Entrevista | 07-08-2013 16:54
“Quando vivemos no meio da guerra é impossível não ver a vida com outros olhos”
Maria Palha vai para os locais onde a maioria das pessoas não quer estar. Esteve na Líbia quando rebentou a revolução da chamada “Primavera Árabe”, deu apoio aos desalojados das cheias do Rio de Janeiro e ajudou a população que sofreu com o violento terramoto na fronteira da Turquia com o Irão, em 2011. A jovem de Vila Franca de Xira conseguiu concretizar o sonho de integrar a equipa dos Médicos Sem Fronteiras e diz que é um ‘bichinho’ ter que ajudar quem mais precisa. A psicóloga clínica contou algumas das suas experiências a O MIRANTE na véspera de partir para a Síria, naquela que considera ser a sua missão mais arrojada.
Maria Palha sempre teve o sonho de integrar a equipa dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) para poder ajudar quem mais precisa em cenários de guerra ou catástrofes naturais. No entanto, não sabia como lá chegar porque tinha uma certeza: não queria seguir medicina. O desejo ficou adormecido e até chegar àquela organização de ajuda humanitária ainda teve outras experiências na área do voluntariado.Licenciada em Psicologia Clínica, Maria Palha, 31 anos, trabalhava em Portugal na área dos recursos humanos quando recebeu uma proposta tentadora da empresa onde trabalhava para passar a efectiva e com excelentes condições de trabalho. A jovem, natural de Vila Franca de Xira, sempre teve espírito aventureiro e gostava de poder fazer voluntariado e sabia que se aceitasse aquela proposta de trabalho nunca mais teria essa oportunidade.Recusou um emprego estável e nessa noite girou, à sorte, um pequeno globo que tinha em casa. O local onde o seu dedo calhasse era o país para onde iria fazer voluntariado na sua área. Moçambique foi o destino que lhe calhou em sorte. Contactou duas vezes o Hospital Central de Maputo para iniciar a sua missão mas foi-lhe sempre dito que não tinham vagas. Decidiu fazer as malas e “bateu à porta” do hospital pedindo que a deixassem trabalhar em regime de voluntariado. A persistência valeu a pena e Maria Palha ficou a trabalhar, em regime de voluntariado, como psicóloga clínica. A experiência no hospital prolongou-se por seis meses. Entretanto, ficou a coordenar um projecto relacionado com orfanatos naquele país durante seis meses.Em 2007 concorre aos Médicos Sem Fronteiras e concretiza o seu sonho. A primeira missão foi no Zimbabwe, no meio do mato, a dar apoio psicológico à comunidade local no âmbito do projecto HIV-SIDA. O consultório médico era debaixo de árvores, umas vezes com tenda, outras ao ar livre. A missão durou um ano e foram muitas as vezes que comeu galinha com tomate. “Às vezes comíamos chocolates que trazíamos da capital e comer uma pizza era uma excitação enorme. Olhando para trás acho que fui muito corajosa”, recorda. Confessa que houve alturas em que teve vontade de desistir mas o apoio da família, com quem falava com frequência através da Internet, foi muito importante para levar até ao fim esta missão.Depois da experiência africana resolveu que passaria a fazer apenas missões de emergência. Ficar menos tempo nos locais e actuar mais rapidamente. Integrou a missão de apoio aos afectados pelas cheias na região serrana do Rio de Janeiro (Brasil). Em 2011 esteve na Líbia, durante a revolta da “Primavera Árabe” [ver caixa] e foi dar apoio a quem perdeu tudo com o violento terramoto que atingiu a fronteira da Turquia com o Irão, também em 2011.Uma experiência que nunca vai esquecer e onde achou que ia mesmo morrer. Apesar de ser Inverno e dos 20 graus negativos, Maria Palha dormia numa tenda porque a partir da primeira réplica que vivenciou não se sentia segura dentro de casa. “Nunca tinha passado por um terramoto e pensei que as réplicas não fossem tão fortes. Quando senti a primeira réplica estava dentro de casa, a dormir, e achei que ia ficar ali debaixo. Tive mesmo muito medo naquela noite”, confessa.Há um ano esteve em Caxemira (Índia) na fronteira com o Paquistão, no pós-conflito entre os dois países. A entrevista com Maria Palha realizou-se na véspera da sua viagem para a Síria onde, durante o próximo mês e meio, vai implementar o departamento de saúde mental. A psicóloga clínica considera que esta vai ser a sua experiência mais arrojada uma vez que vai estar a apenas 15 quilómetros