Opinião | 02-02-2017 20:12

Governança & Cidadania: papel das autarquias

Em ano de eleições autárquicas, o tema da reorganização administrativa, bem como a baliza de responsabilidades de cada um dos níveis da administração do Estado, naturalmente, voltará a estar em cima da mesa. A questão é saber se o Estado se organizará, tendo em conta os interesses dos cidadãos ou se teima em continuar a ser ajuizado apenas de cima-para-baixo, ou seja, sem ouvir as populações.

Durante 48 anos de ditadura, até à revolução de Abril de 1974, os presidentes de Câmara Municipal e os Regedores de freguesia (atualmente presidentes de Junta de freguesia) eram nomeados pelo governo central, ao abrigo do Código Administrativo (1936-1940), elaborado por Marcelo Caetano. Estavam sujeitos a uma apertada tutela administrativa e dependiam exclusivamente das transferências de verbas do Estado.

Após a revolução de Abril de 1974, de acordo com a Constituição em vigor desde 2 abril de 1976, os presidentes de câmara municipal e os presidentes de Junta de freguesia são eleitos diretamente, por sufrágio direto e universal, pelos cidadãos. As atribuições das autarquias locais passaram a ser exercidas em plenitude e exclusividade, mesmo que por delegação, apenas admitindo que o Governo exerça a tutela administrativa sobre as autarquias locais e suas associações, desde que não ponha em causa a característica de autonomia pela qual se deve pautar toda a vida autárquica.

A administração pública estrutura-se em três níveis: (1) Administração Direta do Estado que integra todos os órgãos, serviços e agentes integrados na pessoa coletiva Estado, sob dependência hierárquica do governo; (2) Administração Indireta do Estado que integra as entidades públicas, distintas da pessoa coletiva “Estado”, dotadas de personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira; (3) Administração Autónoma que integra entidades que prosseguem interesses próprios das pessoas que as constituem e que definem autonomamente e com independência a sua orientação e atividade, incluindo-se neste nível a administração regional (regiões autónomas da Madeira e dos Açores), a administração local (municípios e freguesias) e as associações públicas (pessoas coletivas de natureza associativa, criadas pelo poder público).

O crescimento populacional, sobretudo no Litoral, com os consequentes aumentos de assimetrias devido à concentração de pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles, promoveu um conjunto de mudanças, resultantes da circulação de pessoas na procura de melhor qualidade de vida, desencadeando um novo mosaico habitacional, com alteração dos hábitos sociais, bem como do sentido dos limites geográfico-identitários das comunidades.

Atualmente, em Portugal, existem 308 municípios, 3.091 freguesias, 23 Comunidades Intermunicipais (CIM), 2 Áreas Metropolitanas (Lisboa e Porto), 40 associações de municípios para fins específicos, 33 serviços municipalizados e empresas municipais e 247 intermunicipais. As entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), associações de freguesias e de municípios de fins específicos constituem o universo do associativismo autárquico, cuja disciplina legal consta do anexo I da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (título III - artigos 63.º a 110.º). Estas entidades têm a natureza de associações públicas de autarquias locais.

Constata-se que a organização político-administrativa do território, apesar das diversas tentativas de alteração (experiências atrás de experiências), teima em manter-se como uma estrutura de decisão muito vertical, limitadora da ação, sem visão prospetiva e sem apresentar, no seu horizonte, às gerações futuras, uma prerrogativa de opções para o desenvolvimento; apenas se tem traduzido numa disparidade de instrumentos de gestão, por vezes sobrepostos, com múltiplas tutelas que não cumprem com os requisitos de uma informação clara e da necessária celeridade e elasticidade na decisão, como é desejável, numa sociedade eficiente e democrática.

Esta complexidade, por um lado, oriunda de interesses diversos entre a administração local e a administração central e, por outro, dos desafios da sustentabilidade e dos efeitos da globalização sobre as pessoas, torna importante percecionar, na ótica da comunidade local, qual o modelo político-administrativo mais adequado para o país.

Por um lado, as comunidades locais são, por excelência, os espaços onde as dinâmicas ocorrem, mas elas próprias estão a mudar rápida e intensamente, obrigando a procurar novos conceitos que permitam resolver os processos antagónicos que ocorrem nas grandes aglomerações populacionais. Por outro lado, os processos de globalização têm provocado grandes mudanças, evidentes em sectores como o ambiente, a alimentação e os fluxos migratórios.

Para alcançar um desenvolvimento sustentável é necessário inverter esta lógica, para uma outra, norteada pela identificação, otimização/racionalização dos seus ativos e recursos estratégicos, em projetos que garantam eficiência e sustentabilidade económica e social, numa perspetiva de médio e longo prazo. A não atenção a todas estas perspetivas, a história passada e presente assim nos conta, tem originado que países, concelhos e cidades atravessem períodos prolongados de debilidade económica: desequilíbrio comercial, dívidas cada vez maiores, inflação elevada e desemprego.

Segundo Manuel Castells, tendo em conta as novas tendências económicas e sociais, uma das alternativas para a reconstrução da democracia, passa pela recriação do “Estado Local”, nomeadamente através de uma maior descentralização e participação dos cidadãos, afirmando que “as mais poderosas tendências de legitimação da democracia, durante os anos 90, estão a ter lugar em todo o mundo, a nível local” (Castells, 2004). Também se mantém atual o pensamento de Ernâni Lopes, ao afirmar que é preciso que estas (autarquias) sejam os “motores da transformação e os centros de racionalidade do desenvolvimento económico e social sustentável” (Lopes, 2011). Mas, a responsabilidade de conseguir uma forma de vida sustentável é universal, envolve cada cidadão e requer que toda a sociedade aceite e intervenha nesse esforço de mudança.

Em ano de eleições autárquicas, o tema da reorganização administrativa, bem como a baliza de responsabilidades de cada um dos níveis da administração do Estado, naturalmente, voltará a estar em cima da mesa. A questão é saber se o Estado se organizará, tendo em conta os interesses dos cidadãos ou se teima em continuar a ser ajuizado apenas de cima-para-baixo, ou seja, sem ouvir as populações.

Lembro que o Estado não é ‘proprietário’ das pessoas (como acontecia na ditadura), antes pelo contrário, são as pessoas os ‘proprietários’ do Estado. Acho que a resposta dependerá muito do modelo de discussão que o Governo e partidos políticos nos irão propor e, sobretudo, da ação ou da passividade das pessoas (cidadãos-eleitores).

Fev.2017

José Fidalgo Gonçalves

Investigador Católica-CESOP, Lisboa

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