Entrevista | 04-02-2016 10:54

Um actor ribatejano a caminho do Festival de Cinema de Berlim

Um actor ribatejano a caminho do Festival de Cinema de Berlim

Isac Graça tem 24 anos, é de Alverca e um percurso que já começa a dar que falar, quer no teatro, quer no cinema e televisão. À conversa com O MIRANTE fala do facto da cultura continuar a ser o parente pobre no país, da disputa de apoios e da falta de cooperação entre grupos de teatro do seu concelho.

Não há demasiados grupos de teatro no concelho de Vila Franca de Xira. A certeza é de Isac Graça, actor de 24 anos, de Alverca, que integra o elenco do filme “Cartas da Guerra”, que vai estar em competição no Festival de Cinema de Berlim em Fevereiro. Para o jovem actor, a diversidade de grupos é importante para o crescimento dos actores e dos espectadores, promovendo o autoconhecimento e o desenvolvimento da comunidade. “Há muita gente interessante a fazer um bom trabalho aqui no concelho, sobretudo no teatro amador. O José Telles (Teatro do Zero) é um bom exemplo e uma das minhas referências locais”, considera.No entender do actor alverquense é má ideia tentar unir todos os grupos num só. “Isso ia matar a diversidade e a criatividade, há público para todos. Haver muitos grupos dinamiza a concorrência, tentamos sempre fazer melhor que o nosso rival”. Isac lamenta a falta de cooperação entre os grupos mas considera isso “natural”, notando que o ser humano é “territorial”. Já sobre a luta entre a Inestética e o Cegada pelos apoios da câmara tem uma opinião diferente. “É um disparate. A Inestética faz um tipo de espectáculos e o Cegada faz outro. Se o Inestética tem apoios é por mérito próprio, porque se organiza bem, é inteligente no tipo de programação especializada que apresenta. O Cegada é mais plural, faz coisas mais diversificadas. As pessoas que conheço lá são muito organizadas também, inteligentes e cooperantes, mas não têm apoios. Se calhar é apenas uma questão de injustiça por parte da câmara”, critica.O gosto de Isac pelo teatro surgiu ainda na juventude, enquanto estudava na Secundária Gago Coutinho. Integrou o Pancadinhas, o grupo de teatro da escola, e ainda passou por grupos amadores de Vila Franca e Alverca - Zero e Cegada. Decidiu licenciar-se em teatro e já é profissional há cinco anos. “Não há magia nenhuma no teatro, há dias em que acontecem coisas estranhas, quase sobrenaturais, na maioria das vezes é apenas tentar fazer o melhor trabalho possível”, confessa. Ser actor a tempo inteiro ainda não é profissão e não paga as rendas de casa. “Não dá para viver do teatro, a maior parte das pessoas tem dois empregos, muitos actores da nossa praça fazem teatro e novela ao mesmo tempo para se conseguirem sustentar”, lamenta. Nesse campo os pais de Isac são o seu porto-de-abrigo. Sempre apoiaram o filho no seu sonho de ser actor e sempre que precisa é a eles que recorre. “Neste momento estou numa fase de transição. Tive uma série de projectos no Teatro da Cornucópia que foram catalisadores de muito conhecimento enquanto ser humano e actor mas ao mesmo tempo foram exaustivos e decidi mudar de rumo. Agora estou numa série de projectos: vou fazer um espectáculo na Comuna com outros jovens actores que se chama ‘in vazio ou a autoridade mundial em solidão’ e a preparar o lançamento de uma revista que é uma espécie de magazine cultural, chamada Napoleão”, revela.Para Isac Graça, a representação permite que as pessoas olhem para o mundo e as suas próprias vidas de uma outra perspectiva. “É uma espécie de auto-análise que o público faz. Há quem se aperceba disso e outros que só vão ao teatro apreciar a estética do trabalho. Mas depois há também pessoas especiais que se revêem em alguma coisa, o chamado efeito espelho. Revêem-se na crueldade das palavras e das relações. A crueldade é uma palavra muito importante em teatro. O teatro dá-nos conta da crueldade do mundo e da crueldade que é ser um ser humano e viver as suas diferentes etapas”, refere. O futuro da cultura são os jovensPara Isac Graça estão a chegar grandes lufadas de ar fresco ao panorama cultural português, pelas mãos das jovens gerações. “Há grupos novos de teatro a aparecerem por todo o país, novos realizadores com ideias frescas e grupos