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“Se dependesse do dinheiro que ganhei como médico andava a pedir esmola”

“Se dependesse do dinheiro que ganhei como médico andava a pedir esmola”

Arquimedes Silva Santos, médico, professor e escritor no Movimento Neo-Realista

A polícia política interrompeu-lhe o curso de Medicina em Coimbra mas o homem das artes, que recebeu o nome do filósofo grego, não baixou os braços e lutou por aquilo que queria. Na casa da Póvoa de Santa Iria, onde atendeu milhares de doentes durante meio século e privou com Alves Redol e Bernardo Santareno, o poeta abriu o livro de memórias e confessou a desilusão com o rumo do País e do Mundo “que caminha para o abismo”. Aos 86 anos, Arquimedes Silva Santos é uma referência cultural e de vida num país que o esqueceu. “Continuo a ser marginalizado”, diz.

Com 86 anos e uma vida cheia de memórias, que visão tem da Humanidade? Devo dizer francamente que desde há muitos anos estou fora deste mundo. As frustrações têm sido tantas que me sinto excluído e desorientado com tanta coisa que se está a passar. Há muito que me escapa mas, pelo que vejo, o mundo caminha para o abismo. O que é que ainda lhe falta fazer?Com esta idade quero viver mais um ano, ou dois, com a minha mulher, as minhas filhas e os meus netos. Espero que a humanidade encontre o caminho para se salvar dos seus muitos problemas do terrorismo ao aquecimento global.Tem alguma relação com as novas tecnologias?Não tenho computador e nunca entrei na Internet porque não me interessa. A minha formação foi feita por outros meios, com estes milhares de livros que aqui tenho. Isso não quer dizer que não concordo com as novas tecnologias. Elas são importantes.Estes livros são o reflexo da sua vida…Por vezes olho para eles e interrogo-me se valeu a pena ter lido e estudado esses milhares de livros. Isto tudo espremido o que é que deu? Não voltaria a fazer o mesmo percurso?O mesmo não faria. Faria de outra maneira. Perdi muito tempo a tentar descobrir sei lá o quê.A sociedade desperdiça o conhecimento e a sapiência dos mais velhos. É raro um jovem estudante pedir-lhe ajuda…Eu julgo que a aproximação aos jovens deve ser feita com laços afectivos. É na aproximação das pessoas que se partilha conhecimento e experiências. Fui professor e interessei-me sempre pelos meus alunos e pelos seus problemas.Em 1949 interrompeu o seu curso de Medicina em Coimbra porque foi preso. Recorde-nos esse momento?Estava a acabar o curso, já nas últimas cadeiras. Numa madrugada, bateram à porta e levaram-me para a prisão da polícia onde me mantiveram como uma estátua. Depois vim para Lisboa, para o Aljube, segui para Caxias e mais tarde fui julgado e condenado a ano e meio de prisão. Recorri e tive a mesma condenação. Foram três anos muito difíceis, que nem gosto de lembrar. Fui privado dos meus direitos pessoais e políticos e fui posto à margem, até hoje. Nem me deixaram sair do País quando quis ir para o Brasil, para África e para França.Foi posto à margem pelas entidades oficiais?Nunca fui convidado para nada. Só depois do Marcelismo fui convidado para ser professor.Ainda está marginalizado?Como médico fui sempre marginalizado. Havia uma fábrica com muitos operários que estavam proibidos de vir aqui quando tinham as suas doenças.Mas atendeu milhares de doentes de toda esta região?Atendi e ajudei milhares de doentes neste consultório. Fiz clínica geral durante noite e dia numa vasta área dos concelhos de Loures e Vila Franca de Xira e durante 50 anos. Comecei na Lousa (Loures) e vim para a Póvoa em 1957.Como é que se deslocava a casa dos doentes?Quando vim para aqui não tinha carro e deslocava-me nos carros de aluguer. Só que às vezes não havia táxis disponíveis e houve até situações muito complicadas. Pode partilhar alguma connosco?Um dia recebi uma chamada do Quintanilho (Vialonga) para acudir a um doente. Não havia táxi e quando consegui o táxi fui logo para lá. Mas era tarde…a pessoa já tinha morrido. Tenho a certeza de que se tivesse carro, teria ajudado a salvar aquele doente.Foi muito doloroso saber que alguém morreu por falta de um meio de transporte. A maioria dos seus doentes eram pobres, mas nunca deixaram de ser consultados…O dinheiro nunca foi importante na minha vida. Eu perdi esta casa onde estamos por isso. Arranjaram-me aqui uma estrangeirinha e acabei por perde-la. Trabalhou 50 anos