da frente de batalha. Na véspera da partida não escondia a ansiedade. O objectivo é apoiar as mães e grávidas cujos maridos estão na guerra.Maria Palha diz que é impossível não alterar a maneira de ver o mundo depois de presenciar a vida em cenários de guerra, catástrofes e situações precárias. “Nós vivemos no paraíso, numa bolha, e não temos noção do que as pessoas realmente sofrem com a guerra e grandes catástrofes naturais”, afirma.A marcante experiência na LíbiaDe todas as missões que integrou confessa que a da Líbia foi a mais marcante. Quando chegou a Misrata, a cidade estava toda destruída. Maria Palha não esquece Hasma, uma jovem de 23 anos que foi fundamental para que o seu trabalho na Líbia fosse bem sucedido.Hasma sofria de leucemia e tinha perdido os seus medicamentos durante a guerra, que lhe destruiu a casa. A sua família eram três mulheres e sete homens, um deles com onze anos, e estavam todos na frente de batalha, ninguém sabia do seu paradeiro. “Apesar de toda a angústia e sofrimento por que estava a passar, a Hasma disse-me que não podia deixar de me ajudar a ajudar a sua comunidade. Foi minha tradutora e sem ela não teria conseguido chegar às pessoas como cheguei”, recorda.A aventura na Líbia durou quatro meses mas Maria não se veio embora sem conseguir que Hasma fosse para a Tunísia fazer o tratamento de quimioterapia. Ainda hoje comunicam e a psicóloga sabe que a sua tradutora voltou à Líbia e que está “muito melhor” de saúde.No entanto, nem tudo foi bom durante a experiência libanesa. Maria Palha teve que dar apoio psicológico aos prisioneiros defensores de Kadhafi [líder do país, deposto em 2011 com o golpe de Estado]. “Eles diziam que tinham violado centenas de mulheres e que não se arrependiam de o terem feito e eu tinha que lhes dar apoio psicológico. Foi muito difícil ter que me abstrair de tudo e fazer o meu trabalho. Chegava a casa muito revoltada”, confessa.Apesar de tudo, Maria nunca vai esquecer os três meses que passou na Líbia. Sentiu-se útil à população numa época de mudança histórica do país. As pessoas iam ter consigo e pediam-lhe para contar como era viver num país livre. “Queriam aprender a trabalhar na Internet, estavam sedentas de informação. Fui muito bem acolhida”, conclui.A vantagem de usar burkaDurante a estada na Líbia Maria Palha aprendeu muito. Em conversa com as libanesas, a psicóloga dizia-lhes que achava que o facto das mulheres usarem burka [veste feminina que cobre todo o corpo incluindo o rosto, deixando apenas os olhos à mostra] era uma submissão em relação aos homens e falta de liberdade. Maria Palha aprendeu que muitas mulheres usam burka por vontade própria. “Elas diziam-me que ao usar burka as vizinhas não iam ver que se estavam despenteadas; se não usassem burka não podiam fazer os seus flirts sem o marido perceber. Elas diziam-me que eu é que não era livre porque tenho que estar constantemente a adaptar-me ao espelho social que existe e que isso não é justo. Foi uma experiência incrível”, revela.Uma ribatejana que não gosta de corridas de toirosMaria Palha nasceu a 3 de Fevereiro de 1982. Os natais sempre foram passados com toda a família em Vila Franca de Xira. Cresceu junto à lezíria ribatejana, na casa dos pais, na recta que liga Porto Alto a Alcochete. A infância e adolescência foram passadas em Benavente, Samora Correia e Santarém.Vive em Lisboa mas recentemente construiu casa perto da dos seus pais, embora nos últimos tempos não tenha conseguido lá ir tanto quanto gostaria. Solteira e sem filhos diz que essa é a desvantagem de ter uma vida profissional tão agitada. Um dos seus sonhos é ser mãe. Está a tentar criar condições para passar mais tempo em Portugal. Quando está no nosso país dá consultas de psicologia clínica em Lisboa.Os Médicos Sem Fronteiras são uma associação humanitária criada há 40 anos. Ao todo são apenas nove os portugueses que integram a associação. Um dos objectivos passa por abrir uma sede da organização em Portugal. Apesar de ser ribatejana, oriunda de uma família aficionada e de ter um irmão toureiro [Francisco Palha], Maria confessa que não é muito adepta da festa brava. “Fico sempre dividida se hei-de ir às corridas apoiar o meu irmão ou se vou para a bancada dos Verdes [partido político que é contra a festa brava]”, brinca.
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