antigos de teatro a chamarem jovens para se renovarem, estamos a criar uma geração muito interessante. Só precisa que olhem para ela. A verdade é que a cultura num país pequeno e sem grande tradição artística é sempre o parente pobre. Provavelmente há-de continuar a ser. Mas depois é aí que se separa o trigo do joio: haverá os que vão continuar e se continuarão a desafiar a si próprios, e os que vão ficar pelo caminho”, antevê.Nos últimos cinco anos Isac Graça fez cinco longas metragens, que estão ainda em pós-produção. A primeira a chegar às salas é a de Ivo M. Ferreira. Mas trabalhou também com Rita Azevedo Gomes e três realizadores estreantes que, garante, vão dar que falar: Paulo Alexandre Mota, Pedro Cabeleira e Tiago Durão.A caminho de Berlim Isac Graça ainda não viu o filme em que participou. Vai, com o restante elenco, ver o filme no Festival de Berlim. “Estou muito curioso, o Ivo é um realizador muito inteligente e sensível, toma liberdades em relação ao material textual, que é o livro do António Lobo Antunes, e usa o que os actores propõem e faz um casting muito preciso de quem é que quer no filme. Foi uma experiência muito positiva”, refere. Para o jovem actor ter o privilégio do filme estar em competição, só por si, já é um feito “inacreditável”. O filme “Cartas da Guerra” é produzido pela O Som e a Fúria e é uma adaptação do livro “D’este viver aqui neste papel descripto”, de Lobo Antunes, que reúne cartas do escritor assinadas no período em que serviu o exército português na guerra colonial. Isac Graça partilha o écran com Miguel Nunes, Margarida-Vila Nova, Ricardo Pereira, João Pedro Vaz e Simão Cayatte. “Cartas da guerra” só estreia em Portugal no segundo semestre deste ano. O Festival de Berlim decorre entre 11 e 21 de Fevereiro.Trabalho é o motor da humanidadeIsac Graça nasceu em Lisboa mas vive desde a infância em Alverca, no bairro da Chasa. Começou no teatro mas já fez papéis também para televisão na SIC Radical e mais recentemente no cinema. Gosta de ocupar os tempos livres a trabalhar, por acreditar que o trabalho “é o grande motor da humanidade”. Gosta de representar e aprender sempre qualquer coisa com as personagens que retrata. Bette Davies é a sua grande modelo feminina. Luís Miguel Cintra e André Teodósio são outros dois nomes que são referências. Diz que o teatro está a desabrochar mas não esconde o seu desejo de sair do país. “O meio é muito pequeno em Portugal e sou um rapaz um pouco nómada, não consigo ficar muito tempo no mesmo sítio. Sinto-me um cidadão do mundo”, conta. França ou Inglaterra deverão ser os seus destinos.Gosta de viver em Alverca, uma cidade “com cheiro a vila” e que tem crescido muito. “É uma espécie de refúgio. Lisboa é caótica, as pessoas são muito complicadas, há muita competitividade. Sinto que tenho aqui sempre um sítio para voltar. Haja o que houver voltarei sempre aqui, à pacatez da cidade, ao miradouro da Chasa para ver as montanhas e Arcena. Alverca é a minha cidade e é uma boa cidade para viver”, conta. A proximidade da linha de comboio é uma vantagem. “Excepto quando a CP anda com greves, problemas e atrasos. Já me lixaram a vida muitas vezes. Um dia estava a estrear um espectáculo no teatro nacional e o comboio parou entre Santa Iria e a Bobadela. Devia estar lá uma hora antes para me preparar. Acabei por chegar dois minutos antes do espectáculo começar, a suar em bica. Mas foi um grande dia”, recorda. A falta de coragem e o descomprometimento tiram-no do sério. “O maior problema do mundo é não seguirmos a nossa intuição quando nos diz que temos de abandonar determinadas coisas, cortar com coisas que temos de cortar e lançarmo-nos a outras coisas quando temos de avançar”, refere.Está a ler “Lunário”, de Al Berto. “Um artista não é um eremita. No processo de criação tens de fazer as duas coisas, estar com o mundo porque é o teu material de trabalho, mas tens de estar contigo e isolar-te no grupo com quem trabalhas, para poderes criar. Toda a gente pode ser um artista, mas tem de ter gosto, motivos, persistência e capacidade para criar algo”, defende. É benfiquista, ouve de tudo um pouco e sonha vir a passar alguns meses no sudoeste asiático.

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