Constância mas às vezes a sensação que se tem também aqui é que o Camões está bem morto. E que Constância nunca teve uma ideia de ter a vila de Camões vivo. Que ideia é que tem desta questão dos equipamentos, até porque custam muito, de quem os vai utilizar, os custos, o pessoal…No Centro de Ciência Viva o que mais custa são os recursos humanos. A câmara deve ter gasto 20 por cento de todo o investimento. Em termos de recursos humanos funciona a 90 por cento com o apoio dos ministérios da Educação e da Ciência. A câmara tem 2 funcionários lá, em nove. Nos outros equipamentos é diferente.É verdade. Estamos a projectar uma modificação ao nível dos serviços do turismo que envolve mexidas nos recursos humanos, quer em quantidade quer em qualidade, exactamente para rentabilizar alguns equipamentos. A Casa-Memória de Camões não vai poder estar aberta em permanência, mas ficará acessível através do serviço de turismo. Quanto ao potencial de Camões como pólo de atracção…É nossa intenção criar aqui um segundo pólo de atracção de visitantes, para além das festas do concelho, que será pelo 10 de Junho, Dia de Camões.Já é habitual haver actividades ligadas à temática camoniana por essa altura.Temos intenção de manter e até alargar essas iniciativas e fazer um maior aproveitamento da figura de Camões e da quase certeza de que ele esteve cá. Criar um tipo de actividades um pouco diferente daquela do petisco e do copo.É curiosa a sua expressão acerca da quase certeza de que Camões esteve cá. Fica a sensação que há alguma relutância em assumir que o poeta viveu em Constância. Não é por ser uma pessoa de ciência, porque já o meu antecessor dizia a mesma coisa, mas quando não temos a certeza de uma coisa não devemos dizer que temos. É quase certo. Temos muitas razões para acreditar que Camões esteve cá. Já ouvi dizer em algumas zonas do país que Constância é a terra onde nasceu Camões. Eu costumo dizer que é quase certo que não nasceu lá e que é quase certo que viveu lá. O que temos é de cultivar Camões. Não tanto insistir que esta foi a terra dele, mas sim que viveu cá. E que, como foi uma pessoa importante, temos umas coisas que enaltecem a sua figura e espírito.O modelo das festas do concelho, pela Páscoa, é para manter?Vai continuar a ser seguido, incutindo algumas alterações mas não muitas. Achamos que têm um modelo razoável e só precisa de uma pitada de sal para não ser sempre a mesma coisa.O marinheiro que enjoava nos naviosMáximo Ferreira nasceu em Montalvo, aldeia do concelho de Constância, no seio de uma família humilde. Tem três irmãos. Os pais dedicavam-se à agricultura. Começou a trabalhar a um mês de completar 12 anos na Metalúrgica Duarte Ferreira, em Tramagal, onde o pai tinha entretanto ingressado. Começou como moço de recados. “Fazia de tudo um pouco”. Aos 14 anos, idade para começar a aprender um ofício, foi para a parte de mecânica ajudando também no sector administrativo. E recomeçou a estudar à noite em Abrantes. O seu sonho era ser electricista. Um sonho concretizado após se alistar aos 17 anos como voluntário na Marinha, onde serviu como militar durante 12 anos e mais 12 como civil. Como militar esteve nos submarinos durante quatro anos. Passou “semanas inteiras debaixo de água”, mas era à tona que tinha os maiores problemas, pois enjoava frequentemente. Escapou à guerra colonial porque era sempre o melhor dos cursos, condição que lhe permitia escapar à mobilização para África.Em 1972 deixa os submarinos e começa a dar aulas na Escola da Marinha em Vila Franca de Xira e a trabalhar no Planetário em Lisboa. O marinheiro vindo das profundezas começou a olhar para o céu com outros olhos. E nasceu a paixão pela astronomia. “Comecei a ter vontade de perceber aquilo”. Saído do quadro militar em 1976, passou a ser funcionário civil da Marinha como conferencista do Planetário. Em 1988, já licenciado em Física, passa para a Faculdade de Ciências, onde esteve até 2002, quando se aposentou. Actualmente frequenta uma pós-graduação em museologia, porque o saber nunca é de mais. Ou não considerasse ele a ignorância como uma “fobia”. A política é um mundo que nunca o atraiu e onde caiu de pára-quedas. Considera-se um homem independente, com dificuldade em dizer “Ámen” a tudo o que os catecismos partidários defendem. As convicções religiosas foram mudando