como médico sem fazer fortuna?Vou dizer isto pela primeira vez em público…Se dependesse do dinheiro que ganhei como médico andava a pedir esmola. A minha salvação foi o dinheiro que ganhei como professor e como funcionário da Fundação Gulbenkian. Nessa altura respirei um bocadinho e, com a ajuda da minha mulher, equilibrei a minha vida.Como médico estive sempre à margem. Nunca ganhei dinheiro que se visse.O doutor foi pioneiro na área da Psiquiatria infantil em Portugal?Isso foi outra loucura. Quando era estudante em Coimbra pensei que deveria seguir a Psiquiatria porque Portugal era um país de doidos. No quarto ano pensei que gostava de fazer Psiquiatria Infantil, mas não havia nenhum curso nesta área em Portugal. Um dia vi a revista francesa Infance e comecei-me a interessar. Comprei dezenas de livros e fiz-me Psiquiatra Infantil como auto-didacta. Mais tarde fiz a especialização em França.Como é que surgiu essa oportunidade?É curioso, foi o Alves Redol que me ajudou. Um dia encontrei-me com ele e contei-lhe as minhas dificuldades e disse-lhe que o único médico especialista em Portugal era João dos Santos que tinha estudado em França com Henri Wallon (médico e filósofo francês que era director da revista Infance e vulto da Psiquiatria Infantil), mas que não tinha meio de chegar a ele. O Redol diz-me: “O João dos Santos é muito meu amigo”. No dia seguinte estávamos os três na casa do Redol e o João dos Santos convida-me para ir trabalhar como Psiquiatra das crianças no Hospital Júlio de Matos. Lá conheci um grupo de médicos e pratiquei a teoria que já tinha aprendido. Depois fui para o Instituto de Psicologia tirar o curso de Psiquiatria Infantil. Quando regressei fui para o Instituto Costa Ferreira, que apoiava crianças. Foi um médico que se transformou num professor dedicado?Foi um percurso complicado. Nunca pensei ser professor e foi a vida que me levou para o ensino. Apesar de ter tirado o curso de Ciências Pedagógicas ao mesmo tempo que estudei Medicina com a intenção de vir a ser médico escolar.Foi responsável pela criação Escola Superior de Educação pela Arte do Conservatório?Foi uma experiência inovadora na formação de professores para a educação com as artes que teve um final triste. Foi encerrada pelo Ministro da Educação, Vítor Crespo na década de 80…Ele achava que a escola não tinha lugar no conservatório porque não fazia sentido ensinar professores. Propôs uma alternativa na Escola Superior de Educação, mas até hoje nunca nos deram uma satisfação.Foi uma perda significativa na sua vida?Foi um desgosto profundo.Tem nome de um cientista grego. Arquimedes é um nome de peso?Devo-o ao meu pai que era um homem pragmático e resolveu chamar-me Arquimedes. Tive de carregar com este nome até hoje com dificuldades que nem calcula. Vivi na zona de Aveiro e na aldeia nem sequer sabiam pronunciar o meu nome e chamavam-me nomes muito esquisitos. Depois era um nome pagão numa sociedade cristã.O doutor não é cristão?A essa pergunta não respondo…Cristãos somos todos nós. No meu caso sou um cristão porque respeito a ética cristã e sinto-me mais cristão que muitos cristãos católicos praticantes que não sabem nada da vida de Cristo. Contudo, a única religião que pratiquei foi a Evangélica.Como é que isso aconteceu?A certa altura, o meu pai estava deslocado em trabalho e mandou-me estudar para o Colégio Afonso de Albuquerque em Vila Franca de Xira. Fui viver para casa de uns amigos a quem ele tinha projectado a casa. Havia umas contas por acertar e o meu pai decidiu pedir que, em troca do projecto, eles me recebessem na sua casa. A família era praticante da Igreja Evangélica e eu comecei a frequentar o culto que era por baixo da casa onde vivi. Influenciou a minha vida. Foi no período dos 12 aos 15 anos. Como era a Vila Franca desse tempo, na década de 1930/40?Era uma terra muito importante no ponto de vista comercial e agrícola e com muita vida social e cultural. Estava perto de Lisboa, era o prolongamento da Capital. Estava numa encruzilhada que ligava a norte e a sul. Havia já fábricas que empregavam pessoas vindas de vários lados. Com a Guerra de Espanha houve alterações profundas e começaram a aparecer movimentos muito interessantes com jovens estudantes.Nelson da Silva Lopes/Vera Alves
“Se dependesse do dinheiro que ganhei como médico andava a pedir esmola”

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