com o andar dos anos. Foi sacristão na adolescência, ateu no início da idade adulta e actualmente diz-se agnóstico. No futebol, é benfiquista “mas não muito sofredor”.A música é outra das suas paixões. Aprendeu música em criança com um mestre da sua terra e tocou saxofone alto na banda de Rio de Moinhos. No último Natal deu como prenda a si próprio um saxofone, para ir praticando sempre que pode. Porque os tempos livres não são muitos e quase todos dedicados aos astros. Tem um observatório em casa. Diz que não é capaz de estar parado e confessa que o seu vício é o trabalho.Aponta como livros de referência “A melodia secreta”, do vietnamita Trinh Xuan Thuan, que narra a evolução, através dos séculos, da visão que o homem tem do Universo, e “O museu desaparecido”, de Héctor Feliciano, que descreve o saque de obras de arte efectuado pelos nazis na segunda guerra mundial. “Contacto”, filme onde Jodie Foster faz o papel de uma astrónoma que busca sinais claros da existência de vida extraterrestre, foi um dos que mais gostou.Vive com a companheira na margem sul do concelho de Constância. Tem um casal de filhos, um geólogo e uma engenheira do ambiente, e duas netas. “Fico zangado quando me confundem com um astrólogo”Fica zangado quando confundem um astrónomo com um astrólogo?Fico muito zangado. Mas controlo-me (risos)... É frequente apresentarem-no como astrólogo?Já me aconteceu algumas vezes. Mas como já vou sendo conhecido, e as pessoas sabem desta minha aversão à ignorância, agora já têm algum cuidado. Nas primeiras vezes que ia às escolas fazia um grande esforço para explicar que a astrologia não é uma ciência. Durante algum tempo tentei combater isso. Ia a debates à televisão e dizia muito mal da astrologia. Depois fui percebendo que não se modificam as cabeças nem as convicções carregando num botão. Percebo que se puserem na mesma página de jornal um artigo de astronomia e um horóscopo as pessoas vão ler o horóscopo. Mesmo as pessoas que não acreditam naquilo. Isto é cultural. Mudou de estratégia quando aborda o assunto.Passei a controlar-me, falo com suavidade, e vou tentando que vão, de forma simples, percebendo a astronomia. Daqui a 20 ou 30 anos já não estou cá. Mas se houver meia dúzia de pessoas que percebeu que a astronomia é uma ciência em que há coisas que sabemos e explicamos e outras que não sabemos, vou para o céu. Morro de consciência tranquila.A astrologia é uma fraude?Pensar que a astrologia explica as coisas é uma fraude. Vendo-a como uma coisa que funciona como terapia, é como qualquer outro tipo de fé. Fui-me habituando a ter algum respeito pela fé que as pessoas têm. E fico satisfeito se lhes puder dar alguns conhecimentos que as façam acreditar mais em si próprias do que em qualquer coisa que não depende delas. Acreditar na astrologia é mais ou menos como acreditar que há vida em Marte.É pior. Porque há alguma probabilidade de haver vida em Marte. Como é que explica a uma criança da escola primária, numa das suas palestras, que quem criou o universo não foi Deus.Se a criança já vier com isso metido na cabeça tenho mais cuidado. Não vou afrontar aquilo que está na sua cabeça. Digo-lhes que essa é a maneira como as pessoas que acreditam em Deus explicam. E que os cientistas explicam isso de outra forma. Isso pode gerar um conflito terrível na cabeça de uma criancinha.Mas honestamente não posso fazer outra coisa. Aliás tenho um bom exemplo: um dos mais notáveis físicos nucleares portugueses é padre. Quando entrou para o curso de Física já era padre. Saía da Faculdade de Ciências e ia dar missa à Igreja de São Mamede, que é ao lado. Separava as coisas. Quando acreditava em Deus não pensava em Física. Quando pensava no núcleo dos átomos estava a ser materialista.Quando é que o antigo sacristão deixou de acreditar em Deus?Foi violento. Aos 15 ou 16 anos passei a encontrar certas incompatibilidades entre a figura de um Deus e uma série de coisas que via no dia-a-dia. As pessoas que morrem de fome, as crianças que morrem de doenças… E isto não tinha nenhuma doutrina política por detrás. A ideia de um Deus castigador tirou-me muitas horas de sono. Dos 17 aos 20 e tal anos fui mesmo um ateu feroz. Depois passou-me. Neste momento sou um agnóstico. Respeito as religiões e a fé das pessoas.

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